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17/08/2006 - 09h00

Scorsese diz que filmes de Glauber Rocha o influenciam; leia entrevista

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JOEL PIZZINI
Especial para a Folha de S.Paulo

O cineasta Martin Scorsese, 64, nunca escondeu sua paixão pela arte de Glauber Rocha. Os dois estiveram juntos três vezes em Nova York, Los Angeles e, por último, no Festival de Veneza em 1980.

A admiração era recíproca, como mostra uma das fotos tiradas pela artista Paula Gaitán em Portugal, onde Glauber posa para sua companheira em frente ao cartaz de 'Raging Bull' ('Touro Indomável').

Michael Chaiken
Martin Scorsese segura cartaz de "Deus e o Diabo na Terra do Sol"
Martin Scorsese segura cartaz de "Deus e o Diabo na Terra do Sol"
Em 1991, Scorsese deu provas de seu apreço, ao adquirir os direitos para a recuperação e produção de cópias especiais em 35 mm da trilogia 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', 'Terra em Transe' e 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro' que passou a integrar sua cinemateca particular.

A preocupação com o estado de conservação de clássicos da história do cinema levou Scorsese a criar nesse período a 'The Film Foundation', entidade que preside atualmente e é responsável pela restauração de cerca de 500 filmes, de autores como Elia Kazan, Alfred Hitchcock, Jonas Mekas, Frank Capra e Robert Wise.

Quando foi convidado em 1996 para editar o número 500 do 'Cahiers du Cinema' ele voltou a homenagear o amigo, dedicando-lhe um ensaio onde relaciona John Cassavetes, Ida Lupino e Glauber Rocha como as três personalidades fundamentais em sua formação cinematográfica.

No momento em que se completam 25 anos da morte de Glauber, Martin evoca novamente a memória de Rocha, em entrevista para o documentário 'Milagres' (co-dirigido por Paloma Rocha) que integrará o DVD duplo de 'Antonio das Mortes', título internacional de 'O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro'.

Paula Gaitán-1981
Glauber posa diante do pôster de "Touro Indomável"
Glauber posa diante do pôster de "Touro Indomável"
Assumido como filme predileto do repertório glauberiano e que o mestre ítalo-americano costuma mostrar aos seus atores, o 'Dragão' vem sendo restaurado no Laboratório Prestech em Londres com o patrocínio da Petrobras. Os três primeiros filmes da Coleção, 'Terra em Transe', 'A Idade da Terra' e 'Barravento' são feitos, por sua vez,com tecnologia nacional pelos Estúdios Mega, em São Paulo.

Enquanto aguardava o seu montador para concluir a mixagem de 'The Departed', seu novo longa-metragem, o autor de 'Taxi Driver' nos recebeu em sua sala de projeção privada em Manhattan, abrindo a agenda para reavivar sua memória em torno do 'Cinema Novo' e da figura de Glauber.

Destacou o uso narrativo da música na obra do artista baiano e criticou a 'corrosão' de uma geração de jovens talentos em Hollywood.

Com a participação da cineasta brasileira Tania Cypriano, que trabalhou em 'Lady by the Sea', seu inédito documentário sobre a Estátua da Liberdade, Martin Scorsese concedeu-nos quarenta minutos de prosa animada.

A seguir, leia a íntegra da entrevista de Scorsese

Mitologia Primitiva

Eu vi os filmes do Cinema Novo, no Museu de Arte Moderna, em 1969 ou 1970. Assisti à 'Terra em Transe' e 'Os Fuzis' na versão original, sem legendas. Foi uma experiência muito, muito forte. Eu nunca tinha visto aquela combinação de estilos e, honestamente, a humanidade, a paixão tão poderosas nos dois filmes. Então, quando 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro' estreou no Cinema da rua Oblique, e eu li o nome Rocha, fui imediatamente ver aquilo. Você tem que entender, era um tempo bem diferente. Todo dia, sem exageros (risos), uma nova obra-prima vinha da Itália, da França, do Japão, de todo lugar. Elas surgiam de toda parte.

