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18/02/2007 - 09h00

Razão e sensibilidade

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RENATO JANINE RIBEIRO
Especial para a Folha de S.Paulo

Escrever sobre o horror em estado puro: assim vivi o convite para participar deste número do Mais!. É insuportável pensar no crime cometido contra o menino João Hélio. E é nisso que mais penso, nestes dias. Não me saem da cabeça duas ou três coisas. A primeira é o sofrimento da criança. Se há Deus, e acredito que haja, embora não necessariamente antropomorfo, como admite Ele esse mal extremo, gratuito, crudelíssimo?

Se a alma ou o espírito tem um destino após a morte, chame-se esse de juízo eterno ou de uma série de reencarnações, como poderá esse infeliz menino ser recompensado pela vida que lhe foi ceifada, não apenas tão cedo, mas, além disso, de modo tão bárbaro?

Essas são questões religiosas, ou melhor, de fé. E quanto aos assassinos? A outra coisa que não me sai da cabeça é como devem ser punidos. Esse assunto me faz rever posições que sempre defendi sobre (na verdade, contra) a pena de morte.

Anos atrás, me convidaram a escrever um artigo para uma revista de filosofia contra a pena de morte. Perguntei então: mas alguém escreverá a favor? E me responderam que era possível, por que não? Acabei escrevendo meu artigo (contra a pena capital), mas este caso horrível me faz repensar ou, melhor, não pensar, sentir coisas distintas, diferentes.

Se não defendo a pena de morte contra os assassinos, é apenas porque acho que é pouco. Não paro de pensar que deveriam ter uma morte hedionda, como a que infligiram ao pobre menino. Imagino suplícios medievais, aqueles cuja arte consistia em prolongar ao máximo o sofrimento, em retardar a morte. Todo o discurso que conheço, e que em larga medida sustento, sobre o Estado não dever se igualar ao criminoso, não dever matar pessoas, não dever impor sentenças cruéis nem tortura -tudo isso entra em xeque, para mim, diante do dado bruto que é o assassinato impiedoso.

Torço para que, na cadeia, os assassinos recebam sua paga; torço para que a recebam de modo demorado e sofrido. Conheci o sr. Masataka Ota, pequeno empresário cujo filho pequeno foi assassinado. Entrevistei-o para meu programa de ética na TV Futura (episódio "Justiça e Vingança"). Masataka perdoou os assassinos, isto é, embora pudesse matá-los, não o fez.

Quis que fossem julgados e lamenta que já estejam soltos, poucos anos após o crime hediondo, mas ele é um caso raro --e admirável-- em não querer se vingar, em não querer que os assassinos sofram mais do que a pena de prisão. Confesso que não seria a minha reação.

Quem é humano?

Penso --porque ainda consigo pensar, em meio a esse turbilhão de sentimentos-- também que há diferentes modos de impor a pena máxima. A punição com a morte se justifica ora pela gravidade do crime cometido, ora pela descrença de que o criminoso se possa recuperar. No caso, as duas razões comparecem. Parecem irrecuperáveis, e seu crime é hediondo. Não vejo diferença entre eles e os nazistas.

Creio que só um insensato condenaria as execuções decretadas em Nuremberg. Há, hoje, quem debata se Luís 16 deveria ou não ter sido guilhotinado: dizem alguns que o melhor seria reduzir o último rei absoluto da França a um cidadão privado, um pouco como a China (curiosamente, campeã em execuções) fez com Pu Yi, seu derradeiro imperador. Mas Luís era culpado apenas de ser rei. Pessoalmente, era um homem bom. Os nazistas foram culpados do que fizeram. Optaram pelo mal. Como esses assassinos.

Em países como os Estados Unidos, a demora na execução é ela própria uma parte --talvez involuntária- da pena. Alguém passa 20 anos no corredor da morte, e é executado quando já pouco tem a ver com quem foi. Na Inglaterra, antes de abolir a pena de morte, era diferente: dois ou três meses após o crime, o assassino era enforcado. Nos dois países, a garantia de todos os direitos de defesa ao réu faz parte, por curioso que pareça, da engrenagem que diz ao acusado: você terá todos os direitos, mas não escapará.

