Livraria da Folha

 
07/06/2010 - 20h59

Gay se arrepende de saída do armário e enfrenta "luto da heterossexualidade"; leia trecho

SÉRGIO RIPARDO
da Livraria da Folha

Reprodução
Terapeuta ensina a entender desafios da homossexualidade
Terapeuta ensina a entender desafios da homossexualidade

Nunca estamos preparados para sair do armário. Não sabemos o que dizer para amigos, parentes e colegas de trabalho. Tememos suas reações. Pagamos um preço alto por expor em praça pública nossa orientação sexual, ainda estigmatizada. O roteiro mais frequente desse rosário: alguns amigos fogem de você com medo de serem confundidos ou vistos como "metidos com gays"; as namoradas deles desconfiam de você, que passa a ser encarado como uma "ameaça"; dependendo do seu emprego, não espere entusiasmo, afinal, muitas empresas ainda consideram o assunto um tabu. Sem família nem amigos à disposição, a terapia (quando escolhida de forma voluntária, e não imposta por uma mãe ou pai histéricos com a descoberta) pode ser seu último refúgio no penoso processo de reconstrução de sua identidade.

Parece fácil jogar nas costas de um profissional a responsabilidade de fortalecer seu ego e recuperar sua autoestima. Nem todos conseguem pagar uma terapia. Em São Paulo, uma sessão com um especialista em atender gays e lésbicas pode sair por valores entre R$ 150 e R$ 250. Nem sempre se encontra a empatia esperada. Às vezes, falta especialização do profissional em questões típicas da homossexualidade, e as sessões não avançam, e você só perde o seu tempo e dinheiro. Já procurar um terapeuta gay pode ser uma grande roubada em alguns casos, não só pelo risco de você se apaixonar por ele, mas também por ele tentar aplicar certos modelos viciados de análise, já que só está acostumado a esse tipo de atendimento.

Diante desse impasse, você passa a questionar se realmente tomou a melhor decisão em contar para deus e o mundo que você é gay. Antes de dar esse passo em sua biografia, é melhor ruminar bastante sobre todas as implicações disso. Tem vergonha de conversar sobre o assunto com os outros? Busque um livro que acenda suas ideias e inspire sua mente a encontrar o caminho menos doloroso.

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Um dos livros mais completos e bacanas para entender o que é ser homossexual voltou às livrarias, após sumir do mercado devido aos problemas com a editora A Girafa. A Experiência Homossexual" é aquele título que todo gay deveria ler (antes ou depois de sair do armário). Foi escrito por uma mulher: a psicoterapeuta mexicana Marina Castañeda, com base em suas pesquisas e na própria experiência clínica. Ela percebeu que muitos terapeutas não sabem ouvir pacientes homossexuais. É por isso que ela dá diversas recomendações a esses profissionais. Mas o livro não é dirigido só para psicólogos. Marina evita jargões e coloca seu texto naquela difícil linha da fluência capaz de enriquecer a percepção de diversos públicos.

Não há militância no seu texto. Apenas muitos relatos, costurados com dados de pesquisas e pelas observações pertinentes da autora. Os capítulos tentam abarcar a totalidade dos conflitos: "Tornar-se Homossexual - Aspectos Biológicos e Sociais", "Aspectos Familiares e Individuais", "As Vicissitudes do Armário", "Homofobia Interiorizada", "O Casal Homossexual em Geral", "O Casal Homossexual Feminino", "O Casal Homossexual Masculino", "A Miragem da Bissexualidade" e "Uma Nova Homossexualidade".

Leia um trecho do livro.

Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro e não está atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico. Conheça o livro "Escrevendo pela Nova Ortografia".

O luto da heterossexualidade

É, portanto, por meio de todo um processo de exploração que o jovem homossexual começa a se identificar como tal. Mas isso implica também um luto de identidade heterossexual que lhe foi inculcada desde sempre. Com efeito, todas as crianças crescem com a idéia de que um dia vão se casar e formar família: é o que lhes repetem incansavelmente seu s pais, a escola, a cultura e a sociedade em geral. Dar-se conta de que isso, provavelmente, não acontecerá, e que será necessário renunciar a um projeto de vida longamente preparado, é um processo extremamente lento e doloroso. Trata-se de uma perda importante e, como em qualquer perda, há um trabalho de luto a ser feito.

Esse luto compreende todas as fases descritas por Elizabeth Kübler-Ross em "On death and dying". De acordo com esse livro, o luto compreende necessariamente uma série de reações que são normais quando sofremos uma grande perda afetiva. Assim, passamos pela negação ("não é verdade, não estou acreditando"), a raiva ("como podem ter feito isso comigo"), a barganha mágica ("talvez eu pudesse fazer alguma coisa para evitar"), a depressão ("minha vida não tem mais sentido"), a culpabilidade ("deveria ter agido de outro modo"), e, enfim, a aceitação ("eu fiz o melhor que pude, e não há mais nada a fazer"). Na pessoa que toma consciência de sua homossexualidade encontramos, portanto, a negação ("talvez não seja verdade"), a raiva ("por que eu?"), a barganha ("farei tudo para evitar isso"), a depressão ("nunca serei feliz"), e, enfim, se tudo der certo, a aceitação.

Quanto tempo dura esse processo? Para certas pessoas, nunca tem fim - e talvez seja a diferença mais importante entre os homossexuais felizes e aqueles que nunca terminam de fazer o luto do casamento, das crianças que poderiam ter tido, e da aceitação familiar e social que nunca terão. Claro, entre esses dois extremos há muitos homossexuais para os quais esses aspectos não são importantes, e que não têm nenhum arrependimento em relação à vida heterossexual - aparentemente. Mas a maioria dos homossexuais passa por um luto da heterossexualidade, mesmo que não seja totalmente consciente.

Esse luto desenvolve-se, geralmente, em etapas, e desemboca em uma aceitação da homossexualidade - mas essa aceitação raramente é inteira ou definitiva. Um certo arrependimento surge novamente nos momentos importantes da vida, e o homossexual deve então reexaminar e aceitar em novos termos sua orientação sexual. Assim, uma lésbica pode viver sua homossexualidade sem problemas durante muito tempo e, por volta dos quarenta ou dos cinqüenta anos, sentir um arrependimento intenso em relação às crianças que poderia ter tido caso fosse heterossexual. (Esse luto das crianças pode também acontecer, claro, entre os homens.) Pode haver uma recrudescência do luto toda vez que um amigo ou um irmão se casa, ou no nascimento dos sobrinhos, ou na morte dos pais. Mesmo os acontecimentos mais felizes da vida (como os aniversários, o réveillon, as férias, os sucessos profissionais) podem ter um fundo de melancolia, porque o homossexual não pode compartilhá-los com sua família. Ainda que seja profundamente feliz em sua vida pessoal, às vezes ele se sentirá triste durante as celebrações mais felizes - e, muitas vezes, sem saber por quê.

Portanto, é importante tomar consciência desse luto, que pode durar indefinidamente ou ressurgir sob formas diferentes. Isso provavelmente mudará, à medida que os direitos civis dessa população se estenderem: se os homossexuais pudessem se casar e adotar crianças, se gozassem de todos os direitos que são atualmente reservados aos heterossexuais, a sensação de perda, evidentemente, não seria a mesma. Enquanto isso, é muito importante que cada homossexual assuma e entenda esse luto, como uma parte de sua identidade e de sua história.

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"A Experiência Homossexual"
Autora: Marina Castañeda
Editora: A Girafa
Páginas: 328
Quanto: R$ 13,90 (preço promocional por tempo limitado)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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