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17/03/2007 - 08h30

Leia trecho de "Modernismos", livro com ensaios de T.J. Clark

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da Folha Online

Leia a seguir trecho do artigo "O Estado do Espetáculo", do livro "Modernismos", obra com ensaios de T.J. Clark que está sendo lançado pela editora Cosacnaify. Reportagem sobre o livro é publicada na Folha deste sábado.




Gostaria de dar algumas explicações antes de iniciar esta palestra. O que vocês vão ouvir baseia-se no capítulo final de um livro que escrevi juntamente com três colegas do coletivo da Bay Area: Iain Boal, Joseph Matthews e Michael Watts. Cada linha desse trabalho foi discutida e reescrita em conjunto. O livro intitula-se Afflicted Powers:Capital and Spectacle in a New Age of War. É claro que uma parte dos argumentos que vou apresentar aqui derivam das idéias contidas nos demais capítulos desse livro, mas expô-lo integralmente tomaria tempo demais. Adianto apenas que os fundamentos da análise que pretendo desenvolver sobre a "política do espetáculo" são discutidos em um capítulo anterior do mesmo livro, intitulado "The State, The Spectacle and September 11" (O Estado, o espetáculo e o 11 de setembro), publicado em versão preliminar na edição de maio/junho de 2004 da New Left Review. No capítulo que precede a conclusão de Afflicted Powers, examino com alguma profundidade o fenômeno do Islã revolucionário no intuito de relacioná-lo mais estreitamente às complexidades atuais da sociedade islâmica.

Vocês notarão que de vez em quando me refiro a uma entidade pensante que denomino de "a esquerda". Estou perfeitamente consciente dos problemas implícitos nessa referência e os discuto na Introdução de Afflicted Powers - para não dizer no próprio título. Mas, para o bem ou para o mal, a esquerda continua a ser minha interlocutora. Comecemos então. Minhas primeiras palavras vêm de Nietzsche, em Além do bem e do mal.]

O instinto que os leva a se afastarem da realidade moderna não está refutado- que nos interessam suas vidas retrógradas e tortuosas! O essencial neles não é que desejem ir "para trás", mas que desejem ir embora! Um pouco mais de força, impulso, ânimo, senso artístico: e desejariam ir além - e não para trás!
Não começo este artigo com Nietzsche porque concorde com ele, mas porque a citação remete diretamente à crise atual - ao eterno transe da modernidade, e aos que a ela se opõem -, ainda que, em última instância, a jocosidade "nietzschiana" à guisa de resposta seja inútil. A situação é muito pior do que Nietzsche jamais imaginou. Sua concepção da felicidade do Último Homem, que continua a assombrar todas as descrições razoáveis da modernidade - isto é, um futuro em que "todos querem o mesmo, todos são iguais: quem sente de outra maneira vai voluntariamente para o hospício" - me parece passar ao largo de todo o horror do momento atual. A felicidade do Último Homem está em construção e a unanimidade rasteira que essa felicidade promete ainda é a última (e iminente) distopia. Mas quem teria sonhado, e há tão pouco tempo, somente cinco anos atrás, que o Estado do Prozac em breve se revelaria o Império do Choque e do Terror? Quem poderia prever que o deslumbrado contentamento do mundo-imagem do século XXI acabaria sendo progressivamente ofuscado por uma universal e impiedosa "Vontade de Retorno"? E uma "Vontade" que foi capaz de tirar proveito justamente da tecnologia do Último Homem --o aparato do espetáculo-- que se destinava a destruir.