E, de repente, 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro' chega nos cinemas e varre todos dali. Eu só posso dizer isso a partir de um ponto de vista emocional, porque eu não tinha o embasamento intelectual, o entendimento da natureza política, do que estava acontecendo no Brasil.

Eu vim de uma classe proletária de sicilianos, do lado mais simples de Nova York, o que eqüivale a viver num vilarejo, até que eu fui para a Universidade de Nova York. A partir daí, tive que começar a me abrir um pouco para o extraordinário fluxo de filmes que estávamos criando. Não eram apenas bons filmes, nós estávamos criando uma linguagem cinematográfica e tudo foi acontecendo em dois ou três dias em diferentes partes do país, sem mencionar autores como Andy Warhol ou John Cassavetes, por exemplo, que, com 'Shadows', em 1959, foi fundamental para deflagrar o movimento.

Foi um período em que nós todos esperávamos que alguma coisa acontecesse com o cinema e que o cinema pudesse nos salvar do mundo. E o mundo estava numa condição terrível, não tão ruim como está agora, mas era um tempo em que as condições políticas eram muito ruins, em todos os sentidos.

Aí, quando eu vi o 'Dragão', o filme parecia sobrepujar a política, fez a política parecer irrelevante de alguma forma, porque lidava com a verdade e a paixão. O filme tratava daqueles que tinham e dos que não tinham. E aqueles que não tinham seriam ouvidos e eventualmente viriam da Terra. É quase como se fosse alguma coisa vinda dos tempos primitivos do Mal, quando as pessoas no filme pareciam que podiam possuir a Terra, como uma mitologia primitiva que foi criada ali na tela.

Era interessante o suficiente, não somente pela tradição e cultura do Brasil --que era um tanto ou quanto maligna para mim-- mas também pelas diferentes abordagens e estilos de filmar originários da Itália, da América, do faroeste americano. Você sabe que, como difundido pelo faroeste italiano, não imaginávamos que esse modelo morreria tão cedo.

Os entusiastas do faroeste americano tinham crescido admirando John Ford, Howard Hawks, Bud Boetticher etc. E, é claro, Sam Peckinpah, o ápice do faroeste americano. Nós éramos muito rígidos com o faroeste americano. Nosso grupo reagiu também contra os filmes de Sergio Leone.

Nós amávamos Antonioni, Fellini, De Sicca e, é claro, Bellochio e Pasolini. Mas acreditávamos que o faroeste era essencialmente americano. Nesse meio tempo, eu vi 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro', mas não tive essa sensação sobre ele, o filme despertava em nós algo diferente. Ele tinha elementos do faroeste, do modo como Leone fazia faroeste. Levei quatro ou cinco anos para realmente começar a gostar, além desse aspecto, dos filmes de Leone.

'Era uma Vez no Oeste' se tornou um de meus filmes favoritos e eu tive que aprender a apreciá-lo. Aquilo não era um faroeste, não era filme italiano, era quase uma ópera tradicional.

Encontro Marcado

Mas, voltando ao 'Dragão da Maldade', penso que ele contém não só elementos do faroeste americano, mas também uma visão italiana do faroeste americano. Naquele momento, eu não podia responder analiticamente ao filme, porque eu estava arrebatado pela sua veracidade estética e política. A política estava lá, isso é óbvio, mas eu nunca tinha visto isso elaborado com tanta honestidade e de forma tão intrigante. Não tinha visto nada igual desde os primeiros filmes neo-realistas de De Sicca e Rossellini.

Embora tenham estilos diferentes, filmes como 'Paisà' e 'Ladrões de Bicicleta' alcançavam a verdade da mesma forma que o 'Dragão'. Tive uma sensação parecida quando vi o primeiro filme de Pasolini, 'Accattone'. O filme de Glauber, porém, atinge um outro nível. Não estava familiarizado com alguns rituais retratados no filme que criam uma atmosfera onde qualquer coisa é possível e você pode seguir a história e compreendê-la.

Mais do que a natureza da história, você entende e com partilha o sentimento dos despossuídos que são enfim escutados.

