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13/01/2001 - 04h44

Felinto descreve em crônicas a crueza da guerra cotidiana

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ALCINO LEITE NETO, da Folha de S.Paulo

"Você não precisa me entrevistar, por obrigação. Escreva o que quiser no jornal, e se quiser", diz a escritora Marilene Felinto ao repórter, pouco depois de abrir a porta de seu apartamento em São Paulo.

Ela já está a postos para a luta, como Rísia, a personagem de seu primeiro romance, que se descreve assim: "Me disseram que eu vivo é em guerra. Em pé de guerra. E vivo mesmo".

Marilene Felinto está lançando, agora, o livro "Jornalisticamente
Incorreto", uma coletânea das crônicas que publicou entre 1995 e 1999 na Folha, onde escreve todas as terças-feiras no caderno Cotidiano.

Dizer que ela é uma cronista, no entanto, é fazer pouco do impacto que seus textos provocam no jornal e nos leitores. No caso de Marilene, talvez fosse preciso aplicar uma velha categoria: a de correspondente da guerra.

Mas que guerra é essa? "Não é uma guerra que eu fiz", ela explica. "É a guerra que aí está, pela sobrevivência, para conseguir se impor num mundo que é sempre hostil à mulher, ao pobre, ao estrangeiro..."

Marilene é uma mulher frágil. Tem 1m53, 49 kg. No final do ano passado, completou 43 anos. Parece uma menina. Não é branca, nem é negra. Seus olhos são muito vívidos e brilhantes. Eles raramente intimidam -com frequência parecem assustados, como se o mundo fosse uma continuada surpresa.

Nasceu no Recife, de família pobre e protestante. Assistiu TV pela primeira vez aos 9 anos. Ainda garota, mudou-se para São Paulo. Estudou letras na USP. Foi professora de língua e literatura inglesas. Quando quer, é deliciosamente maliciosa. E adora dar risadas.

Aos 25 anos, publicou seu primeiro romance, "As Mulheres de Tijucopapo", Prêmio Jabuti de autor revelação em 83. O segundo, "O Lago Encantado de Grongonzo", apareceu em 87. Em 91, lançou a reunião de contos "Postcard". Já foi traduzida em vários idiomas, inclusive o holandês.

A coletânea "Jornalisticamente Incorreto" traz 82 artigos dentre os mais furiosos, revoltados e cruéis que ela escreveu na Folha, passando por temas variadíssimos, da política ao urbanismo, da sexualidade ao futebol, do padre Marcelo ao grupo de rap Racionais.

Quem acompanha a coluna da escritora há de lembrar de alguns deles, como "Homem já foi à Lua, mas não conhece mulher" ou "Os brutos também choram e também morrem", que provocou a ira do senador Antonio Carlos Magalhães.

São raros os textos que documentam momentos de felicidade ou de otimismo. Há, contudo, um fundo de expectativa utópica e até de pedagogia republicana em todos eles que os faz sempre surpreendentes. "Eu sinto ódio por sentir amor pelas coisas", ela diz.

As crônicas nasceram de fatos miúdos ou graúdos do cotidiano brasileiro, que ela foi colhendo com olhar de escritora, elaborando com liberdade de escritora e trazendo à luz com um sensível "timing" de jornalista.

O jornalismo, todavia, é o primeiro alvo de seus ataques, logo no prefácio do novo livro. "Jornalismo foi o que os homens fizeram comigo, uma espécie de endurecimento", ela escreve, com sua habilidade para tornar tudo muito físico e palpável.

Para Marilene, o jornalismo é um posto avançado do opressivo poder masculino em vigência na sociedade. "As mulheres só entram nesse jogo se se neutralizam como tais", afirma, politicamente correta.

É também um "jogo de blefes e cartas marcadas", por onde passam as grandes apostas e articulações da política, do capital e do mercado, sem consideração pela vida concreta dos infelizes, dos frustrados, dos humildes, dos apaixonados.

Por tudo que tem de hipócrita e viciado, segundo Marilene, o jornalismo é também o mundo oposto à literatura, lugar no qual predominam a honestidade, a paixão e a liberdade.

Ser jornalisticamente incorreta, para ela, é não compactuar com esse mundo de opressão difundido pela mídia. É sobretudo trazer o olhar da ficção para o jornal, dando uma prova de franqueza e autonomia no espaço carcerário das páginas "cinzentas".

"Para mim, a coluna de jornal é como uma prisão. A ficção, ao contrário, é como a sala de visitas de uma mansão", ela compara.

Durante quase uma década, enquanto praticava seu jornalismo incorreto
baseado em fatos concretos e urgentes, Marilene não publicou literatura. "Guardei a ficção só para mim", conta.

Em abril, ela deve lançar, pela Record, o terceiro romance, inspirado na história de sua avó. O título é "Malmequer".

"Mas não precisa publicar nada disso", Marilene reitera ao repórter. Na guerra cotidiana, ela às vezes faz o papel de heroína guerreira, outras de vítima sacrificial. Não importa: na imprensa, hoje, ela é sobretudo um dos olhares críticos mais firmes lançados sobre a realidade brasileira.

O repórter responde: "Não se preocupe, só vim aqui para ter a chance de dizer que Marilene Felinto não tem medo de escrever "vagina" no jornal". Ela morre de rir.

Livro: Jornalisticamente Incorreto
Autora: Marilene Felinto
Editora: Record
Quanto: R$ 25 (368 págs.)
 

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