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03/03/2007 - 08h50

Leia capítulo do livro "Queria que Você Estivesse Aqui"

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da Folha de S.Paulo

Leia a seguir o primeiro capítulo do livro "Queria que Você Estivesse Aqui", de Stewart O'Nan, traduzido por Cássia Zanon e publicado pela editora Record. Crítica da obra foi publicada neste sábado (3) na Folha (disponível para assinantes da Folha e do UOL).




Pegaram o carro de Arlene porque tinha ar-condicionado e Emily não estava certa se o Olds agüentaria a viagem. Além disso, o carro de Arlene era maior, uma caminhonete, melhor para trazer as coisas de volta.

Emily sabia que não iria resistir. Não havia aprendido a encarar a menor das perdas com elegância -- fosse um copo quebrado na máquina de lavar louça fosse um suéter encolhido pela secadora. Havia enchido o Taurus de tralhas para as quais não tinha lugar em casa. Tudo aquilo acabaria no porão, mofando ao lado da geladeira extra que ainda estava cheia até a boca com as cervejas Iron City de Henry. Ela não bebia cerveja e ainda não tinha conseguido se obrigar a abrir, uma a uma, girando a tampa, para entorná-las espumando na pia. Assim, elas ficaram lá, com as bordas das tampas enferrujando, deixando seus legumes e verduras com uma cor acinzentada. Por ela, guardaria o que pudesse, embora soubesse que o próprio Henry iria condenar aquela bagunça.

Seria a última vez que ela faria a viagem, a última vez que veria o chalé. O fim de tudo seria administrado por seu advogado -- na verdade, o advogado de Henry. Ela só tinha falado pessoalmente com ele uma vez, no último outono, andando entorpecida pela propriedade. Todo o restante havia sido acertado por telefone, ou pelo Federal Express, um gasto que considerava extravagante e pelo qual temia estar pagando. Mas Henry havia usado Barney Pontzer por trinta anos e, nesse caso, acreditava mais na capacidade de avaliação de Henry do que em si mesma.

O chalé ficava a três horas da casa, dependendo do movimento na 79. Aos sábados podia ser pior. Queria sair por volta das nove, para estarem lá na hora do almoço, mas Arlene se atrasou e a incomodou por causa de Rufus, estendendo cerimoniosamente uma toalha desbotada do Steelers sobre o banco traseiro. Emily garantiu que ele não tinha comido de manhã, mas Arlene continuou enfiando a toalha nos cantos do banco. As duas tinham tido a mesma discussão no Natal, quando foram visitar Kenneth. Aquilo era tão sem sentido. O carro já fedia a seus cigarros Lucky Strike e sempre federia.

- Ele está bem -- insistiu Emily.

- É melhor garantir.

- Ele está bem agora.

- Eu estava pensando mais no pêlo.

- Ah, por favor -- disse Emily, tentando sorrir --, uma toalha não vai adiantar nada. Passo o aspirador quando chegarmos lá.

- Alguém vai ter de fazer isso.

- Eu vou fazer.

Essas batalhas sem fim, pensou Emily. Será que Arlene não conseguia ver que aquela viagem era diferente? Henry atribuía a estupidez da irmã à sua praticidade de professora, mas Emily achava que era algo mais instintivo do que voluntário. Arlene parecia estar constantemente na defensiva, com medo de ser traída de alguma forma. Aquilo fazia sentido: Henry tinha sido o bebê, o favorito de seus pais, engenheiro como o pai. A vida inteira Arlene tivera de lutar pelo mínimo pedaço de atenção.

Mas todos eles já tinham partido, Emily teve vontade de dizer. Ela podia parar com aquilo agora.

Rufus tinha um problema nos quadris e Emily tinha de ajudá-lo a entrar no carro. Arlene não disse nada enquanto rearrumava a toalha. Na verdade, Rufus ainda enjoava no carro, embora não mais a ponto de vomitar. Ao longo dos anos ele tinha aprendido a manter a cabeça baixa para não ficar mais tonto com o interminável carrossel de árvores e campos, mas ainda se segurava e engasgava como se fosse deixar sair tudo. Agora, em vez disso, ele babava. Longos fios gelatinosos pendiam de seu papo e caíam como teias de aranha. E, é verdade, ele estava babando muito. Tinha sido um verão violento. Os rodapés no quarto estavam com tufos de pêlo escuro que se espalhavam com a aproximação do aspirador, mas aquilo era natural para um springer spaniel.

Poderiam ela ou Arlene dizer que tinham envelhecido com mais elegância? Rufus tinha 14 anos e passara todos os verões no chalé. Ele merecia uma última brincadeira com as crianças, um último mergulho do cais, uma última soneca na laje fresca da varanda. Ela faria uma faxina nos bancos do carro de Arlene se fosse preciso.

A casa estava trancada, as janelas fechadas e a secretária eletrônica ligada. Ela havia suspendido a entrega de correspondência e limpado a caixa-d'água. O Olds estava propositadamente com pouca gasolina, para o caso de alguém entrar na garagem com a intenção de roubá-lo. Marcia, a vizinha do lado, tinha uma chave e o número do telefone de Chautauqua. Se tivesse esquecido alguma coisa, não conseguia atinar no que fosse.