Você percebe isso particularmente em 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro', isto é, no idioma original. Fiquei obcecado com o filme e levei meu amigo Jay Cox, da revista 'Time', para ver. Ele, à principio, não gostou. Mas anos depois sim. Era uma espécie de crítico, como todo crítico de jornal que tem de ver em média quatro ou cinco filmes por dia. E, de repente, essa coisa surge na tela e ele achou aquilo muito excessivo.

Logo depois, eu o convenci a conhecer o Glauber quando ele veio a Nova York e nos encontramos num restaurante da cidade, apenas para um café. O repórter fez uma entrevista com ele, e esta foi a primeira vez que nos vimos pessoalmente. Mais tarde nos reencontramos e ele continuava o mesmo.

Música Narrativa

O 'Dragão da Maldade' tem elementos de western, obviamente no que diz respeito ao personagem do cangaceiro, o típico bandido brasileiro, que pode ser comparado ao bandido americano. Mas o que me chama atenção é a força narrativa da música, que conta a história. Fiquei tão obcecado com a música, que consegui cópias da trilha e colocava em meu toca-fitas quando vivi em Los Angeles --de 1972 a 1983. Tocava aquela fita no meu carro o tempo todo.

Foi então que comecei a mostrar pedaços do filme para músicos, compositores e atores para que eles pudessem conhecer a qualidade da trilha. Agora, como eu não sou uma autoridade no assunto, não posso saber exatamente todos os significados dos diversos tipos de música que são usados no filme.

Creio que tem a ver com a balada, que no filme aparece no momento em que o velho homem cego é carregado numa maca, e a câmera apenas o acompanha, na preparação da batalha final.

A câmera filma e a balada extraordinária continua sendo cantada, com uma bela letra sobre Lampião, sugerindo sua descida ao inferno ao encontro de todos os demônios. Glauber utilizou a música da mesma forma que Bob Dylan compunha suas canções como 'Masters of War' e especialmente aquela balada-tema do personagem 'Antonio das Mortes', que é 'like a rolling stone!'

Se você ouvi-la como um americano, vai notar que ela ainda tem poder. Com o passar dos anos, comecei a perceber isso automaticamente. Devo dizer que o filme responde à verdade das ruas, à verdade da terra. Em outras palavras, aqueles que não têm nada terão voz, e eu acredito que isso é algo que será contabilizado. E, é exatamente isso que o cinema novo estava expressando naquela época. O mundo todo caminhava naquela direção. E eu acho que vai retomar esse caminho agora novamente.

'O Dragão da Maldade' deixou isso mais claro. Existem os que têm e os que não têm. Você poderia dar ou você poderia tomar, ou você poderia partilhar(risos) e aqueles que não o fizerem, outros surgirão da terra, de onde estiverem, do Cerrado (assim que é chamado no Brasil?). A ária da mulher com a faca é extraordinária, com aqueles rituais. Uma coisa marcante do filme é o modo como os personagens se envolvem intensamente com a música, como um cântico religioso ou de encantamento.

Existe um instante onde uma anciã começa a cantar e eu acho que é quando Antônio das Mortes começa a lutar pela primeira vez com outro cangaceiro, com um lenço entre eles. Um deles morde uma ponta do lenço e o outro morde a outra ponta, é tudo se passa num plano-seqüência. Aliás, eu o projetei o recentemente, umas duas vezes: uma para o elenco de 'Gangues de Nova York' e outra para o filme de gângsters que estou finalizando agora, chamado 'The Departed'.

Se você assistir àquela tomada, perceberá como todos os elementos se completam. Eu acredito que seja uma tomada de 10 minutos. Há um movimento dos dois personagens e, de repente, parece que começou a chover ou algo do gênero.

Você começa então a ouvir uma mulher cantando e eles começam a lutar. Tudo é muito real, e quando um dos personagens é atingido pela faca, e a tensão aumenta entre os dois homens esticando o lenço, a câmera se move, criando uma atmosfera comovente.