No Brasil é diferente. Não temos pena de morte, na lei. A Constituição a proíbe. Mas provavelmente executamos mais gente que o Texas, o Irã ou a China. É que o fazemos às escondidas. Quando penso que, desses infanticidas, os próprios colegas de prisão se livrarão, confesso sentir um consolo. Mas há algo hipócrita nisso.

Se as pessoas merecem morrer, e se é péssimo o Estado se igualar a quem tira a vida de outro, por outro lado é uma tremenda hipocrisia deixar à livre iniciativa dos presos ou aos justiceiros de esquina a tarefa de matar quem não merece viver. Abrimos mão da responsabilidade, que pode ter uma sociedade, de decidir --no caso, quem deve viver e quem merece morrer. Tudo isso traz questões adicionais. É-se humano somente por se nascer com certas características? Ou a humanidade se constrói, se conquista -e também se perde? Alguém tem direito, só por ser bípede implume, de fazer o que quiser sem perder direitos? A todos assiste o direito da mais ampla defesa.

Mas, garantida esta, posso fazer o que quiser sem correr o risco da pena última? Isto, que relato, põe em questão meu próprio papel como intelectual. Intelectual não é apenas quem tem uma certa cultura a mais do que alguns outros. É quem assina idéias, quem responde por elas. Tive, na graduação, uma amiga que teve bloqueio de escrita. Mas, na verdade, ela até fazia trabalhos --de graça-- para outros colegas. Seu bloqueio não era de escrita, mas de assinatura. Talvez possa dizer: o cientista escreve, o intelectual assina.

O intelectual é público. Só que, para ele cumprir seu papel público, é preciso acreditar no que diz. Ora, quantas vezes o intelectual afirma aquilo em que não acredita? Quantos não foram os marxistas que se calaram sobre os campos de concentração, que eles sabiam existir? Por isso, o mínimo que devo fazer, se sou instado a opinar, é dizer o que realmente penso (ou, então, calar-me).

Sei que a falta de perspectiva ou de futuro é o que mais leva pessoas a agirem como os infanticidas. Sei que devemos reformar a sociedade para que todos possam ter um futuro. Creio que isso reduzirá a violência. Mas também sei que os pobres são honestos, mais até do que os ricos. A pobreza não é causa da falta de humanidade. Quer isso dizer que defenderei a pena de morte, a prisão perpétua, a redução da maioridade penal? Não sei. Não consigo, do horror que sinto, deduzir políticas públicas, embora isso fosse desejável.

Mas há algo que é muito importante no exercício do pensamento: é que atribuamos aos sentimentos que se apoderam de nós o seu devido peso e papel. Não posso pensar em dissonância completa com o que sinto. A razão, sem dúvida, segura muitas vezes as paixões desenfreadas. Quantas vezes não nos salvamos do desespero, do desamparo, do ódio e da agressividade, apenas porque a razão nos acalma, nos contém, nos projeta o futuro?

Que crimes o amor desprezado não causaria, não fosse ele contido pela razão? Mas isso vale quando a dissonância, insisto, não é completa. Se o que sinto e o que digo discordam em demasia, será preciso aproximá-los. Será preciso criticar os sentimentos pela razão --e a razão pelos sentimentos, que no fundo são o que sustenta os valores. Valores não são provados racionalmente, são gerados de outra forma. Afinal de contas, o que vivemos no assassínio bárbaro de João Hélio, como meses atrás quando queimaram viva uma criança num carro, não é diferente do nazismo.

Dizem uns que o Brasil está como o Iraque. Parece, pior que isso, que temos algumas mini-auschwitzes espalhadas pelo território nacional.

RENATO JANINE RIBEIRO é professor de Ética e Filosofia Política na USP e autor de, entre outros, "A Ética na Política" (ed. Lazuli).

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