Esta análise só pretende ser nietzschiana no sentido de que seu objetivo é compreender o horror do presente como mais uma crise na interminável sucessão de crises da própria modernidade; no sentido de que não se frustra nem se apavora com o retorno do antigo, do retrógrado e do atávico para interromper o festim consumista; e de que considera que o recrudescimento do passado atesta a verdadeira face da modernidade que temos --o presente falsificado e o sonho ainda mais fraudulento do futuro--, e por isso empurra sem cessar, em sua periódica "humanidade", para o que está sendo mobilizado mais uma vez. O terceiro grande tratado de Nietzsche em seu A genealogia da moral, que junta os fios de sua análise da religião, tem o título de "Qual o significado dos ideais ascéticos?". Creio que a esquerda, nas circunstâncias atuais, desafiada pelo fenômeno da Al Qaeda, somente poderá contribuir para uma política do futuro se fizer a si mesma a pergunta de Nietzsche; e de uma forma que incida de modo perturbador em sua própria história. "Qual o significado do ideal da vanguarda?" - eis a questão. (Ou, de outra maneira, "O que significa ser militante?". Ou, ainda, "Por que o leninismo não morre nunca?".) Por que os seres humanos, expostos à crueldade e à decepção do presente, parecem ser atraídos inelutavelmente para uma ou outra versão do "ideal do guerreiro" (ou o do guerreiro combinado com o do autoflagelador): dureza de espírito, implacabilidade, comprometimento irrestrito, isolamento contra a insignificância da vida cotidiana; enfim, uma dedicação à Morte - a fazer, forçar, a história, e a reescrever o futuro de acordo com a escritura de algum funesto Messias?

Os perigos são evidentes. A última coisa que eu faria nos argumentos que se seguem é reduzir a resistência do mundo muçulmano à modernidade a um modelo simples de Unidade e Jihad. Em suas formas atuais, o islamismo, que ainda passa por mutações e metástases nas cidades miseráveis do mundo do Banco Mundial, está longe de ser um movimento solitário de vanguarda. O livro do qual se originou este ensaio traz imediatamente antes deste um capítulo intitulado "Revolutionary Islam" [Islã revolucionário], que tenta analisar toda a complexidade e ambigüidade da política islâmica nos últimos vinte anos. Por ora, direi apenas --como deliberada contraposição ao hoje costumeiro e vulgar apelo à complexidade e compreensão, que facilmente se converte em desculpa para não dizer nada-- que o fenômeno da Al Qaeda ainda é fundamental e impossível de evitar. Não se pode considerar o islamismo equivalente à sua vanguarda revolucionária; no entanto, infelizmente, o mundo jamais esteve diante da evidência clássica de um campo tão propício aos ideais da vanguarda quanto os bilhões de novos habitantes de cidades como Jacarta, Karachi, Abidjã, Cartum, Dacca, Casablanca, Manila e a Grande Cairo. Clássica, mas sem precedentes. Nunca se viu antes, em tal extensão e em tamanho estado de irregenerável pobreza e incertezas, a matéria-prima humana que a vanguarda tenciona mobilizar (e sacrificar). A assustadora realidade é que nunca antes os miseráveis da terra existiram em tal situação híbrida de perplexidade e fúria, com as imagens de consumidores satisfeitos despejadas todas as noites pela televisão à platéia de seus novos servos endividados, em quartos alugados a preços escorchantes.

Vocês devem estar lembrados de que Nietzsche não menosprezou o grande fato com que tentava se defrontar: ele queria compreender o propósito - não só o apelo, mas a função histórica - do impulso à renúncia e ao sacrifício de si que tanto dominava as idéias que as pessoas tinham de si mesmas. A esquerda deveria refletir sobre a Al Qaeda com esse mesmo espírito, fazendo soar lado a lado as palavras e as ações de Bin Laden, de Lenin, Blanqui, Mao Zedong, Baader e Meinhof, e Durruti. O ideal dessa vanguarda tinha, sem dúvida, uma função: seu caráter implacável, secreto e sua impiedosa instrumentalização dos seres humanos foram uma resposta, ainda que distorcida, a uma série de condições ou possibilidades reais de reconstruir nossos (sempre) "afflicted powers" [poderes feridos]. O ideal dessa vanguarda era uma resposta compreensível à realidade que a imagem do homem encapuzado de Abu Ghraib agora sintetiza: a realidade da história. Compreensível mas não menos sinistra, tanto para a vítima como para os que trabalhavam, no mesmo momento, com a finalidade de erigir uma política na qual a "vítima" pudesse tornar-se agente da mudança, em vez de mais um escravo anônimo na grande procissão dos encapuzados, sempre prontos a ser guiados por Moisés para a terra prometida. Sonho com uma resposta à pergunta "o que significa o ideal da vanguarda?" que mantenha uma linha de equilíbrio entre a exaltação de um ideal --a percepção geral é que na Al Qaeda esse ideal encontrou uma expressão perfeita e radical-- e o discernimento das forças em que se sustenta.