- E eles partiram -- disse Emily, girando o pulso para olhar as horas no Hamilton de Henry.

Arlene dirigia devagar, grudada ao volante, espiando por cima das mãos, como o piloto de um navio na neblina. Já fazia calor e o ar condicionado estava divino. Sombras de árvores caíam abruptamente ao longo das calçadas vazias. Em jardins ressecados por causa da falta de chuva, vaporizadores lançavam borrifos circulares para cima. Era boa a sensação de deixar a cidade, como se estivessem fugindo de um grande palácio enquanto todos dormiam.

O trânsito estava surpreendentemente leve na avenida dos Aliados, o Monongahela marrom descendo preguiçosamente abaixo e um trem arrastando-se pelo litoral distante. Os grandes moinhos tinham desaparecido, transformados em nada além de campos aplainados protegidos por cercas de metal. Na cidade, os novos prédios brilhantes se erguiam atrás delas, que cruzavam o verde Allegheny, a fonte no Point espirrando arcos brancos perfeitos, uma chata subindo o rio abaixo delas, tudo parecendo um cartão-postal. Dentro de uma semana ela estaria de volta e aquilo pareceria odioso, ela sabia -- ou simplesmente assustador, um lembrete daquilo de que tinha desistido e do pouco que havia restado.

O tempo era a dificuldade agora (sempre foi, só que agora ela não tinha ninguém para ajudá-la a passar por aquilo, alguém ao lado em quem se concentrar). As manhãs no jardim, as tardes na piscina do Edgewood Club, as noites lendo com Brahms tocando no rádio. Ela descobriria a própria maneira tranqüila de atravessar os dias, esperando o tempo passar, tentando não incomodar Kenneth ou Margaret para que a visitassem com as crianças. E era certo que ainda sentisse a presença de Henry, não fazia tanto tempo assim para que não tivesse saudade dele. O inverno havia sido uma tentativa, com a escuridão chegando mais cedo, mas sempre havia aquelas valentes plantas perenes -- mistérios britânicos da biblioteca, o novo especial da PBS, almoço com Louise Pickering. Ela ainda tinha saúde, os dentes, a memória. Recusava-se a se tornar uma daquelas velhas que não faziam nada a não ser lamentar-se em voz alta dos velhos tempos, falando dos maridos mortos como se eles estivessem apenas bebendo no quarto ao lado. Ela nunca havia considerado aquela possibilidade antes de Henry ficar doente. Agora temia que já houvesse acontecido a transformação, como se, como Henry, ela só tivesse descoberto a doença bem depois de já ter sido devastada por ela.

Lá longe, à esquerda, começavam os rios Ohio, Allegheny e Mon misturados, a superfície em redemoinho, como uma lata de tinta revolvida, sulcos abertos por sobre o forte recuo das ondas. Ela imaginou seguir a água, dirigindo a noite toda, passando pelas cidadezinhas do pequeno rio com suas tavernas de tijolos, as fileiras de casas e caminhonetes enferrujadas, a estrada de ferro, os cantos e rios e seus redemoinhos correnteza abaixo, empurrando para Cairo, Saint Louis, New Orleans. Ela havia vivido mais de quarenta anos em Pittsburgh. Agora, subitamente, não havia nada que a prendesse lá.

- O novo estádio está quase pronto. -- Arlene fez um gesto na direção do litoral a distância. Era verdade. Estavam trabalhando inclusive nos fins de semana, os andaimes em torno da fachada pontilhados de capacetes de operários e um guindaste laranja enfeitado com uma grande bandeira dos Steelers.

- Tem jogo hoje -- disse Emily. -- E agosto mal começou.

- Buffalo.

- Ah, que bom, estamos indo diretamente para dentro do território inimigo.

- Talvez eu finalmente compre aquela camiseta -- disse Arlene.

Era uma velha piada. Os Bills treinavam em Fredonia, então os armazéns viviam cheios de propagandas dos Bills, os corredores eram uma fartura de chapéus, copos e canecas de cerveja, lanternas, placas de automóveis e bandejas. Os fãs apareciam em Winnebagos pintados com as cores do time e alguns de seus vizinhos em Chautauqua desfraldavam bandeiras azuis e vermelhas.

Estranho como as coisas mudavam. Quando ela era adolescente em Kersey, nas montanhas da Pensilvânia central, todos os seus amigos viam Buffalo e Pittsburgh como uma libertação, a única maneira de sair de sua pequena cidade. Das duas cidades, Pittsburgh era a mais glamourosa, idéia que agora parecia triste de tão inocente. Ela era tão caipira; Henry nunca se cansava de lembrá-la disso. As duas cidades pareciam mágicas na época, com as estações de rádio que ela lutava para pegar no aparelho do pai. Ambas eram famosas por trabalharem muito. Agora pareciam restos, perdidos e esvaziados, com a indústria forte tendo se mudado ou falido. Ela e Henry tinham passado a lua-de-mel, como todo mundo, nas Cataratas do Niágara. Tinham tirado a foto com capa impermeável a bordo do Maid of the Mist. Ela se lembrava de tê-lo beijado e de como a água corria pelo rosto dos dois como um chuveiro.

