Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
05/12/2006 - 08h08

"Sou mais Dostoiévski do que Derrida", diz Vargas Llosa; leia entrevista

Publicidade

SYLVIA COLOMBO
da Folha de S.Paulo

Lima na década de 50, Paris na de 60, Londres na de 70 e Madri na de 80. A vida do peruano Ricardo Somocurcio, personagem principal de "Travessuras da Menina Má", pelo menos do ponto de vista histórico, foi bastante privilegiada.

Conheceu a expansão, o auge e a derrocada das utopias do século 20. Mas sempre como alguém vindo de um país distante, que estava longe de ser o protagonista dos fatos.

AP Photo
Mario Vargas Llosa é autor do romance autobiográfico "Travessuras da Menina Má"
Mario Vargas Llosa é autor do romance autobiográfico "Travessuras da Menina Má"
Pois foi assim que Mario Vargas Llosa, 70, autor desse romance semi-autobiográfico, viu a história passar diante dos olhos. E, agora, por meio de uma trama de amor que atravessa quatro décadas, o peruano mostra como o idealista que chegou a apoiar a luta armada foi se transformando num ferrenho crítico da esquerda.

"Travessuras da Menina Má", que já vendeu mais de 40 mil exemplares no Brasil e habita as listas de livros mais vendidos desde outubro, quando foi lançado, narra a história de Somocurcio, um peruano cuja única ambição é morar em Paris. Só que sua vida nunca será tranqüila, pois uma mulher --que muda tanto de nome e de disfarce que passamos a conhecê-la só como Menina Má-- aparecerá e desaparecerá de tempos em tempos, condenando-o a uma paixão longeva e destruidora.

O selo Alfaguara, da editora Objetiva, comprou os direitos de publicação da obra de Vargas Llosa revista pelo autor. Em 2007, serão lançados "A Cidade e os Cachorros" (1962) e "Pantaleão e as Visitadoras (1972)", dois de seus principais livros. De Washington, onde termina de dar um curso sobre literatura latino-americana na Universidade de Georgetown, o escritor conversou com a Folha, por telefone. Leia a seguir.

Folha - Este é um livro autobiográfico desde o ponto de vista das impressões sobre o mundo em que o sr. viveu. Mas a trama que o conduz é fantasiosa, certo?

Mario Vargas Llosa - Sim, "Travessuras" é um livro sobre as cidades e as épocas em que nelas vivi. Uso a memória, mas também o sentimento de nostalgia que carrego com relação a isso. Já a história de amor entre Somocurcio e a Menina Má é totalmente inventada. Ainda que, para escrever sobre uma relação, sempre usemos algo de nossa experiência.

Folha - Nas comparações que o sr. faz entre Paris e Londres entre os anos 60 e 70, a França sai perdendo. O Maio de 68 foi supervalorizado?

Vargas Llosa - Sim. Criou-se uma mitologia em torno de um episódio que não passou de um evento muito menos revolucionário do que se pensou que seria. Do ponto de vista dos costumes houve uma certa liberação. Só que essa liberação já acontecia em Londres no começo dos anos 60, ainda que sem o revestimento político que ganhou na França. Mas mesmo essa significação política do Maio de 68, vista aos olhos de hoje, é muito relativa. Tudo não passou de uma rebelião de jovens de pequena burguesia contra seus pais. E que logo voltaram a ser como antes. Houve, sim, mudanças de valores e de estética. Também se generalizou o individualismo. Só que o episódio indicava uma grande revolução social e política, e isso não aconteceu.

Folha - E na Inglaterra?

Vargas Llosa - Ali eu vi mais mudanças. Os homossexuais fizeram as primeiras manifestações nas ruas de Londres já no fim dos anos 60. Foi uma revolução moral. As drogas, uma cultura subterrânea, clandestina, de repente saíram à luz pública. Foi uma transformação da sensibilidade. Sem falar da música, que, desde o fim dos anos 60, por meio dos artistas ingleses, converteu-se em um signo de identidade entre a juventude que prevalece.

Folha - Quando viveu no reduto hippie de Earl's Court, em Londres, o sr. experimentou drogas?

Vargas Llosa - Eu vivia rodeado de gente que usava drogas, eram meus amigos, e estão mais ou menos descritos por meio dos personagens hippies do romance. Respeito quem as usa, sou liberal, mas nunca acreditei nas drogas.

Folha - Voltando à França, qual foi o legado que deixou aquela época?

Vargas Llosa - Toda a utopia social começou a fervilhar lá, no final dos anos 50. Os franceses adotaram Cuba e a projetaram ao mundo como projeto libertário. Criaram um ícone para uma revolução social. Só que isso fez barulho por um tempo e logo se mostrou anacrônico, caduco. Afinal, não se produziu nenhuma nova realidade. E a história acabou provando que tudo não se passou de um mito.