Declínio Americano

É o tipo da coisa, tudo vai conspirando a favor do realizador e todos os elementos se integrando, como se Glauber tivesse planejado cada cena. Tenho certeza que ele planejou e que aquele grupo de pessoas estava ali engajado para fazer algo especial. Este é um dos pontos altos do meu novo filme, 'The Depart'. Estou fazendo-o fluir, estou experimentando, me deixando iluminar por este filme de Glauber (o 'Dragão'), que continua uma referência para mim.

Glauber lidou com as mesmas questões vindas da sociedade européia do pós-guerra, de uma forma direta, recorrendo a componentes da paródia. Um homem de estilo extraordinário, cujos filmes afetaram sensivelmente outros filmes, politicamente. Ele é eterno. É uma das razões pelas quais é necessária a restauração de sua obra, para permitir que as novas gerações conheçam esse filme, não somente no Brasil, mas em todo o mundo. O 'Dragão' continua novo, com todo o frescor. Ele não leva a grandes bilheterias, mas te dá um soco na cara, você vê e se ergue, abre seus olhos e é disso que precisamos hoje em dia, mais do que nunca.

Entre os motivos que me levaram a mostrar o 'Dragão' aos atores e diretores de fotografia ao longo dos anos está o de se libertar de um tipo de prisão imposto pelo 'star system'.

Você tem hoje vários jovens atores maravilhosos, que infelizmente são destruídos pelo sistema. Eles surgem de filmes independentes onde tiveram performances maravilhosas e aí são colocados em um grande filme de Hollywood sobre um personagem de quadrinhos. O filme não vai tão bem, o ator não atua novamente, às vezes por três anos ou até três filmes, o que representa um ano e meio praticamente sem trabalho.

Eu penso que isso se transforma numa espécie de monstro que vai corroendo, corroendo a indústria. Ao final, o ator acaba aceitando esse estado de coisas. Não falo só de Hollywood, que financia alguns de meus filmes, mas também da produção em Nova York. Uma situação que resulta no desperdício de toda uma juventude muito talentosa, uma geração de atores promissores como foi a de Marlon Brando, James Dean ou Montgomery Cliff.

Hoje as pessoas já não acreditam em si mesmas porque se lançaram no sistema e todo dia têm que prestar atenção na publicidade, em que festa eles vão, para quais estréias eles foram convidados...

Você pode ser convidado para a estréia classe A, você pode estar na lista da estréia classe B ou você descobre mais tarde que você pode estar na lista da estréia classe C, o que significa que você perdeu posição na cidade. Isso se dá cotidianamente na indústria em Hollywood e na própria sociedade, por causado materialismo e do consumismo enlouquecidos.

Um cinema como o do Glauber precisa ser mostrado aos atores, que têm em seu âmago o desejo de fazer algo mais do que se tornar parte do sistema. É uma forma de forçá-los a desenvolver sua intuição e superar aqueles problemas.

Grandes atores que começaram na década de 60 e ainda estão ativos se perdem em dois ou três dias e somem. Eu vejo filmes como os de Glauber e percebo que isso também é cinema, isso também pode acontecer. Porque esse tipo de cinema às vezes transmitia uma impressão ruim, ligada à contracultura. Nossas inquietações naquela época, no final da década de 60, eram convergentes.

Eu tinha feito filmes quando o encontrei pela primeira vez, quando vi 'Dragão' pela primeira vez. E o nosso sonho aconteceu quando todo o grupo foi para a Califórnia fazer novos filmes. Você quer que eu diga a verdade? (risos) Nós pensávamos que iríamos fazer uma nova espécie de cinema, e isso não era apenas em função do declínio do cinema americano.

Glauber Rocha e muitas pessoas na época falavam sobre esse declínio. É verdade, mas eu acho que nos tornamos um novo grupo que foi e arriscou --até 1980, 1981, pelo menos, quando esse declínio terminou. Não quer dizer que esse cinema não possa ainda funcionar. Eu acho que pode funcionar e que isso está acontecendo com o cinema americano desde o final da década de 80, passando pela década de 90, com o cinema independente até certo ponto.