Retomemos então o fio da meada, voltando à conjuntura dos últimos quatro anos. Hoje em dia, qualquer tentativa de análise política tem de começar, creio eu, por uma caracterização das novas condições criadas em setembro de 2001: isto é, sua profunda e desconcertante duplicidade. Fomos de súbito jogados numa época de terrível atavismo, um mergulho em antigas lutas ideológicas e geopolíticas que nos fazem recordar ora a "corrida para a África", ora as "guerras de religião". Mas esse brutal retorno do passado vem acompanhado --e aí reside o verdadeiro desafio à compreensão-- por uma mobilização política igualmente monstruosa (e a queda na cilada) do aparato de uma moderna, para não dizer hipermoderna, produção de aparências. Interesses e repertório de imagens colidem. Um imperialismo sem máscaras une-se ao controle da "informação". Erros ou excessos na administração do mundo da imagem produzem conseqüências políticas imediatas, como logo descobriu Aznar na esteira dos ataques da Al Qaeda em Madri. E a derrota total na guerra das aparências é algo que nenhuma potência hegemônica da atualidade pode tolerar. Se a esquerda pretende sobreviver como uma entidade política, sua grande tarefa (teórica) será então a de refletir sobre a relação desse atavismo com a neomodernidade [new-fangledness], enquanto aspectos interrelacionados do sistema mundial nascente.

Que forma deverá assumir o pensamento político nessas circunstâncias? Sonho com uma forma de análise disposta e capaz de alternar, página por página, parágrafo por parágrafo, entre a dura e desagradável objetividade dos dados materiais --a frieza dos dados sobre lucros, as pilhas de estatísticas sobre óbitos e pobreza-- e uma indagação mais ampla acerca das formas vigentes de controle social. Essa dupla perspectiva, repito, é fiel à realidade do momento. Disso não se deve concluir apressadamente que "materialidade" nesse caso é sinônimo de capitalismo e que "espetáculo" corresponde a um mundo-imagem descarnado, ou a um domínio de representações (impalpáveis) internalizadas. O espetáculo é um exercício de poder social. Violenta os atores humanos tanto quanto a disciplina da linha de produção. O espetáculo provém do cano de uma arma de fogo. Na equiparação entre "atavismo e neomodernidade, também é preciso atenção para não atribuir prontamente um ou outro fator da situação atual a uma ou outra dessas categorias. Neomodernidade não é análoga a espetáculo. Atavismo não é análogo a guerra ou à Al Qaeda. O objeto da análise política atual --se tivesse de resumi-lo numa frase inevitavelmente deselegante-- são as contradições do neoliberalismo militar nas condições do espetáculo. Diferenciar o velho do novo nessa confusão infernal não vai ser fácil.

É preciso dessacralizar o conceito de "espetáculo". É preciso aplicá-lo localmente e de modo conjuntural, fazê-lo sujar as mãos com os detalhes específicos da política e apeá-lo de sua posição de explicação profética definitiva de todas as coisas. É preciso pensar na idéia de que o espetáculo tem uma história em curso e não é automaticamente capaz de assimilar cada evento desestabilizador. Um mundo-imagem pode entrar em crise, como me parece ter acontecido em setembro de 2001. E dizer isso não envolve nenhum veredicto definitivo sobre a profundidade da crise ou sobre o perigo a longo prazo que representa para a administração simbólica do aparato do espetáculo. A crise pode ou não ser passageira. Mas é uma crise. O mundo das aparências sofreu em certa medida uma reconfiguração. Mas o fato de reconhecermos que o aparato imagístico é capaz de recuperar aquele momento inaugural --de até admitirmos que a "crise" é um repetido tropo do espetáculo em si, sempre mostrando na tela lampejos da ameaça e do fascínio de alguma forma de "modernidade"-- não nega a necessidade de descrever as forças que hoje, de maneira específica e impossível de ser repetida, o põem em questão.