Folha - O sr. também critica intelectuais franceses daquela época, como Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Michel Foucault...

Vargas Llosa - Houve uma intensa decadência na criatividade francesa a partir da segunda metade dos anos 60. No começo da década, grandes escritores franceses ainda estavam vivos e produzindo algo. André Malraux, os últimos surrealistas --vi André Breton, um dia, comprando peixe num mercadinho parisiense-, escritores católicos, como François Mauriac. Sem falar de Albert Camus, que morreu em 1960. Depois, essa criatividade foi desaparecendo e surgiu uma forma de crítica cada vez mais acadêmica, retórica; de uma grande sofisticação, mas também de uma grande frivolidade. E que, por isso, foi afastando os leitores comuns. Era uma crítica que se apoiava sobre uma retórica obscurantista. E hoje, quando se pensa em grandes criadores, não se pensa em nenhum francês vivo. É uma literatura que parece atravessar um recesso enorme. Mais uma vez, na Inglaterra se vê renovação. Bons escritores novos, e muitos procedentes das antigas colônias. Há energia e vitalidade ali.

Folha - O protagonista do romance reforça várias vezes que sempre prefere os russos aos franceses.

Vargas Llosa - Sim, assim como eu, Somocurcio não se deixou levar pela frivolidade dessa retórica crítica e seguiu preferindo os grandes escritores. Entre Derrida e Dostoiévski, sempre ficarei com Dostoiévski. Foucault também sempre achei frívolo, mas admito que tinha talento e, por base, uma realidade histórica viva, real. Mas em Derrida eu nunca acreditei. Ele tentou separar completamente a literatura da vida. A teoria básica do desconstrucionismo é a idéia de que a literatura é pura linguagem. Isso não é verdade. Se a literatura tem alguma importância é justamente porque enriquece a vida, nos dá uma maior compreensão sobre ela.

Folha - O seu personagem, vivendo em Paris, é neutro ao acompanhar os avanços da guerrilha no Peru [encabeçada pelo Movimento de Esquerda Revolucionária, o MIR]. Foi assim que o sr. agiu na época?

Vargas Llosa - Eu era menos passivo do que Somocurcio e tinha muitos amigos envolvidos na guerrilha, mas não cheguei a ser militante de nenhuma dessas organizações.

Folha - Como o sr. vê hoje esse período na América Latina em geral?

Vargas Llosa - Foi uma época de muita ilusão. Surgiu uma idéia de que a maneira de trazer a justiça e a modernidade para a América Latina tinha de ser por meio da revolução armada. A história não só mostrou que essa alternativa não funcionava, como vimos que essas pretensas revoluções serviram de justificativa para mover golpes de Estado militares e encher o continente de ditaduras. Mas o efeito mais negativo foi o fato de que a ilusão revolucionária desacreditou a opção democrática. Fez crer que a democracia era uma farsa, e que só a revolução traria a justiça. E isso num momento em que as revoluções reais, os regimes de partido único comunistas, já começavam a vir abaixo. Essa utopia tem hoje encanto poético, literário, mas, do ponto de vista histórico, foi uma catástrofe para o continente.

Folha - O sr. se candidatou a presidente do Peru em 1990 [quando perdeu para Alberto Fujimori] porque achava que a democracia estava se decompondo no Peru. Como vê o atual cenário?

Vargas Llosa - Tenho esperança de que o Alan Garcia (APRA), que ganhou as últimas eleições, não seja o mesmo que causou as catástrofes populistas de seu primeiro governo (1985-1990). Vejo-o mais moderado, parece ter aprendido a lição. Só espero que não se deixe contaminar pelo populismo que o cerca.

Folha - O sr. acha que hoje há, na América Latina, uma esquerda "boa" e uma esquerda "má"?

Vargas Llosa - Há uma esquerda positiva, democrática, no Chile, no Brasil, no Uruguai, que faz políticas de mercado. Mas há também uma esquerda pré-histórica, a de Hugo Chávez (Venezuela), de Evo Morales (Bolívia). Alan Garcia ganhou com um programa de esquerda democrática, e enfrentou Ollanta Humala, o candidato populista. Isso fez com que muitos dos que não eram partidários de Garcia, como eu, votássemos nele. Era o mal menor. E em política nem sempre se pode escolher a excelência.

Leia mais
  • Na América Latina, Vargas Llosa é o escritor que melhor resiste ao tempo

    Especial
  • Leia o que já foi publicado sobre Mario Vargas Llosa
  •  

    Publicidade

    Publicidade

    Publicidade


    Voltar ao topo da página