Ela não ia a Buffalo havia anos, e provavelmente jamais iria novamente.

- Havia algum torcedor em Buffalo? -- perguntou Emily.

- Havia algum pirata em Pittsburgh?

- Tirando Andy Carnegie e o Sr. Frick.

- Como está o Rufus?

- Ele está bem -- disse Emily, antes de se virar para conferir. Rufus estava deitado com a cabeça sobre as patas cruzadas, os olhos levantados para ela com uma expressão culpada. De cada canto de seus lábios de borracha caía uma gota pegajosa de baba. -- É um bom garoto.

- Rufus o Bufo. -- Aquele era o apelido das crianças, mas vindo de Arlene não parecia carinhoso.

- Seja boazinha com ele.

- Serei. Desde que ele fique em cima da toalha.

- Ele está em cima da toalha.

Arlene acendeu um Lucky e Emily abriu a janela. O ar entrou com força, com o som de um maçarico. Não ajudou a espalhar a fumaça, no máximo empurrou-a mais ainda em sua direção.

- Droga -- disse Arlene e encostou a cabeça no volante.

- Que foi?

- Esqueci de trazer filme. Quero tirar fotos da casa.

Em nome dos velhos tempos, pensou Emily.

- Você pode comprar aqui.

- Eu sei, mas... é que comprei um especial. Eu sei exatamente onde está, em cima da mesa da cozinha.

- Posso lhe emprestar um, eu trouxe bastante.

Emily não tinha pensado em tirar fotos do chalé, só de Kenneth e Margaret e das crianças. Quando a Sra. Klinginsmith, a corretora de imóveis, tinha pedido uma foto recente, Emily não conseguira encontrar nenhuma. A Sra. Klinginsmith disse que estava tudo bem, ela tiraria uma, e sacou na hora uma câmera digital de sua enorme bolsa. Emily e Henry tinham tirado centenas de fotos da casa, mas sempre nos fundos. Eles tinham horas de vídeo -- Sam e Ella jogando croqué, Sarah e Justin enxotando um Rufus mais novo para longe dos gerânios destruídos.

Ela havia assistido a alguns vídeos neste inverno, tentando captar uma imagem de Henry, mas ele estava sempre atrás da câmera, no máximo uma sombra na varanda, encolhido em sua cadeira. O único vídeo bom que encontrara era ele jogando beisebol com Sam e Ella. Kenneth devia tê-lo feito atrás da base do batedor, porque mostrava Lisa em primeiro plano e Henry usando o boné dos Pirates de lado, arremessando para trás e pelo meio das pernas, fazendo uma jogada totalmente errada apenas para pegar uma bola leve que Ella lançou na direção dele. E aí o cenário mudou para o sétimo aniversário de Ella, e Emily soube que Henry estava com a câmera porque Lisa trazia o bolo aceso e a própria Emily estava de pé ao lado da cadeira de Sam, cantando, os cabelos desarrumados depois de nadar, e ela interrompeu a fita e a rebobinou.

"Aqui vem o velho jogo no rádio", brincou Henry. "Você pode ouvir, mas não consegue ver."

Ela só assistiu à cena algumas vezes, a última delas bem perto da tela, como se pudesse chegar mais perto dele daquela maneira.

Eles tinham usado muito o vídeo quando os netos eram pequenos, tornando um acontecimento o fato de se sentarem em torno da televisão para assistirem a si mesmos, mas desde o último outono ela não se lembrava de tê-lo usado uma única vez. O Natal passou na casa de Kenneth e Lisa, a Páscoa na de Margaret (Jeff apareceu rapidamente para a caça aos ovos, mas tinha outros planos para o jantar). Hoje, como nesses dias, sequer passara por sua cabeça levar a câmera, e agora ela se lamentava por isso.

Olhou para o aterro verdejante que se erguia ao lado da auto-estrada, rosa com os arbustos de louros apesar da seca, com uma pedra lisa posta cuidadosamente num flanco bem-cuidado. As árvores estavam resplandecentes e a escuridão abaixo era absoluta. Emily imaginou até onde iriam e o que vivia nelas, mas sem qualquer interesse verdadeiro. Só queria ter algo para olhar, para impedi-la de ficar remoendo coisas sobre as quais nada podia fazer.

Não era apenas viajar de carro que a fazia se desligar assim. Assistindo à TV ou lendo ela também surpreendia sua mente se esquivar dos imodificáveis fatos novos de sua vida, como Rufus enroscando a coleira em torno do plátano distante. Como ele, ela só conseguia tirar mais cascas da árvore, deixando ainda mais cicatrizes abertas. Para aliviá-las, ela lembrava, e a lembrança se tornava um mundo inteiro, um sonho que ela podia atravessar. Parecia real, mas depois ele se ia e ela ficava com a cozinha, a lata de lixo quase cheia, a mosca que voava no andar de baixo batendo nas telas, fazendo-a persegui-la com uma revista.

