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14/06/2006 - 09h52

Em entrevista, Domingos Oliveira critica o cinema novo

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RAFAEL CARIELLO
SILVANA ARANTES
da Folha de S.Paulo, no Rio

No dia em que deu uma festa para todas as pessoas do mundo --ou, ao menos, todas as que ele conhecia--, Domingos Oliveira perdeu a memória. Ou parte dela.

Lembra-se que beijou boa parte dos convidados, bebeu da imitação de uísque servido na banheira e acordou seminu na manhã seguinte. Nada mais.

Domingos Oliveira é o tipo de sujeito que --numa época em que tudo, a política e mais um pouco dividiam-- dava festas amplas, gerais e irrestritas.

Naqueles 60, havia no ambiente cultural do Brasil o cinema novo e os outros. Oliveira era dos outros.

Enquanto Glauber Rocha (1939-81) preparava "Terra em Transe" (1967), Oliveira lançava "Todas as Mulheres do Mundo" (1966). "O assunto mais importante do mundo são as relações humanas. De vez em quando, as relações humanas passam pela política, mas nunca me pareceu que fosse o único assunto", diz o cineasta.

Ao optar por um cinema voltado às aflições individuais, o diretor sabia que ganhava o apreço do governo militar e o desprezo dos colegas.

Direita

"Sempre fui chamado de alienado. No Festival de Brasília, ganhamos 12 prêmios com "Todas as Mulheres do Mundo". Ganhamos tudo, porque o filme era muito encantador mesmo e, além disso, a minha aparição era grata à direita", afirma.

Se o cinema novo olhava para Oliveira de viés, ele também tinha suas restrições ao grupo. "O cinema novo foi um movimento muito limitado artisticamente pela proposta política. Era um grupo de intelectuais, muito bem intencionados, às vezes muito talentosos, mas nunca escreveram sobre suas vidas ou sobre as vidas dos amigos, sobre as coisas que entendem bem e podiam falar com profundidade. Trabalharam o tempo todo sobre um tema que conheciam pouco", diz, em referência à miséria social e à política, temas prediletos do movimento, que teve em Glauber Rocha seu maior expoente.

A divergência, no entanto, não impediu que Oliveira e os outros se tratassem com cordialidade. Às vezes, mais do que isso. Ao lado de Leila Diniz (1945-1972), com quem era casado, Oliveira assistiu no Rio de Janeiro à estréia de "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Tornou-se admirador empolgado da obra.

"Acabou o filme, fui ao banheiro fazer xixi. Ao meu lado, fazendo xixi, estava o Glauber. Eu o abracei muito emocionado, dizendo: seu filme é uma maravilha, tenho orgulho de ser seu contemporâneo, todas essas besteiras que a gente diz quando está entusiasmado. O homem me abraçava firme dizendo: "Não sou eu, é o sertão. Não sou eu, é o sertão'", lembra.

A admiração de Oliveira pelos filmes de Glauber parou aí. "Os outros não são tão bons, porque carecem de narrativa, de controle sobre a própria obra. Mas o que Glauber queria, que era entrar em curto-circuito com seu próprio inconsciente, ele chega perto em "A Idade da Terra". É uma proposta altamente artística, de grande magnitude", avalia.

A crítica cinematográfica foi a primeira atividade intelectual de Oliveira. "Quando era menino, com 10, 12 anos, tinha um caderninho em que desenhava meu bonequinho depois de ver um filme, [para registrar] se tinha gostado ou não."

O crítico mirim "era um pouco exigente, como sou até hoje, no sentido de ter a pretensão de reconhecer o que é arte e o que não é", diz Oliveira.

É uma pretensão para além do cinema. Ator, dramaturgo, encenador, além de cineasta, Oliveira é um multimídia que experimentou também a TV, onde diz que aprendeu muito, mas de cuja capacidade didática ele hoje duvida.

Televisão

"Na TV não se pode errar. Quem não pode errar não pode acertar. É simples assim. Todos os atores representam a medo, à cautela, ou seja, representam mal pra caramba, com raras exceções, dos que conseguem perder o medo de errar."

Se já não é palco para Oliveira, a TV é o universo de seu mais recente filme, "Carreiras", que abre hoje o Festival Cinesul, depois de passagens premiadas pelos festivais de Gramado e de Paris.

Adaptação de texto teatral de Oduvaldo Vianna Filho (1936-74) , "Carreiras" acompanha a apresentadora de TV Ana Laura (a atriz Priscilla Rozenbaum, mulher de Oliveira) que, na casa dos 40 anos, está prestes a ser escanteada na emissora.

A obsolescência profissional de Ana Laura tem um ponto de contato com as reflexões que hoje mais interessam Oliveira, que completa 70 anos em setembro: a passagem do tempo e os efeitos da idade.

"Enquanto o fazia, perguntavam-me sobre o filme, sobre o que ele falava. Porque não era a mesma coisa que a peça do Vianna, não era sobre a demolição do establishment. Não botava a culpa em ninguém. Naquele tempo da esquerda, se botava a culpa. Havia os bandidos e os mocinhos", declara. "Cheguei à conclusão que o filme fala sobre a distância que vai entre a vontade e o desejo."

Desejo

Domingos defende que "o seu real desejo raramente coincide com a sua vontade". "Você tem vontade de ir à festa, e não é verdade. Você está com vontade de ficar em casa e não sabe. Você acha que deve ir à festa", exemplifica.

Esse descompasso entre o que quer o indivíduo e o que dele espera a sociedade --que, afinal, revela a face política e libertária das desavenças de Oliveira com sua geração-- é reavaliado agora pelo diretor, sob o prisma do envelhecimento.

"Chegar a essa harmonia entre a vontade e o desejo é que é o barato da velhice. Esse barato tem. A gente fica mais inteligente um pouquinho. Minha cabeça nunca funcionou tão bem. Mas a queda da idade é triste. É horrorosa."

Longe de ser um alienado sobre sua própria condição, Oliveira convive com a decadência da idade, sem desistir da rivalidade com a morte. "Não concordo. Minha posição é contra a morte, o homem não pode admitir. Quem diz que aceita mente. Você pode aceitar racionalmente, saber que vai morrer. Mas, enquanto estiver vivo, vai ser contra. Não fui ao enterro de Leila. Raramente vou a enterros, a não ser que humanamente seja necessário para alguém. Sou contra", afirma.

Oliveira buscou nos amigos Aderbal Freire Filho e Paulo José os pares que o ajudarão a tratar da velhice nas telas. Seu próximo projeto é um filme com as "confissões" dos homens de 70.

Apesar das parcerias, Oliveira permanece como um outsider no plano geral do cinema brasileiro. Ao estender sua condição "marginal" a toda a produção cinematográfica do país, ele termina por fazer uma avaliação próxima à do cinema novo. "Cinema é quase uma festa para a qual a gente não foi convidado. No terceiro mundo, cinema é difícil."

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