Que ocorreu, então, no dia 11 de setembro de 2001, do ponto de vista político e estratégico? E como política e estrategicamente os Estados Unidos da América responderam ao fato? Há riscos, sem dúvida, em formular a questão dessa maneira. Por que seguir a deixa do próprio espetáculo e escolher esta atrocidade entre tantas outras --inevitavelmente alçada ao novo poder da ideologia pelo estúpido recurso de digitalizar sua data-- como marco de uma guinada na história mundial? Até que ponto a verdadeira dinâmica (e patologia) do poder americano é exorcizada ao se fixá-la numa única imagem-evento isolada, assim como a vitória americana na Guerra Fria foi representada em retrospecto pelo mantra, mágico e avesso a toda análise, da "Queda do Muro de Berlim"? Há momentos em que me parece fácil solidarizar- me com aqueles colegas que, em parte como reação à verborragia enjoativa e pseudo-apocalíptica desencadeada pelos acontecimentos de setembro de 2001 (que, aliás, não demonstra sinais de estancar), chegaram a menosprezar as explosões como tantos outros acontecimentos insignificantes, attentats, gestos simbólicos desesperados de quem não tinha capacidade concreta para causar dano algum.

"Gestos simbólicos desesperados." Concordo com todas as palavras desse diagnóstico. (Como fazem, ao que parece, os que os perpetraram. Neles, o milenarismo se uniu ao niilismo para formar um composto de caráter nitidamente hipermoderno. Quando eles se vangloriam em seus comunicados de estarem "a favor da Morte" --contrapondo-se, por implicação, ao desprezível apego a uma vida que não é digna desse nome--, nunca sabemos se estamos ouvindo o grito de Tyndale na fogueira ou as palavras de Stavróguin, nas últimas páginas de Os demônios, de Dostoiévski. Nos últimos tempos, o século xx vem se parecendo cada vez mais com um amálgama dos séculos XVI e XIX.) E a pergunta que continua em pauta é: Qual a eficácia - a força política específica - dessa forma de ação simbólica, desesperada ou não, na economia simbólica denominada de "espetáculo"? O Estado americano foi derrotado espetacularmente no dia 11 de setembro. E para esse Estado, a palavra "espetacularmente" não quer dizer "superficialmente" nem indica um epifenômeno. No dia 11 de setembro, o Estado americano foi ferido em cheio no coração, e ainda o vemos, quase quatro anos depois, golpeando às cegas a cara de uma imagem que não consegue exorcizar, e tentando desesperadamente fazer com que a derrota se converta em termos aos quais possa responder.

O terror de setembro foi inovador. Não fez exigências, não deu explicações. Fundamentou-se na crença (que aprendera com a cultura que tentou aniquilar) de que uma imagem vale mais que mil palavras, que uma imagem, no estado atual da política, é por si só, quando bem produzida, uma peça específica e eficaz da gestão do Estado. Claro que os pilotos-mártires sabiam que derrubar as torres gêmeas não teria nenhum efeito prático, ou quase nenhum, para barrar os circuitos atuais do capital. Mas os circuitos do capital estão vinculados, no longo prazo, aos circuitos da sociabilidade - padrões de crença e desejo, níveis de confiança, graus de identificação com as virtudes da mercadoria. No raciocínio estratégico dos terroristas, esses aspectos fazem parte de um repertório de imagens sociais ainda (e sempre, interminavelmente) fabricado pelas perpétuas máquinas de emoções. Supondo-se que essas máquinas fossem momentaneamente capturadas e nelas aparecesse a imagem perfeita da negação do capitalismo, seria isso suficiente? Realmente suficiente para desestabilizar o Estado e a sociedade, e desencadear uma sucessão de bazófias e paranóias de conseqüências políticas a longo prazo, no mínimo imprevisíveis, para a ordem capitalista mundial?

Os terroristas (reformulando ligeiramente a frase) seguiram a lógica do espetáculo até sua conclusão funérea. Relembrando o famoso aforismo de Debord --"o espetáculo é o capital em um grau tal de acumulação que se torna imagem"--, o que poderia sintetizar melhor esse processo que o World Trade Center (com seu gigantismo duplicado)? E que outra maneira melhor de derrotá-lo --isto é, derrotar sua instrumentalidade social ou seu poder sobre a imaginação do consumo-- que destruí-lo literalmente diante das câmeras?

