Livraria da Folha

 
08/02/2010 - 18h27

Para engravidar de Jorge Amado, Zélia Gattai recorreu ao "milagroso" método cearense

da Livraria da Folha

Divulgação
"Um Chapéu Para Viagem", escrito por Zélia Gattai, é relançado pela Companhia das Letras neste mês
Capa de nova edição de "Um Chapéu Para Viagem" traz xilogravura de Calasans Neto

Zélia Gattai (1916-2008) não era uma "mulher-sombra", aquele tipo submissa ao marido famoso. Em seu livro "Um Chapéu para Viagem", que a Companhia das Letras está relançando, o leitor descobre uma memorialista de mão cheia, que soube aproveitar as andanças com Jorge Amado (1912-2001) para construir um retrato sensível do Brasil desde os anos de 1930.

Ela teve presença marcante na elite cultural de sua época. Em 1952, Zélia fotografou o encontro de Pablo Neruda e o casal Heloísa e Graciliano Ramos. Transitava também no meio político, acompanhando Jorge, eleito deputado federal. "Um Chapéu para Viagem" traz 14 fotografias do acervo Fundação Casa de Jorge Amado.

Na obra, a escritora pinta, com precisão, o ambiente social do período em que seu marido morou na av. São João, no centro de São Paulo. Ela dá nomes às ruas, lembra detalhes de conversas, de situações, fala sobre seus livros e autores preferidos. Seu olhar pede licença, vai colocando o leitor em contato com esses fragmentos da história, emocionando sem pieguice.

Fundação Casa de Jorge Amado
Zélia Gattai fotografou personalidades, como Neruda
Zélia Gattai fotografou personalidades, como Neruda

Há espaço também para o humor sutil, com observações astutas sobre o comportamento humano. Seu texto evita esnobismos e vai pontuando a narrativa como se fosse uma boa conversa entre mãe e filho.

Leia abaixo um trecho do livro, em que Zélia conta sobre a visita do casal ao Ceará, onde recorreu a um "milagroso" método para engravidar (fazer sexo em uma rede após um banho de mar).

*

Surpreendente, a minha primeira impressão de Fortaleza! Senti-me envolvida de repente por uma atmosfera luminosa. E não era o sol ardente de meio-dia, a pino, o responsável pelo bem-estar que sentia diante da claridade quase dourada, transparente, suave. Na Bahia e em Pernambuco, sol idêntico, causticante, não me causara o mesmo efeito.

Médico de Fortaleza, o dr. Pontes Neto --candidato a deputado na chapa na chapa do PC às eleições que se aproximavam-- integrava a comissão que nos aguardava no aeroporto. Seríamos seus hóspedes.

Na casa do dr. Pontes Neto não havia camas. A família toda --inclusive seus filhos pequenos-- dormia em redes, armadas nos quartos. Para não faltar à verdade: os donos da casa haviam reservado, para eventuais hóspedes, um quarto com cama de casal. Jorge foi logo dizendo que preferia dormir em rede, habituado a ela desde criança; segui-lhe o exemplo, embora nunca tivesse dormido antes em rede. Deve ser mais fresco.

No sobrado de dois andares, repleto de crianças, com os anfitriões simpáticos e atenciosos, sentimo-nos à vontade.

Logo em seguida à nossa chegada, Stela, prima de Jorge, irmã de Noêmia, nos telefonou; convidava-nos para jantar com ela e Banvard, seu marido, médico e dono de um laboratório de análises. Moravam na Aldeota, o bairro mais chique da cidade. Combinamos um encontro para o dia seguinte. Naquela noite não podíamos aceitar o convite dos primos, pois a casa de nosso hospedeiro estaria cheia de gente, visitas para Jorge.

Pela tarde começou o movimento: chegavam pessoas para apresentar votos de boas-vindas; jovens poetas, trazendo seus livros, desejosos de conversar sobre literatura. Vieram também velhos amigos de Jorge, escritores e livreiros, contaram histórias divertidas. Tão fatigada estava ao deitar-me, que nem estranhei a rede, dormi profundamente, acordando com o sol alto a entrar pelas janelas abertas.

Reprodução
Zélia Gattai e o escritor Jorge Amado, em foto feita com disparador automático
Zélia Gattai e Jorge Amado, em foto feita com disparador automático

A milagrosa praia de Iracema

Jorge estaria ocupado pela manhã, com uma reunião partidária onde receberia as diretivas para o programa a seguir no Ceará. Aproveitei para ir com Stela à praia de Iracema, para um banho de mar. Stela me perguntara se não desejava ter outro filho. Claro que eu desejava, era tudo o que eu queria, mas até aquele momento, decorridos quase dois anos de minha união com Jorge, não engravidara. A vinda de um filho talvez me ajudasse a suportar as saudades que sentia de Luiz Carlos.

--Pois então venha tomar um banho de mar na praia de Iracema. Depois do banho, uma deitada na rede, e...tiro e queda, não falha! Garanto que você volta para o Rio grávida! --riu Stela, maliciosa.

Tive pena de Jorge não poder nos acompanhar, de não estar comigo ali. Ele haveria de gostar, assim como eu, de banhar-se naquele mar cantado por José de Alencar, escritor da sua grande estima. Naquelas águas, "de líquidas esmeraldas", Alencar levara Iracema, "a virgem dos lábios de mel", a se banhar.

Lembre-me também de minha mãe --leitora e admiradora do célebre escritor cearense--, que adorava recitar um trecho de "Iracem", fazendo-o com ênfase e gestos, largos gestos à italiana --dona Angelina dava vazão ao seu pendor pela arte dramática: "Ó verdes mares bravios de minha terra natal!...". Certa vez, ainda menina, resolvi provocá-la e a interrompi quando ela estava em plena declamação:

--Mãe, o mar de sua terra natal não ficaria, por acaso, nos Alpes, lá no Cadore?

Escapei a tempo de levar um peteleco bem dado.

Havia agora de contar a mamãe, quando fosse a São Paulo, que eu também me espalhara recitando: "Ó verdes mares...", na praia de Iracema, num banho de evocações e de esperança. Só não lhe diria --não ia desencantá-la-- que as águas em que eu mergulhara, agora poluídas, não eram verdes nem cristalinas como as que o romancista descrevera havia mais de meio século; não lhe diria que a praia também já não era lá essas coisas.

Agora só me faltava esperar pelo milagre das águas, que tornavam as mulheres férteis. Sobre esse particular, Alencar nunca escreveu, ao que eu saiba.

*

"Um Chapéu para Viagem"
Autora: Zélia Gattai
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 360
Quanto: R$ 41,00
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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