Arlene estava atrás de um caminhão-tanque prateado. Uma fila de carros ultrapassou-as pela esquerda enquanto Arlene mexia a cabeça na direção dos espelhos e sobre o ombro. Abriu-se um espaço no fluxo. No último instante, Arlene disse "Não vou conseguir" e voltou atrás. Ela esperou até que todo mundo tivesse ultrapassado, depois sinalizou corretamente e ultrapassou o caminhão, seu reflexo distorcido no tanque enquanto passavam. Uma placa verde na lateral do caminhão dizia: CORROSIVO. Outro losango ao lado dela mostrava um tubo de ensaio pingando líquido numa mão sem corpo, salpicada de marcas de choque desenhadas.

- Adorável.

- O que é adorável? -- perguntou Arlene, concentrada na estrada.

Emily explicou.

- O que você acha que é?

- Algum tipo de ácido industrial, imagino.

Aquela era uma resposta que Henry teria dado, vaga mas promissora. Emily não tinha idéia do que poderia estar no caminhão e não ligava. Algum produto químico. O motorista o entregaria em alguma fábrica, onde fabricariam alguma coisa que as pessoas comprariam e colocariam em suas casas e usariam até que se quebrasse ou fosse relegado ao sótão ou a um brechó, depois finalmente seria jogado fora, largado para enferrujar em algum galpão ou para apodrecer sob toneladas de lixo num depósito enquanto mais caminhões passavam por ali dia e noite.

Um veado morto estava largado à direita da estrada. Era um cervo malhado, tinha o pescoço virado para trás de forma antinatural, com sangue escuro ainda saindo do nariz manchando o chão. Arlene obviamente o viu, mas não disse nada -- para poupar seus sentimentos, supôs Emily.

Ela quis reagir, lembrar Arlene de que era uma garota do campo, de uma família de caçadores dedicados, íntima de estradas secundárias cheias, na primavera e no outono, de gambás gordos e molhados e guaxinins emborcados. E na verdade ela se acostumara com a morte. Havia tantas coisas mortas quanto vivas no mundo. Mais. Para onde quer que se olhe há um cemitério, uma folha seca, uma casca de inseto. E mesmo assim o mundo gira, verde e ocupado como sempre.

O que secretamente a levava às lágrimas agora não era a morte, mas separações. Assistindo à TV, ela se reduzia a fungadas e enxugamento de olhos vendo soldados acenando de trens, mães pondo crianças em ônibus escolares, confetes caindo sobre os conveses de navios de cruzeiro. Não precisava ser algum filme envolvente para pegá-la. Um comercial de serviço de longa distância era capaz de fazer isso. E a qualidade não importava -- podia ser totalmente óbvio, manipulador, em tom sépia e em câmara lenta, e ainda assim batia nela como uma pedra. Era engraçado, porque na vida real ela não tinha qualquer problema para dizer adeus, simplesmente o fazia e ia embora (uma característica que creditava ao luteranismo severo da mãe). Ela e Henry tinham tido um ano para dizer adeus um ao outro, e ela havia ficado feliz com o trabalho que fizeram. Não ficou nenhuma pendência, nada deixou de ser dito entre eles. Então por que esses clichês a levavam às lágrimas?

- Comprei pratos de papelão -- disse Arlene.

- Eu também. E guardanapos?

Teriam de parar no Golden Dawn depois que chegassem.

- Devíamos fazer uma lista. -- Emily mexeu na bolsa. -- Papel-toalha, filme... o que mais?

Torta de uma parada na estrada. A estação das amoras ainda duraria mais uma semana. Elas poderiam esperar até o dia seguinte para comprar milho e pegar duas daquelas galinhas assadas do Lighthouse. Será que teriam de telefonar para encomendar? Provavelmente, porque era fim de semana. Pêssegos. Tomates. Teriam de fazer uma viagem separada para a casa de queijos e pegar um pedaço do cheddar extrapicante de que as crianças gostavam.

Depois de muitos quilômetros dentro do carro, o ar condicionado estava ficando frio demais. Floresta, corvos, polícia. Ela havia feito essa viagem inúmeras vezes, mas, mesmo assim, alguns trechos ainda a surpreendiam. Tinha esquecido do celeiro que costumavam mostrar para as crianças quando elas eram pequenas, o aviso bobo apagado, mas legível: MASQUE TABACO MAIL POUCH. VOCÊ MERECE O MELHOR. Um recuo do acostamento estava bloqueado, com uma van personalizada com os vidros traseiros facetados como diamantes parada inexplicavelmente no terreno vazio. Nuvens emendavam-se no céu até o horizonte enquanto um vapor rápido subia do porto. Os arvoredos deram lugar a fazendas de gado leiteiro, passando preguiçosamente por celeiros vermelhos e campos crescidos com bardanas e flores de cenoura. Em Mercer, foram apanhadas por um temporal. Uma chuva tão pesada que Arlene freou e Emily se segurou à espera da batida. Pouco mais de um quilômetro adiante fazia sol e um arco-íris se erguia detrás das montanhas.

- Faça um pedido -- falou Emily, se concentrando e pensando, devagar, como se falasse com Deus: eu desejo... que todos compreendam.

Elas saíram da 79 e seguiram para leste ao longo do Lago Erie, Arlene passando hesitante pelas quatro faixas da I-90. Atrás, Rufus arfava por ar, bufando e engolindo com dificuldade. Para tranqüilizar Arlene, Emily virou-se no banco e falou carinhosamente com ele.