Reinvenção do cine

Isso também pode cair num tipo de armadilha como quando você mostra filmes para pessoas que já concordam com você, você entende o que eu quero dizer?

Você introduz um problema social e você mostra um filme muito sentimental sobre algum tipo de problema social, quem vai questionar você?

E eles dizem que é bem feito, que o ator está bem, mas você deveria ir mais fundo em termos de linguagem. Agora, quando esses filmes foram lançados, se falava sobre um filme de 16mm que John Cassavetes estava rodando, 'Faces', exibido em grandes salas nos EUA e em todo o mundo, em filmes dos irmãos Maysles, de Pennebaker.

Enfim, todos esses filmes eram exibidos nas noites de sábado logo ali no outro quarteirão, nos principais cinemas, como se fossem lançamentos habituais de Hollywood, mas com uma nova abordagem para o cinema.

Isso acontecia simultaneamente na Europa e no Japão. Parece que eles prometiam uma nova linguagem de cinema, e de algum modo as pessoas a redefiniriam.

Agora estamos enfrentando tudo novamente. O que tem a ver com o vídeo digital, com a possibilidade de qualquer um pegar uma câmera e contar uma história com ela. Você tem que olhar através do visor e, quando enquadrar, pode deixar qualquer pessoa que vai ver o seu filme assistir também e logo entender o que você vai contar a ela. O que significa que todos podem ser diretores de cinema. Agora, se você tem alguma coisa a dizer, este é um meio muito poderoso.

Atualmente, existem inúmeros modos de narrar. Eu acredito que esteja acontecendo novamente uma revolução, mas eu não tenho certeza se isso ainda pode ser considerado cinema, embora grandes filmes de Hollywood, europeus, asiáticos ou sul-americanos estão sendo exibidos em iPods.

Eu não sei se o filme foi feito para ser visto naquele tamanho de tela. É tão pequena que aquilo se transforma em outra coisa, que está sendo redefinida e reinventada enquanto conversamos. É um meio muito poderoso, e ninguém, quando os filmes foram feitos, pensou sobre isso.

Então, o caminho está aberto novamente. Acho que o que está para acontecer é que nós temos que nos manter chocados e de alguma forma alertando os jovens talentos e dizendo: não se deixem levar por isso. Não somente pelo 'cinemão' mas também pelo filme sentimental independente. Nada contra, eles são bons, mas ainda dá para ir mais fundo, não há como prever. Temos que esperar.

É por isso que existem filmes desse tipo, 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro', 'Terra em Transe' e outros filmes do cinema novo. Por isso é que eu fiz um filme sobre o neo-realismo italiano.

Neo-realismo

Quando tinha cinco anos, vi filmes neo-realistas que ficaram comigo por anos e eu acho que é bom devolver isso aos jovens. Eu adoraria ver os jovens espectadores assistindo a esses filmes em DVD. É melhor do que nada, porque durante muitos anos você não conseguia ver nem nos cinemas.

Essa é uma das razões pelas quais eu produzi cópias desses filmes do Glauber para mostrá-los em festivais como o New York Film Festival, que exibiu 'Terra em Transe' e 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro'. Minhas cópias foram exibidas em uma série de lugares, e vê-las na tela grande --devo dizer, eles são poderosos na tela na grande-- ou mesmo na televisão ou até em DVD, vale muitíssimo a pena.

A energia dos filmes e sua beleza descompromissada devem sobreviver a esses novos meios. Muito da história do cinema que eu aprendi foi através da televisão, daquela televisão em preto e branco com intervalos comerciais, assistindo a filmes hollywoodianos, mas também a filmes britânicos e a filmes italianos. Inclusive Mizoguchi, de 'Contos da Lua Vaga', que eu vi na televisão americana, em 1956, com comerciais e dublado em inglês. Não era a forma como deveria assisti-lo, mas isso não importava.