No nível da imagem (esta é a nova aposta do terrorismo), o Estado é vulnerável, e esse nível é atualmente uma parte indispensável do aparelho de auto-reprodução do Estado. O terror pode apoderar-se por um momento da máquina de imagens --e um momento, na câmara de eco intemporal do espetáculo, pode ser eterno - e usá-la para amplificar, reiterar, acumular a visão pura e simples da derrota. Confirmando as expectativas dos terroristas, passados os primeiros dias, a queda das torres gêmeas tornou-se exatamente a imagem que não devia ser mostrada nos Estados Unidos.5 O tabu apenas tornou a pósimagem mais palpável e eficiente. Tudo o que se passava na cultura, e ainda se passa, tem relação com esse evento-imagem do passado; nada na cultura pode aludir diretamente ao evento. O silêncio da chamada "cultura popular" diante do 11 de setembro é ensurdecedor. (É mais ou menos como se a música comercial nos Estados Unidos de meados do século XX não tivesse nada a dizer sobre a guerra, as relações raciais ou a Depressão, ou mesmo sobre o novo mundo das mercadorias e dos eletrodomésticos. Na realidade, a cultura popular falou muito disso tudo --talvez porque o adjetivo "popular" ainda revelasse algo real de seu público e de suas matérias-primas. Mas isso foi há muito tempo, claro: a obediência total da indústria cultural de hoje aos protocolos da guerra contra o terror-- a assimilação e reprodução imediata das proibições e paranóias do Estado --é uma demonstração concreta, como se precisássemos disso, da extinção dos últimos vestígios de insubordinação nos estúdios da Time Warner.) Eu diria que a lógica dos pilotos era em parte fantasia, em parte lucidez levada ao grau da demonstração. Pode-se alegar que os novos terroristas sucumbiram à tentação do espetáculo em vez de inventar uma forma de driblá-lo ou contestá-lo. Foram os defensores da idéia (brilhante, por sinal, o que apenas revela a crueldade fundamental da idéia) de que o controle da imagem é atualmente a chave do poder social, e que o poder-imagem, como todas as demais formas de propriedade e dominação sob o capitalismo, subordinou-se a um inelutável processo de concentração, de modo que hoje esse controle se manifesta em determinados lugares, monumentos, pseudocorpos, ícones, logotipos, não-eventos fabricados, que são identificáveis (e vulneráveis). Isto é, signos que em seu próprio vazio e inutilidade (a arquitetura das torres gêmeas é um bom exemplo disso) governam o mundo imaginário; signos cuja nulidade concentrada e materializada representa uma nova oportunidade para o terrorismo de amedrontar, humilhar e virar o mundo de cabeça para baixo. e foi retirado do ar (com desculpas servis) em questão de horas.

Qual o resultado político desses acontecimentos? De um lado, como se sabe, o ressurgimento do imperialismo, tendo como slogans as palavras "modernidade" e "democracia", em lugar da antiga promessa da "civilização". De outro, a entronização de um poder soberano no centro das coisas, que não mais hesita em declarar que a guerra sem fim é sua raison d'être, e promove uma forma paralela de governo - uma segunda forma autoritária de governo --em que o segredo é essencial e a burocracia não tem de prestar contas, nem sequer formalmente, ao Estado de direito. A primeira forma desse poder soberano-- e não estou negando a necessidade permanente de os Estados Unidos controlarem a esfera do não-secreto - está cada vez mais afinada com o feixe de técnicas e prioridades do chamado "espetáculo", e, dessa forma, é cada vez menos capaz de tolerar a possibilidade da derrota espetacular. Mas essa é a condição em que o governo vive até certo ponto desde o 11 de setembro. E a resposta que vem dando às ircunstâncias, no Oriente Médio pelo menos, o está arrastando cada vez mais para perto de uma situação em que a derrota espetacular pode vir a complicar-se (em certo sentido, pode ser precipitada) por um real fracasso estratégico. Ainda não está claro --para usar as palavras mais isentas que me vêm à mente-- de que maneira as brutalidades da acumulação primitiva podem ser apropriadamente atendidas na era da Al Jazeera e do torturador que usa uma câmera digital Toshiba PDR.

Jactar-se perante o Parlamento, como Churchill em 1920, dizendo que "não entendo essa sensibilidade com o emprego do gás... Sou inteiramente favorável ao uso do gás venenoso contra a disseminação do terror por parte de tribos não-civilizadas", é uma coisa. Parlamentares respeitáveis o compreenderão, mesmo que discordem. (O imperialismo liberal não morre jamais.) A situação é bem diferente, me parece, se as platitudes da liberalização são alardeadas, mesmo para uma platéia de bajuladores do Partido Trabalhista, enquanto todas as noites a televisão mostra os gritos de um homem nu arrastado por uma coleira.

o que acontece em resposta? Certamente nada que surpreenda o mundo: a mais recente mutação do ideal da vanguarda --que vai buscar seu pessoal e suas idéias básicas de organização diretamente nos fracassados leninismos de alguns anos antes. Uma guerrilha globalizada, de amores com a nova mídia, inebriada na clandestinidade, e que acredita num mundo de "bases" com fervor igual e contrário aos dos seus adversários.

