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06/07/2010 - 17h26

Jornalista relata encontro com chefe da área de informática do Hezbollah; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Livro aborda pontos nevrálgicos que ameaçam a ordem mundial
Livro aborda pontos nevrálgicos que ameaçam a ordem mundial

Em "A Era do Inconcebível" (Companhia das Letras, 2010), o economista e jornalista Joshua Cooper Ramo trata da era das intensas transformações pelas quais o planeta passou, a partir de fins do século 20.

Das relações internacionais à economia, entremeada pela cultura e pela política, o livro enfoca os pontos de maior tensão que ameaçam as velhas estruturas da ordem mundial.

O ex-editor da revista "Time" examina como os sistemas de segurança e os governos do Ocidente reagirão diante das mudanças. Ramo ressalta um tempo em que o inconcebível se tornou regra e não exceção.

No trecho abaixo, extraído do capítulo inicial do livro, o jornalista descreve seu encontro com Fuad, chefe da área de informática do Hezbollah. Ramo ainda vê os mecanismos de uma energia poderosa entre os crimes do grupo e as inovações do Google.

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1. A natureza de nossa era

Tela dividida

O café forte, em duas xicrinhas de borda dourada e com aquele gosto acre de chicória árabe quase queimada, já esfriou. Estamos meio em silêncio, nós dois pensando, olhando à toa para uma televisão sem som. É o começo do outono de 2008, e as notícias, mesmo na emissora a que assistimos - a Al Manar, o canal de TV do Hizbollah aqui no Líbano -, falam da crise financeira mundial. Há entre Fuad e mim uma paz resolvida no momento, a pachorra de um começo de tarde, cada um de nós se preparando para retornar a nossas atividades normais. Ele voltará, quando for embora, a seu trabalho como chefe da área de informática do Hizbollah, um grupo guerrilheiro e terrorista que é, como expressou um general israelense, "o melhor do mundo" naquilo que faz.

Fuad e eu tivemos uma longa conversa sobre o Corão, sobre as exigências de martírio, sobre o fato de ele se sentir "já morto", apenas presente ainda no mundo e fazendo o trabalho que lhe compete antes de subir ao céu, provavelmente em algum instante definido em Tel Aviv. Conversamos sobre seus filhos e seus irmãos e irmãs. Ele me fez perguntas sobre a China, país onde moro e que ele quer compreender melhor. Vim ver Fuad porque, em todos os meus contatos com o Hizbollah ao longo dos anos, senti-me particularmente fascinado - e intrigado - pela criatividade e capacidade de inovação de seus membros, mesmo na busca de seus objetivos inaceitáveis. A obsessão deles pela descoberta de melhores meios de combater e sobreviver sob a forte pressão dos ataques israelenses me parecia apontar para alguma coisa, mas eu nunca tinha conseguido perceber o que, precisamente, aquilo indicava. Mas tinha representado, ao menos, um momento de derrota para o Exército israelense. Em 2006, por exemplo, menos de quinhentos combatentes do Hizbollah haviam frustrado um ataque israelense com 30 mil homens, numa ofensiva que incluiu uma das mais sistemáticas campanhas aéreas na história do Oriente Médio. Para mostrar sua força, o Hizbollah fez questão de disparar, no último dia da guerra, o mesmo número de mísseis que lançara no primeiro dia.

Para tentar compreender como nossa ordem mundial está atualmente funcionando e mudando, eu sabia que precisava conhecer muito bem as ideias que Fuad defendia, por mais repulsivas que fossem. De certa forma, a paixão e a curiosidade pela inovação e por assuntos ligados à tecnologia demonstradas por combatentes como Fuad me lembravam amigos meus que haviam criado grandes empresas de internet, ou conhecidos que estavam gerenciando gigantescos fundos de hedge. Em geral, eles tinham mais ou menos a minha idade, na casa dos trinta ou quarenta anos. E embora eu as tivesse conhecido em meu papel de editor internacional da revista Time, depois que deixei o jornalismo essas pessoas tinham continuado a me interessar e fascinar, e manter contato com elas me mostrava com mais clareza como o mundo estava mudando, pois eu não me limitava a observar suas modificações e guinadas de uma distância jornalística. Eu havia notado que o instinto de mudança - uma facilidade ávida pelas ferramentas de ruptura radical - parecia particularmente intenso em minha geração. Era a geração que transformou a web em algo útil e revolucionário, montou empresas financeiras gigantescas e não passíveis de regulação, que estavam produzindo rapidamente bilhões de dólares de lucros e, ao mesmo tempo, criando trilhões de dólares de riscos. Essa era uma atitude que se podia encontrar também em muitas pessoas que eu conhecia na China e que lutavam para construir uma ordem econômica e política apesar das exigências imprevisíveis da constante inovação. A mudança está no centro da vida delas. Elas procuram essa mudança e, se ela se realiza devagar demais, aceleram-na. Essas pessoas agem com a autoestima e a coragem de quem sabe que a maré da história está do seu lado, levando-as para mais perto do sonho que mais as excite, quer isso signifique conexões rápidas e universais de dados, quer tipos inteiramente novos de governo. Para elas esse é um processo em que a desestabilização da ordem existente não só é necessária como inevitável.

Ninguém ousa traçar uma equivalência moral entre os crimes do Hizbollah e, digamos, as inovações do Google, mas tanto num caso como no outro podem-se ver os mecanismos de uma energia poderosa: o desequilíbrio de quinhentos combatentes contra 30 mil soldados ou dois estudantes refazendo toda a web num dormitório da residência universitária. Essas usinas de inovação atraem os melhores cérebros de uma geração: gênios da matemática quantitativa para fundos de hedge, peritos em computação para novas empresas de tecnologia, e, bem, para atividades mais sinistras. "Nosso correio eletrônico está entupido de currículos", disse-me Fuad. "Mas é claro que algumas pessoas não têm a coragem necessária para ser incluídas numa lista de observação, mesmo que seja para servir a uma causa sagrada."

 
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