- Você está bem -- disse ela, mas Rufus não pareceu convencido.

Ele levantou a cabeça, tonto e confuso.

- Não! -- tornou Emily. -- Abaixe-se!

Ele se abaixou, o focinho pulando com um soluço.

- Será que eu devia parar no acostamento? -- perguntou Arlene.

- Ele está bem. Não falta muito.

- Tem mais uma hora.

- Quarenta minutos -- corrigiu Emily. -- Continue dirigindo. Ele não vai vomitar nos seus preciosos bancos. E, se ele vomitar, eu limpo.

- Só estava querendo ajudar.

- Desculpe. Sei que você não gosta dele.

- Gosto dele, só não quero que vomite no meu carro.

- Bem, isso é o que cachorros fazem, não posso fazer nada a respeito. -- Emily suspirou com a insignificância do argumento e o fato irritante de que ela estava errada. -- Olhe, agradeço pela carona e sinto muito que ele não seja o melhor dos passageiros. Não quis ser grosseira, só quero chegar lá.

- Não me importo com ele, de verdade -- disse Arlene, como se já tivesse aceitado as desculpas.

A placa dando as boas-vindas para quem vinha de Nova York estava marcada com manchas amarelas de paintball, e o painel com o nome do novo governador com um verde mais escuro. Cruzando a divisa, Kenneth e Margaret costumavam levantar os pés do chão e manter as mãos no ar, algo que tinham aprendido no ônibus do acampamento da igreja. Emily pensou em fazer aquilo agora, mas sabia que Arlene ficaria desconcertada.

Quase conseguia ouvir Henry dizendo que ela se controlasse, quase podia ver o olhar de lado que ele lhe daria querendo dizer "por favor, vá com calma" com Arlene ou, com mais freqüência, com Margaret, cuja personalidade parecia ter sido criada para induzir Emily à violência. Ela ainda não havia conseguido se recuperar do modo como Margaret tinha tratado Jeff. Nem Jeff, aparentemente, porque havia se separado dela. O fato de que provavelmente a característica que ambos tinham em comum era o que finalmente o afastara parecia fazer sentido para Emily. Para Margaret, foi a prova de que ela precisava para demonstrar que mais uma vez a mãe tinha arruinado a sua vida. Os dois estavam oficialmente separados havia menos de um ano, mas pelos telefonemas escassos de Margaret e pelo que Kenneth deixava escapar, o divórcio parecia mais provável do que a reconciliação.

Sua própria mãe não se sentiria justificada agora, sempre lhe dizendo que se acalmasse e segurasse a língua? "Por que você não consegue ser gentil?", perguntou-lhe a mãe uma vez, agarrando o braço dela com força. E que resposta Emily poderia lhe dar? Ela via a mesma raiva impotente em sua filha e era tão ineficaz como ela para salvá-la. E quem salvaria Emily quando tudo se acumulasse?

Henry a salvara. Seu coração tranqüilo tinha sido o bálsamo perfeito para o dela. Agora que ele tinha morrido, ela temia se tornar azeda, descontando nos que estavam à sua volta. Às vezes parecia que era exatamente o que estava acontecendo. Era difícil dizer. Era como passar pela menopausa de novo, aquelas mudanças loucas -- ou como estar grávida. Metade do tempo ela não tinha idéia de por que se sentia daquela maneira, exceto pela justificativa genérica de que Henry estava morto.

- Aqui -- disse Arlene, mostrando uma placa que se aproximava. -- Trinta quilômetros.

A via 17 era tão nova que as pontes ainda estavam em construção. Postes listrados de laranja e amarelo assinalavam as duas estradas que levavam a um túnel entre barreiras de concreto. Arlene aproximou ainda mais o rosto do volante e Emily sentou-se ereta, como que lhe emprestando sua atenção. Ninguém estava trabalhando, mas um guarda tinha escondido a radiopatrulha atrás de um caminhão de água empoeirado.

Arlene estava indo devagar o suficiente para não haver problema, mas, por reflexo, Emily endureceu como se pega de surpresa, um espasmo irregular atravessando-lhe o corpo. Henry dirigia mais rápido, ele acreditava muito no Olds V-8.

- Que golpe baixo -- disse Emily.

- E é uma área de trabalho, então as multas são dobradas.

- Mesmo que ninguém esteja trabalhando. Que armação.

Chegaram a uma placa indicando Panama e depois, ao largo de um campo abandonado, a um grande cartaz para Panama Rocks, aonde tinham levado Kenneth e Margaret quando crianças. Margaret era gorducha na época e se recusou sequer a tentar passar pela fenda entre as pedras, ficando do lado de fora enquanto os outros se apertavam, a barriga achatada contra as paredes frias cheias de musgo. Ela sempre ficava afastada de alguma maneira e Emily fracassara nas tentativas de aproximá-la.

Rufus tinha se acomodado de novo em seu ninho. Um fio de baba secava sobre o nariz.

- Estamos quase chegando -- prometeu Emily.