Permitam-me voltar agora à minha adaptação da pergunta de Nietzsche. E multiplicá-la por dois. A questão implícita na nova conjuntura ("o que significa o ideal da vanguarda?") não pode ser respondida adequadamente sem que se proponha uma segunda pergunta: "Como se deve entender a forma atual da modernidade (e, por conseguinte, a forma atual da resistência à modernidade)?".

Analiso a segunda pergunta antes da primeira. Começo com descrições propositadamente mínimas e triviais, sem fazer o menor esforço para disfarçar sua parcialidade, concentrando-me nos aspectos da condição moderna que me parecem ser fundamentais para a rejeição que despertaram no Islã revolucionário. Eu gostaria de caminhar em direção a uma oposição à modernidade que não tivesse nada em comum com a da Al Qaeda --ou ao menos insinuar tal oposição, ou pelo menos estabelecer suas coordenadas básicas--, mesmo reconhecendo o que existe na modernidade que provoca a reação da Al Qaeda. Uma crítica do moderno não-ortodoxa, não-nostálgica, não-rejeitadora, não-apocalíptica, que deve ser hoje a tarefa da política da esquerda. Caso contrário, o terreno da oposição ao estado atual das coisas será permanentemente ocupado por uma forma ou outra de fundamentalismo.

Quando exatamente surgiram na história da humanidade as primeiras sociedades não-orientadas para o passado --isto é, para a preservação da continuidade, a veneração aos ancestrais, a transmissão da Palavra ou do Sinal - é uma questão que dificilmente obtém concordância entre os estudiosos. E mesmo o que causou essa mudança. Aliás, que tenha havido a mudança continua a ser o terrível problema que nos aflige. Certas sociedades deixaram o passado para trás, ou tentaram, e começaram a perseguir o futuro que projetaram - um futuro de produtos, prazeres, liberdades, controles sobre a natureza, imensidade de informações. Esse processo foi acompanhado por um assustador esvaziamento e higienização da imaginação. Pois sem a Palavra, sem as complexidades imaginárias e reais da estrutura de parentesco, sem o passado a impregnar os detalhes da vida cotidiana (na maioria das vezes de modo assustador), o significado tornou-se mercadoria escassa --se entendemos por "significado" a forma de valor e de entendimento consensuais e institucionalizados, ordens implícitas nas coisas, narrativas e imagens nas quais uma cultura cristaliza sua concepção da luta contra o reino da necessidade e da dor e da morte. A expressão que Max Weber tomou emprestada de Schiller, "o desencantamento do mundo" - pessimista mas, a meu ver, exultante, com sua promessa de um mundo sem falsas crenças -, ainda é a melhor síntese desse aspecto da modernidade.

Pessimista e exultante. O problema de uma política de esquerda reside justamente aí: na sua peculiar dificuldade de sustentar na mesma descrição essas duas valências. As teses da esquerda sobre a modernidade acabam invariavelmente tendendo para um dos pólos: ou jeremiadas sobre a mercadoria e sua produção, ou pálidas louvações a uma utopia técnica que mal disfarça a ansiedade para desatrelar-se (outra vez) das superadas "relações de produção". O pior de tudo é quando a esquerda se debruça sobre o tema do "consumismo" ou da "sociedade de consumo". Até Jeremias parece otimista em comparação. Eu também não sou um entusiasta dos canais de venda por televisão nem do Mall of America, mas a questão é compreender as qualidades e as deficiências de uma forma de vida --por que é tão avassaladora e por que as pessoas estão dispostas a dar a vida para impedir esse poder, para não chafurdar em seu páthos.

