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06/06/2010 - 19h22

Atleta tcheco enfrentou ocupação nazista e stalinismo para correr; leia trecho

da Livraria da Folha

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Baseado em fatos reais, obra narra a trajetória do corredor Emil Zatopek
Baseado em fatos reais, obra narra a trajetória do corredor Emil Zatopek

"Correr" (Alfaguara, 2010), do escritor francês Jean Echenoz, narra a trajetória do tcheco Emil Zatopek (1913-2001), conhecido como "A locomotiva humana". O atleta mudou a história das corridas de média e longa distância com coragem e timidez.

O leitor acompanha os largos passos de Zapotek por meio da narrativa ágil e veloz de Echenoz, um dos nomes de destaque da atual literatura francesa. O autor transforma um sujeito comum em herói de seu tempo. Por que? Porque o volume não descreve apenas os êxitos ou a consagração do corredor nas Olimpíadas de Helsinque (1952), pelo contrário, mostra suas dificuldades diante da ocupação nazista, do stalinismo e, por fim, de uma nova e esmagadora ditadura comunista que desejava afastá-lo do esporte.

Em Helsinque, Zatopek conquistou os títulos olímpicos dos 5.000m, 10.000m e da maratona, façanha que nenhum outro atleta fez até hoje. Em 1968, ele se envolveu em algumas polêmicas, como a crítica sobre a invasão soviética à Tchecoslováquia. O esportista acabou expulso do partido comunista.

No trecho abaixo, extraído da introdução de "Correr", o autor francês relata o dia a dia do corredor quando era jovem.

*

Os alemães entraram na Morávia. Chegaram a cavalo, em motocicletas, automóveis, caminhões, mas também em caleças, seguidas de unidades de infantaria, colunas de abastecimento e alguns veículos dotados de esteiras - não muito mais do que isso. Ainda não chegou a vez dos enormes panzers Tiger e Panther conduzidos por tanquistas de uniformes pretos, cor bem mais prática para esconder manchas de óleo. Alguns monomotores Messer schmitt de reconhecimento acompanharam a operação, mas, encarregados apenas de supervisionar do alto para que tudo corresse bem, nem sequer carregavam armas. Trata-se apenas de uma pequena invasão relâmpago, suave, uma pequena anexação, sem muito barulho. Ainda não se trata da guerra propriamente dita. Os alemães estão apenas chegando e se instalando. Só isso.

O alto comando da operação se desloca em automóveis Horch 901 ou Mercedes 170 cujos vidros traseiros, protegidos com cortinas cinzas delicadamente franzidas, impedem que se reconheçam os generais. Mais abertas, as caleças são ocupadas por oficiais menos graduados, com sobretudos compridos, quepes e cruz de ferro fechada sob o queixo. Os cavalos são montados por outros oficiais ou puxam apetrechos de cozinha de campanha. Os caminhões que transportam as tropas são modelo Opel Blitz e as motos, com pesados sidecars Zündapp, são pilotadas por policiais usando capacetes com prendedores metálicos. Todos esses meios de transporte são ornados com estandartes vermelhos trazendo um círculo branco com aquela cruz preta um tanto especial que hoje já não se usa mais e que os oficias exibem também nas suas braçadeiras.

Quando essa mesma turma, há seis meses, apareceu nos Sudetos, foi bem recebida pelos alemães que habitavam a região. Agora, porém, passada a fronteira Boêmia-Morávia, a recepção é nitidamente menos calorosa, sob um céu baixo e plúmbeo. Em Praga, essa mesma turma entrou sob um silêncio absoluto, e, na província morávia, as pessoas tampouco se aglutinaram à beira das estradas para vê-la. Os que se arriscaram observavam o cortejo menos com curiosidade do que com circunspecção, quando não uma antipatia aberta, mas alguma coisa lhes dizia que ninguém ali estava brincando, que ainda não chegara a hora de demonstrá-la.

Emil não se uniu a esses espectadores, pois tem muitas outras coisas para fazer. Primeiro, tendo deixado há três anos a escola em que sua família não tinha mais condições de mantê-lo, porque ocupa na fábrica um cargo de aprendiz com o qual também não se brinca. Depois, quando sai da oficina, frequenta aulas de química, com a pretensão de ser um dia algo mais do que um simples aprendiz. Por fim, quando poderia ir para casa, dá uma forcinha para o pai no jardim, que não é um jardim decorativo mas sim o lugar onde se faz crescer aquilo que se come, um elemento com o qual se brinca menos ainda. Emil tem dezessete anos, é um rapaz alto, loiro com rosto triangular, muito bonito, muito tranquilo e que sorri o tempo inteiro, e nesses momentos é possível enxergar os seus grandes dentes. Seus olhos são claros e sua voz aguda; sua pele, muito branca, é daquelas que temem o sol. Mas de sol, hoje, nada.

 
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