Elas pegaram a saída para o Instituto, seguindo um asfalto esburacado e passando por casas tortas em estilo grego com máquinas de lavar nas varandas e cavalos e vacas pastando. A estrada se desfazia em manchas, com os pedriscos batendo embaixo do carro e flores selvagens tomando o acostamento. Aquilo fazia Emily se lembrar de Kersey e seus atalhos esburacados pela floresta cheia de declives e ziguezagues. As velhas fazendas eram as mesmas, com os adornos góticos nos topos das colinas protegidos por cercas de carvalhos e salgueiros, caixas de correspondência saindo de latas de leite brancas, lagos com pequenas plataformas para as crianças nadarem, patos tomando sol num barco a remo virado. Ela podia viver ali, desistir da casa na cidade e ficar observando a neblina chegar às árvores ao anoitecer, as vacas mugindo no caminho para casa.

Outra placa apareceu numa altura pequena: TANQUE VAZIO? COMPLETE COM JESUS.

Isso seria mesmo bom, pensou.

- O milho está alto -- observou Arlene.

- Os milharais estão voltados para o norte para pegar os efeitos do lago.

- Espero que não chova como no ano passado.

Emily não tinha vindo no verão passado por causa de Henry, mas ficara sabendo das histórias de terror -- as crianças jogando videogame e brigando o dia inteiro. Podia imaginar Arlene deixando a casa, com um poncho atirado sobre os ombros, saindo para caminhar perto da área de pesca e apagando os Luckies nas gotas de chuva.

- Não vai chover -- disse Emily. -- E, se chover, encontraremos alguma coisa para fazer. Sempre tem um baralho.

- Lembro que Justin adorava xadrez.

- E Ella gosta de TV. É Sam que fica estranho.

- Talvez se fixarmos um limite de tempo. Quem vai chegar lá primeiro?

- Kenneth.

- Talvez se você falar com a Lisa.

- Posso tentar -- disse Emily.

- Vocês duas já fizeram as pazes?

- Agimos civilizadamente, pode-se dizer assim.

- Ai, ai -- disse Arlene, diminuindo a velocidade para observar uma enorme construção vitoriana pintada em tons berrantes de mostarda e framboesa. POUSADA PLUMBUSH, dizia uma placa clamativa pendurada ao estilo dos pubs do lado de fora. A vista da varanda ao redor da casa dava para uma carroça de feno improvisada na estrada e, mais adiante, no campo inclinado, a carcaça amarronzada de uma caminhonete.

- Imagino que os vizinhos adoram isso -- comentou Emily.

Mais perto do lago, elas viram mais casas novas, todas modulares, trazidas da mesma fábrica. Uma tinha uma antena parabólica do tamanho de um pequeno avião instalada ao lado, outra uma bandeira dos Bills na janela da sacada.

- Será que eles a deixam hasteada o ano inteiro? -- perguntou Arlene.

Finalmente, chegaram ao cruzamento da 394, pouco depois do Instituto. O Andriaccio's ainda estava lá, com o estacionamento apinhado por causa do movimento da hora do almoço. O súbito choque de atividade -- um garoto de muletas se balançando pelo terreno, um homem alto de short segurando a porta para um casal mais velho sair -- pareceu convidá-las a entrar. Ou seria o próprio Instituto, aquela idéia de um verão relaxante e magnânimo, que a atraía? Esperando enquanto o trânsito estava parado, Emily observou a colina e, por cima do portão de ferro, as pequenas cabines de sempre, simples e organizadamente espaçadas, como túmulos, imaginando um dia incrível da adolescência e a dedicação casta a seu instrumento e aos grandes mortos. Enquanto passavam, abriu a janela, esperando pegar uma frase graciosa de oboé ou o suspiro profundo de um violoncelo. Não ouviu nada.

- Emily, olhe -- disse Arlene, incrédula. -- O Putt-Putt.

A cerca laranja e branca ainda estava lá, mas tudo, até os banheiros de concreto, havia sido derrubado. Havia uma placa de ALUGA-SE fincada na frente do local.

- Kenneth vai ficar muito chateado.

- Achava que eles ganhavam dinheiro com o Instituto aqui.

- Claro que não -- respondeu Emily.

Ela conhecia tudo ali: a loja de Natal; a lavanderia com água quente onde ainda lavavam os lençóis e as toalhas; a escola agora usada como depósito. Diminuíram a velocidade ao passarem perto da entrada do Instituto e por um carro de polícia vazio deixado perto da cabana de manutenção como uma isca. Depois, seguiram ao longo dos exuberantes campos de golfe do clube (aparentemente, não havia problemas para conseguir água). Henry gostava daquele campo. No número seis havia um lago, e ele sempre fazia um montinho para colocar a bola no lugar certo, lançando-a através dos juncos ao lado da trilha de carrinhos. Uma vez ele encontrou uma cobra e saiu correndo com seu ferro nove. Emily não havia jogado em nenhum clube durante todo o ano passado. Ela e Kenneth teriam de dar sua volta tradicional. Seria o único momento que teriam sozinhos.

E havia a Wagon Wheel, com suas placas enferrujadas:

DELICATESSEN

JORNAIS

GELO

FILMES

E os chalés e o camping de We Wan Chu, que agora tinha o próprio site na Internet.

- Agora eu já vi tudo -- disse Emily.

- Estava funcionando no ano passado.