Vou fazer uma tentativa. É possível aceitar, em primeiro lugar, que o consumismo --a mola propulsora da produção da mercadoria (não a única, é verdade, mas a que efetivamente modifica o ritmo e a estrutura da vida econômica), que a impele a prover o mercado de bens descartáveis, "personalizados", "da moda" --é a forma atual do capitalismo em escala mundial, que se apresenta como a única via para o futuro? E que o consumismo, como visão de uma vida desejável, não tem concorrentes na atualidade, ou melhor, nenhum rival que não prometa um retrocesso, o abandono a um só tempo dos apetites e do futuro? Trata-se de uma visão-- vamos aceitá-la, ainda que relutantemente. Ou seja, é uma visão que oferece aos seus adeptos uma aparente saída ao desencantamento do mundo, porque de novo promete preencher o mundo-da-vida de significados, de respostas mágicas a desejos profundos, de modelos do ter, do ser e do compreender (experimentar) o Tempo em si. A falsa profundidade do consumismo é que aturde seus opositores e os joga nos braços da vanguarda. Para eles, o capitalismo, na forma da "sociedade de consumo", já se tornou cabal e verdadeiramente um estilo de vida por oposição a um conjunto (ofuscante) de meios e relações de produção. Dizer então que o consumismo é uma religião (como é praxe entre seus adversários) é uma afirmação séria, embora não muito exata. O consumismo (na famosa intuição de Marx) está mais para uma nova forma de totemismo --usando-se essa última palavra sem nenhum tom de menosprezo. Promete um mundo em que objetos apropriáveis e descartáveis cumprem a tarefa de desejar e compreender em nosso lugar, conformando nossos desejos, modelando nossas fantasias, dando significado às coisas.

O apelo dessa concepção não tem mistério algum. Ela joga com uma predisposição humana profunda (talvez essencial), de dotar de um poder mágico a manipulação de objetos, e oferece uma solução para o déficit fundamental de significado do mundo real. E, no presente momento, essa visão das coisas não tem concorrentes, se o que estamos buscando são modelos alternativos do que fazer com o potencial produtivo do capitalismo --o que fazer de acordo com as capacidades humanas, isto é, a serviço de uma versão do humano que sirva às nossas capacidades coletivas. Chegamos a um estranho momento em que é necessário declarar nos termos mais elementares o que está errado-- o que é radicalmente insuficiente - nas promessas da sociedade de consumo.

Sem lamentações, é claro. Objetos pessoais, inclusive de produção em massa, vão continuar a ser, naturalmente, um dos principais meios de operacionalização de significados e desejos em qualquer sociedade humana concebível. Mas eles não podem realizar nem realizam a magia a que são convocados atualmente. As mercadorias só podem encarnar significados humanos, modificá-los e desenvolvê-los, se forem constantemente submetidas a reorientações --mudança de função, mudança de valoração, restabelecimento de sua condição de mera instrumentalidade-- em um mundo de significados que é muito mais vasto que aquele que qualquer objeto pode evocar. Os objetos não podem ser a forma predominante de imaginar desígnios ou expressar necessidades humanas. Menos ainda quando esses objetos são padronizados e acrescidos de assinaturas "personalizadas", como as cerejas num bolo. E não podem realizar essa função se a mágica depende cada vez mais, como acontece na sociedade de consumo, de sua (imaginária) separação do humano --de sua presença coletiva num mundo em que parecem quase criar significados por conta própria, em resposta não aos que os utilizam, mas a outros objetos da mesma espécie, como se a ação da mercadoria se desse num mundo onírico cada vez mais sobrecarregado de aparências.

Claro que os verdadeiros produtores desse mundo de aparências reconhecem na prática todas as insuficiências que mencionei. Afinal, eles são realistas. Sabem muito bem que as mercadorias somente se apropriam de qualidades humanas, poderes humanos reais, a partir do mundo que simulam aperfeiçoar e superar. Por isso, o espetáculo --o que acabo de descrever é uma de suas funções centrais, a de tornar as mercadorias desejáveis-- é o eterno parasita dos valores semimortos de uma sociabilidade em processo de desaparecimento. Ele injeta em seus objetos doses homeopáticas de "comunidade", "respeito pela tradição", decência, lealdade, ternura, ingenuidade, excentricidade, atenção carinhosa - em suma, amor. A operação é fatal e mascara os valores que canibaliza. Para que a "atenção carinhosa", o "amor" e o "estar com os outros" sejam agregados como valores a variantes mínimas do mobiliário doméstico ou dos processadores eletrônicos de informação, é necessário esvaziar esses valores de toda e qualquer dificuldade, da mais diminuta recalcitrância. O que há de mais deprimente no consumismo não é que não cumpra suas promessas de felicidade --é isso que possibilita contestá-lo--, mas que sua ação remova as entranhas de tudo que poderia servir para construir a felicidade humana (e para o reconhecimento da infelicidade).