Eu tinha catorze anos e eu estava olhando para aquela coisa maravilhado. Eu vi filmes fantásticos daquela forma e muitos eu vi no cinema também. É sempre melhor vê-los no cinema, na sala escura, com a tela sendo o centro da sua atenção. Mas não devemos subestimar o poder da imagem em um lar, da imagem que vai direto em sua aparelhagem, então o DVD nesse sentido se tornou divino.

Violência e Estética

Bem, a violência em 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro' é estilizada e ela me lembra uma violência ritualística, rituais que são encenados onde as pessoas não se machucam, e o ator está fora, num certo distanciamento. Agora que eu li mais sobre Glauber Rocha ao longo dos anos, sei mais sobre o sentido de seus filmes. Eu precisei de anos para chegar onde outras pessoas estavam quando esses filmes foram feitos.

Eu nunca fui um intelectual e ainda não sou, mas o caso é que esse distanciamento não influenciava, pois eu sentia o poder do filme. Eu sabia o que aquelas imagens e aquela violência significavam, mesmo sabendo que a violência não era mostrada de forma realista. Eu não digo que isso seja bom ou ruim, estou apenas dizendo que isso não me importava. Já em 'Bonnie & Clyde Uma Rajada de Balas', 'Era uma Vez na América' ou 'Meu Ódio será a tua Herança' de Sam Peckinpah, a estética era algo diretamente ligado à violência que era também expressada, de certa maneira, nos filmes de (Sérgio) Leone, e ainda em outros filmes italianos e de países europeus, além de certos filmes japoneses.

Eu também senti uma associação muito forte com o cinema japonês quando eu vi os filmes de (Glauber) Rocha, como se fosse uma mistura de cinema japonês e italiano. E eu ficava me debatendo para definir o que era aquilo, tentando descobrir de onde todos aqueles estilos vinham. Mas hoje eu percebo, revendo 'Terra em Transe', algo de Orson Welles, de Eisenstein. É evidente que toda vez que eu faço um filme, a primeira coisa que faço ao iniciar o processo é me cercar de filmes russos da década de vinte, de Eisenstein, Dovtchenko, Vertov e algo de Pudovkin e de Kulechov.

Atualmente, estou revendo Dovtchenko. Para refrescar a memória, sempre revejo 'Dragão da Maldade' ou 'Terra em Transe', que são como um empurrão para mim. Mas na medida em que revejo 'Terra em Transe', é inevitável evocar o cinema de Welles. Estes filmes me ajudam a reavivar a memória, me estimulam e me inspiram, eu procuro me cercar de grandes clássicos, e gosto devê-los, de me tornar parte deles, e estar na sala de projeção pelo puro prazer de contemplá-los.

Eu acho que meu olho foi fisgado particularmente por 'Terra em Transe'. Ele se voltou diretamente ao filme porque estava procurando Welles no cinema. Gosto muito dos filmes de Welles, do jeito que ele filma. E até hoje, quando sintonizo um canal dedicado aos filmes clássicos, fico até duas horas da manhã assistindo, pelo menos vinte minutos de filmes como 'A Marca da Maldade', às vezes sem som quando estou trabalhando. Isso mantém a minha memória afiada.

Nós somos bombardeados por tantas imagens ruins que temos que apelar sempre aos mestres, mesmo quando não podemos mais fazer isto. Nós já fizemos isso anteriormente. Como realizadores, temos de continuar em frente, na presença dos mestres, para nos inspirarmos permanentemente.

O cinema está se redefinindo novamente com Lars von Trier e seu grupo na Dinamarca. A luz no vídeo digital é diferente e cria uma nova estética. Eu não posso definir isso muito bem, é uma sensação emocional e psicologicamente diferente, mas ainda se trata de uma imagem visual. Você ainda está contando histórias com imagens e pessoas e o interessante é que ainda há sempre temas a serem explorados.