Arlene diminuiu a velocidade para passar pela Manor Drive e Rufus se levantou, encostando o nariz no vidro da janela. A virada convenceu-o a abaixar e se enroscar novamente. Ele estava bem fora da toalha agora, mas Emily deixou assim mesmo.

A rua estava inteiramente na sombra, pouco mais larga do que o carro. A associação tinha posto uma placa de 25km/h. O policial que tinha um trampolim e um setter irlandês estava em casa, mas as pessoas que tinham aquela feia piscina acima do solo, não. Os Nevilles tinham vindo em peso e estavam com a entrada da casa cheia de minivans e jipes, a garagem aberta para mostrar o velho fusca conversível. Duas garotinhas que ela não conhecia, trajando maiô e tênis, andavam de bicicleta pelo jardim.

Por entre as casas, Emily pôde ver o lago, onde um barco da classe Laser balançava perto da margem.

- Parece estar fresco por lá -- disse, mas Arlene tinha diminuído a velocidade para deixar passar algumas crianças maiores de bicicleta. Pareciam ser dos Craigs, empunhando raquetes de tênis. Uma garota loura acenou e elas automaticamente responderam. Vizinhos.

Mais além, um Cadillac vermelho com placas da Flórida estava numa garagem coberta.

- Os Wisemans estão aqui -- exultou Emily, porque no último ano Herb Wiseman tivera um enfarte e eles não vieram.

- Os dois ou só Marjorie?

- Não consigo imaginá-la dirigindo aquele carro, você consegue?

- Vamos ter de conferir.

A casa dos Lerners estava à venda, também com a Sra. Klinginsmith. Ver aquela placa incomodou Emily. Ficou imaginando o quanto estariam pedindo.

Rufus tinha ficado de pé de novo, virando-se para olhar para tudo.

- Ele sabe -- disse Arlene.

Emily conseguiu ver parte do chalé, obscurecido pelo grande castanheiro ao lado da garagem.

- Bem, ele não pegou fogo -- comentou.

Mais perto Emily pôde ver os lírios alaranjados enroscados na caixa de correspondência. Alguma coisa caía de dentro dela -- um folheto num invólucro de plástico --, e Emily pensou que devia haver uma lei contra entregar correspondência quando as pessoas não estavam em casa. Era um convite.

Deram a volta no gramado, passando sobre galhos caídos. O chalé estava bem, até resplandecente. Ela não tinha visto a pintura nova, cinza com venezianas vermelhas e detalhes em branco. Não era de surpreender que os compradores tivessem pago o preço pedido. Um par de novas vigas de aço mantinha a chaminé ereta e a velha antena de TV não existia mais. Tinham pintado até a garagem e lixado o musgo das telhas. Parecia melhor do que nunca, quase artificial. Imaginou o que Henry diria.

Rufus arranhou o vidro do carro.

- Para baixo -- disse Emily, mas ele estava excitado demais.

Arlene parou o carro e Emily o deixou sair. Ele latiu em torno da lateral do chalé e se abaixou, olhando para trás, por cima do ombro. Mais uma coisa para limpar. A toalha estava coberta de pêlos, um tufo unido numa mancha de baba. O banco estava bem, embora Arlene estivesse fazendo uma cena, limpando-o com a mão.

- Eu vou lavar a toalha -- frisou Emily, embolando-a.

Quando terminou, Rufus voltou, correndo em volta delas, como se as chamasse para segui-lo, depois correu direto para o cais. Arlene o ignorou e abriu o porta-malas.

- Vamos levar só a comida para dentro por enquanto -- sugeriu Emily. Encontrou as chaves, enfiou a mais brilhante na porta da cozinha e escorou a tela engordurada para que ficasse aberta. O lugar cheirava a mofo, como um porão. Emily procurou entre as chaves (cada uma etiquetada com a letra elegante de Henry) e saiu novamente para ligar a água.

Enormes, as aranhas tinham andado ocupadas com as teias enfeitadas de insetos e pontilhadas com ovos que pareciam algodão. Sobre os controles, pregada à parede e pingando de umidade, estava uma lista de instruções que Henry tinha escrito para Kenneth. Ela acionou o interruptor e a bomba resmungou. A água ali era fraca e fedia a enxofre. Aquilo fazia Emily se lembrar de quando nadava no lago e pendurava as roupas na cerca dos fundos, trinta, quase quarenta anos antes, quando os filhos ainda eram pequenos. Todos aqueles verões tinham acabado, mas ela era capaz de lembrar deles intensamente -- como agora. Queria vivê-los de novo, aqueles longos dias de agosto, o croqué, os jogos de beisebol e os acampamentos, o esqui atrás do barco. Acreditava que era por isso que iam para lá todos os anos. Por causa desse sentimento de eternidade e proteção.

Trancou a casa da bomba. No caminho para a garagem, escorregou num ladrilho coberto de musgo e quase perdeu o equilíbrio. "Burra", disse a si mesma. Todos os anos, esquecia-se do quanto eles eram traiçoeiros. É só pensar, lembrou.