É verdade; no fim, acabei não conseguindo reprimir minha aversão. Mas nunca pretendi fazê-lo: a idéia era avançar passo a passo para um nível em que coubesse a verdadeira hostilidade em lugar do repúdio desdenhoso. O que me traz de volta à Al Qaeda. O Islã revolucionário --para voltar à trivialidade com que comecei-- é um movimento que nasce da rejeição a muitas facetas particulares da condição moderna. Ele se bate contra os legados do colonialismo e contra o atual retorno do colonial reprimido; desenvolve-se a partir do angustiante fracasso do Estado-nação nasserista laico. E criou um discurso sobre o horror do mundo urbano neoliberal --nessa linguagem reside a grande força do seu ódio arcaico. Eu diria que o aspecto mais importante da constituição da Al Qaeda é sua mistura de atavismo com neomodernidade. Seus melhores recrutas provêm exatamente do mundo no qual vigoram as mercadorias e os gadgets que acabei de descrever. Entre os vários aprendizados sobre a modernidade pelos quais passou, o Islã revolucionário foi obrigado a suportar toda a força do consumismo, suportá-lo de um modo, e com uma intensidade, somente realizável pelos que vivem em sociedades nas quais o consumismo ainda é em parte realidade, em parte sonho de um futuro. Jamais seremos capazes de compreender o ódio e o desprezo pela "Vida" moderna que os comunicados dos revolucionários islâmicos continuam a extravasar enquanto não dermos novamente a devida importância ao que eles suportaram, a tudo o que sofreram.

Isso vale, sobretudo, para o modelo de temporalidade que a "sociedade de consumo" oferece aos seus súditos (porque no cerne da rejeição da Al Qaeda ao Ocidente encontra-se, acima de tudo, uma concepção distinta de passado, presente e futuro).

A modernidade, principalmente em sua manifestação como sociedade de consumo, é cada vez menos capaz de oferecer aos seus membros maneiras de viver no presente e de aceitar o fluxo contingente do tempo. A razão disso é que a modernidade aposta tudo na celebração e perpetuação do aqui e agora. Nos últimos tempos, construiu um extraordinário aparato para permitir às pessoas imaginar, arquivar, digitalizar, objetivar e se apossar do momento. Parece que o aqui e agora não é tolerável (ou, no mínimo, não inteiramente real) a não ser que seja narrado ou mostrado, imediata ou continuamente, para os outros --ou para nós mesmos. O telefone celular, o digital replay, a troca instantânea de mensagens por computador, a conexão em tempo real, o video loop. Longe de mim dizer --logo eu que sou um apaixonado pela imagem-- que dar forma visual a uma experiência significa não vivê-la. Depende, é claro, de que e para que serve a construção da imagem. Existe, no entanto, uma espécie de visualização, que todo mundo percebe por intuição (objeto de duras críticas na linguagem comum), que consiste em sua essência de um mecanismo de defesa --um modo de deliberadamente isolar o momento, distanciar-se do não-vivido, do não-significativo. Voltarei a esse assunto. A cultura do consumo tem muitas facetas. Por exemplo, todos esses dispositivos que servem à objetificação do instante são hoje acompanhados pelo reino sempre ampliado da aparência da mercadoria --na publicidade, no design, na performance integral da vida da mercadoria, em comerciais e no mundo da informação-entretenimento--, tudo isso mais e mais voltado para o passado. Antigamente, as mercadorias faziam promessas relacionadas sobretudo com o futuro. Hoje, toda uma classe (predominante) de mercadorias existe para inventar uma história, um tempo perdido de intimidade e estabilidade, de que todo mundo afirma lembrarse, mas que ninguém teve. Um pequeno passo separa essa pseudomemória ubíqua da "nostalgia do presente" --a apresentação estilizada das últimas modas e acessórios como se já possuíssem o glamour do antiquado. E assim por diante. A roda da falsa temporalidade gira cada vez mais rápido.
 

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