Poesia e política

Eu sou uma pessoa que veio de um tipo de classe operária apolítica. Meu pai era um funcionário da Secretaria de Jardins de Nova York por volta dos anos 30 e 40. Mas ficou muito mais conservador em fins dos anos 50. Assim, eu vim de um cenário muito conservador. Foi no início dos anos 60 que eu comecei a tomar consciência das diferentes formas de pensar, do pensamento político e esse tipo de coisa. Eu tinha provavelmente 16 ou 18 anos quando isso despertou. De certa forma, eu sempre respondi à poesia e creio que, sobretudo, a partir dos filmes de (Glauber) Rocha. Eu mergulhei em direção à poesia de 'Terra em Transe' e a política estava lá. Esta é a razão pela qual eu disse que isso está além da política, entende? A poesia do filme é tão forte que é eterna.

É sobre o ser, sobre a humanidade, não apenas sobre um sistema político, ou contra um sistema político. Vai além disto e portanto sempre será algo novo. Acho que política e poesia não podem coexistir, a poesia tem a política. Não importa o que você faça, isso é político. Penso que os jovens de hoje poderiam se beneficiar ao verem esses filmes. É óbvio no caso de 'Terra em Transe', porque o filme é sobre política. Mas é o contrário de 'All the Kings Men' ('A Grande Ilusão'), que é sobre os políticos.

O livro de Robert Penn Warren, que inspirou o filme --tem inclusive uma nova versão saindo-- é uma coisa bem distinta. Na ocasião que assisti 'Terra em Transe' no MoMA, eu nunca tinha visto uma reação a um filme como aquela. Havia aquele último plano do homem disparando a arma, em tela ampla (1:85), em que a cena ocupa o canto do quadro. Depois que a sessão terminou, algumas pessoas permaneceram aplaudindo, aplaudindo e aplaudindo por uns vinte minutos.

Foi comovente e aterrador! Aquela imagem é por demais eloqüente de um cinema que sempre expressará um sentido de resistência, de uma forma ou de outra. Isto ocorre porque o personagem permanece na tela e você ouve aqueles tiros. É uma imagem incendiária. Eu presenciei a reação do público, é uma cena poderosa. É poesia, mas podemos dizer também que é política (risos). Mas a poesia vem primeiro e então talvez Glauber esteja certo ao afirmar que 'a poesia e a política são demais para um só homem'.

Eu conheci Glauber quando comecei a fazer meus primeiros filmes. Não há dúvida que O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro teve grande impacto sobre Caminhos Perigosos (1973) e especialmente em Touro Indomável (1980), em que colocamos algumas músicas brasileiras em homenagem a ele. A última vez que o vi foi em Veneza, em 1980. Antes disso, tínhamos nos encontrado em minha outra casa em Los Angeles, e jantamos juntos.

Estávamos eu, o produtor Tom Luddy e Glauber quando mostrei a ele a praia que havia feito nos fundos de casa. À noite, vimos 'The Horse Soldiers', de John Ford, que não é um de seus melhores filmes. Ele gostava muito do Ford, gostava de faroeste. Disse-me que eu valorizava o cinema de um ponto de vista mais emocional do que o político. Eu não queria ficar restrito à preocupação com a política, ou algo do gênero.

Apenas me interessavam as imagens e o que elas diziam. Nosso último encontro foi em Veneza, quando ele apresentou o seu último filme, 'A Idade da Terra', que eu não acabei não vendo.

Filme predileto

Meu filme predileto do Glauber é 'O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro'. Eu vou e volto nessa versão em português que tenho e aprecio muito. É o filme que eu vivo revendo e continuo mostrando às pessoas, se eu acho que elas merecem (risos). Às vezes, elas não merecem, pois certas pessoas são como zumbis, não têm sentimentos ou coisa parecida.

Eu não sei, acho que é bom mostrá-lo para as pessoas que possam ser ajudadas no seu trabalho. Mesmo até se elas rejeitarem o filme, pois já é algum tipo de reação. Melhor do que vem sendo apresentado ultimamente. Eu fico indo e voltando com 'O Dragão' e a música não sai da minha cabeça e além do mais, eu o conheço de ponta a ponta.

Joel Pizzini é cineasta, autor de "Dormente", "500 Almas" e co-diretor de projeto de restau­ração da obra de Glauber Rocha

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