Ninguém tinha se dado ao trabalho de limpar a garagem. As tralhas de Henry estavam por todo lado: rótulos de cerveja e cestas, isopores e baldes, equipamentos de pesca, latas de gasolina para o barco, caixas empilhadas com garrafas empoeiradas de cervejas Iron City e Genesee, uma lata de lixo de aço cheia de gravetos. Pendurados na parede dos fundos, um bote salva-vidas murcho e um trio de bóias de barco em forma de sereia com os seios expostos que envergonhavam Kenneth quando ele era adolescente. Através da embaçada janela dos fundos ela viu Rufus lá fora, na ponta do cais. Pensou em ir até lá sentar-se com ele, mas a bancada de trabalho de Henry chamou sua atenção.

O guarda-pó estava numa das pontas da mesa, como se o esperasse. O resto era um amontoado de luvas de trabalho enroscadas e copos de plástico cheios de parafusos, rolos de fio de náilon amarelo, um lixador portátil, latas de tinta spray e removedor, pregos em saquinhos de papel amassados, cola de madeira, uma pistola de calafetar descascada, uma bomba mata-insetos, velhos fusíveis de rosca, discos de lixas rasgados, misturadores de tinta do True Value de Mayville, um gancho torto, uma lata de óleo três-em-um, um Maxfli marcado, uma lâmpada escura. Resistiu à vontade de tocar naquilo tudo e ficou ali sentindo o cheiro, apreciando a bagunça. Perguntaria a Kenneth se ele queria as ferramentas. Ele provavelmente levaria todas para que ninguém as jogasse fora. Era realmente filho dela.

Dentro da casa, Arlene remexia nos armários.

- Onde está aquela tigela em que sempre colocamos as frutas?

- A verde.

- É aquela ali?

Emily conferiu acima da máquina de lavar louça e à esquerda do fogão, depois a bandeja giratória embaixo do balcão.

- Esta aqui.

- Não lembrava que era esta. Achei que era laranja, por algum motivo.

- Há muito mais frutas?

- Não, é só isso.

- Você se importa se eu descer até o cais por um segundo antes de comermos?

- Pode ir. Não há lugar aqui para nós duas de qualquer maneira.

O vento estava soprando, levantando marolas na água. Estava fresco sob o castanheiro, mas, assim que ela pisou no cais, o rosto esquentou. O lago estava vários metros abaixo do nível normal e cheio de vegetação. Conchas peroladas de moluscos espiavam-na do fundo. Rufus estava deitado e levantou a cabeça para ver quem se aproximava. Deslizando, o Starcraft balançava e batia, com as bordas rangendo. A bela cobertura salmão que Henry tinha comprado estava marcada com cocô de andorinha. Como os compradores tinham seu próprio barco, a Sra. Klinginsmith tinha conseguido que o Smith Boys de Ashville o comprasse. Emily não discutiu. O barco tinha quase trinta anos e o motor Evinrude costumava deixá-los na mão. Era curiosa a quantidade de coisas das quais ela podia se desligar agora -- muito pequena, na verdade.

Emily alcançou a parte mais larga do cais e rodeou Rufus para se sentar no banco. Ele se levantou e caiu pesadamente a seus pés. Ela se abaixou e o acariciou, coçando distraidamente atrás de suas orelhas.

- Aposto que você está feliz por ter saído do carro.

Rufus ergueu o olhar como se ela tivesse dito alguma coisa vitalmente importante. Os olhos do cão estavam opacos pela catarata. Ultimamente ele vinha dando encontrões nas portas. Emily não sabia o que faria se ele começasse a ter incontinência.

- Você está bem. Você está ótimo.

No cais ao lado, um pato de madeira apanhava o vento, as asas girando vagarosamente em direções opostas, como um relógio desordenado. Ela se reclinou e olhou para a margem mais distante. O tempo tinha estado tão seco que algumas árvores já haviam começado a mudar, não para um vermelho brilhante, mas para um matiz escuro e doente. Ficou pensando se elas morreriam ou voltariam no ano seguinte. E então se deu conta de que nunca saberia. Lembrou-se de uma sequóia caída que tinham visto na Califórnia, décadas atrás, em alguma viagem mais longa quando as crianças eram pequenas. Os círculos do tronco tinham tamanhos diferentes: os mais finos indicavam anos de seca. Talvez este ano fosse ser assim, e o próximo seria melhor.

Olhou para as ondas como se elas pudessem lhe dar uma resposta. Rufus ficou sentado e empurrou o focinho molhado para baixo de sua mão. Ele tinha sentido falta do café da manhã, e agora, fora do carro, estava com fome.

- Eu sei -- disse ela --, você teve muita paciência.

O próximo ano teria de ser melhor. Realmente.

Em toda a sua concentração, tinha parado de acariciar Rufus. Ele havia virado de costas para ela para ver o lago, e pareceu estar vesgo quando levantou a cabeça para questioná-la. A língua pendia para o lado, e ela imaginou como era possível ser aberto ao mundo daquela maneira. E tão generoso ainda por cima.

- Você é um bufo -- disse ela e tateou o pescoço enrugado embaixo do nariz, a raiz dos pêlos. O sol estava brilhando, mas o vento soprava, fazendo as asas do pato girarem como um cata-vento e cortarem como uma hélice. Os cabelos batiam em seu rosto com força. -- Venha. -- Juntos, os dois voltaram para o chalé. Arlene precisava de ajuda com o almoço.
 

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