Livraria da Folha

 
08/07/2010 - 12h30

"Todo mundo já matou alguém", afirma jornalista em livro; saiba mais

da Livraria da Folha

Divulgação
Histórias sombrias ganham vida em obra que reúne grandes nomes da literatura
Histórias sombrias ganham vida com grandes nomes da literatura
SXC
O nosso amor, Foi uma chama Agora é cinza, Tudo acabado, Nada mais
Tudo está sombrio e sem música...

O jornalista e escritor Flávio Moreira da Costa, organizador do livro "Os 100 Melhores Contos de Medo, Horror e Morte" afirma que "todo mundo tem uma históra de crime para contar, embora raramente o faça por opção, pudor ou (auto) desconhecimento. Todo mundo já matou alguém, em ato, palavra ou ação, mesmo que não o saiba."

Costa descreve que "uma antologia como esta, além de necessária (no mundo de hoje - ou terá sido sempre assim? - o verbo matar é conjugado, com suas nefastas consequências, do que o verbo conviver ou o verbo amar), procura uma abrangência que visa lembrar ou afirmar a universalidade e a constância do tema ao longo da história do homem".

No conto de Aníbal Machado (1894-1964), "A Morte da porta-estandarte", o escritor descreve uma história sombria, envolta em mistério e desassossego.

Leia conto de Aníbal Machado.

*

A Morte da porta-estandarte

Que adianta ao negro ficar olhando para as bandas do Mangue ou para os lados da Central?

Madureira é longe e a amada só pela madrugada entrará na praça, à frente do seu cordão.
Se o negro soubesse que luz sinistra estão destilando seus olhos e deixando escapar como as primeiras fumaças pelas frestas de uma casa onde o incêndio apenas começou! Todos percebem que ele está desassossegado, que uma paixão o está queimando por dentro. Mas só pelo olhar se pode ler na alma dele, porque, em tudo mais, o preto se conserva misterioso, fechado em sua própria pele, como uma caixa de ébano.

Rivaldo Gomes/Folha Imagem
Estandartes transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam e beijavam
Estandartes transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam e beijavam

Por que não se incorporou ao seu bloco? E por que não está dançando? Há pouco não passou uma morena que o puxou pelo braço, convidando-o? Era a rapariga do momento, devia tê-la seguido Ah, negro, não deixes a alegria morrer É a imagem da outra que não tira do pensamento, que não lhe deixa ver mais nada. Afinal, a outra não lhe pertence ainda, pertence ao seu cordão; não devia proibi-la de sair. Pois ela já não lhe dera todas as provas? Que tenha um pouco de paciência: aquele corpo já lhe foi prometido, será dele mais tarde.

Andar na praça assim, todos desconfiam Quanto mais agora, que estão tocando o seu samba Está sombrio, inquieto, sem ouvir a sua música, na obsessão de que a amada pode ser de outrem, se abraçar com outro O negro não tem razão. Os navais não são mais fortes que ele, nem os estivadores Nem há nenhum tão alinhado. E Rosinha gosta é dele, se reserva para ele. Será medo do vestido com que ela deve sair hoje, aquele vestido em que fica maravilhosa, "rainha da cabeça aos pés"? Sua agonia vem da certeza de que é impossível que alguém possa olhar para Rosinha sem se apaixonar. E nem de longe admite que ela queira repartir o amor.

*

SXC
como estão tremelicando os seios daquela, lá longe; aquela diaba deve estar suando
Como estão tremelicando os seios daquela, lá longe; aquela diaba deve estar suando
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A Praça inteira está cantando, tremendo. O corpo de Rosinha não tardaria a boiar sobre ela como uma pétala. O povo dá passagem aos blocos que abrem esteiras na multidão, entre apertos e gritos.

- Isso não é assim à beça, Jerônimo! Cuidado com essa aíí! É virgem

Rompem novos cantos. Os "Destemidos de Quintino", os "Endiabrados de Ramos" estão desfilando. Há correria do povo para ver. Os companheiros se separam, as filhas perdem-se das mães, as crianças se extraviam. Acima das vagas humanas os estandartes palpitam como velas. E é pela ondulação dessas flâmulas que os que não podem se aproximar deduzem os movimentos das portas-estandartes.

Não se vê o corpo delas, vê-se-lhes o ritmo dos passos no pano alto. Mas era como se fossem vistas de corpo inteiro, tão fiel a imagem delas na agitação das bandeiras.

- Oh, aquela lá, que colosso! É pena não poder vê-la; mas é mulata, te garanto
- Ih, como deve estar dançando aquela do outro lado! Dezoito anos com certeza Coxas firmes Meio maluca
- A que está empunhando o estandarte que vem vindo aí é que deve ser do outro mundo. Preta com certeza Veja só como a bandeira se agita, como a bandeira samba com ela
- Pelo frenesi, a gente conhece logo.

Dezenas de estandartes pareciam falar, transmitiam mensagens ardentes, sacudiam-se, giravam, paravam, desfalecendo, reclinavam-se para beijar, fugiam

- Imagino como estão tremelicando os seios daquela, lá longe; aquela diaba deve estar suando Eta gostosura de raça!
- Cala a boca, Jerônimo Você acaba apanhando

*

Rafael Andrade/Folha Imagem
Mataram uma moça! Mataram, sim, mataram a moça num dia de alegria! Será possível?
Mataram uma moça! Mataram, sim, mataram a moça num dia de alegria! Será possível?

- Mataram uma moça!

A notícia, que viera da esquina da Rua Santana, circulou depois em torno da Escolha Benjamin Constant, corria agora por todos os lados alarmando as mães.

- Mataram uma moça! - comentava-se dentro dos bares. - Mataram, sim, mataram uma moça!
- Que maldade matarem uma moça assim, num dia de alegria! Será possível?
- Mas mataram, sim senhora, garanto que mataram!
- Como é o tipo dela? O senhor viu?
- Me disseram que é morena, de uns dezenove anos, por aí
- Morena? Dezenove anos! Ai, meu Deus! é capaz de ser a minha filha! Diga depressa como é o tipo do rosto dela

*

O negro não tira os olhos da vítima. Ela parecia sorrir; os curiosos é que queriam chorar. A qualquer momento ela poderia se erguer para dançar. Nunca se viu defunto tão vivo. Estavam esperando esse milagre. Ouvia-se uma canção que parece ter falado ao criminoso:

Quem quebrou meu violão de estimação?

Ronald Wittek/Efe
Agora é cinza, Tudo acabado, Nada mais
Agora é cinza, Tudo acabado, Nada mais

Foi ela

Ainda apareceram algumas mães retardatárias rondando de longe a morta.

A morta não tinha mãe nem parentes, só tinha o próprio assassino para chorá-la. É ele quem lhe acaricia os cabelos, lhe faz uma confidência demorada, a chama pelo nome:

- Está na hora, Rosinha Levanta, meu bem É o "Lira do Amor" que vem chegando Rosinha, você não me atende! Agora não é hora de dormir Depressa, que nós estamos perdendo O que é que foi? Você caiu? Como foi? Fui eu? Eu? Eu, não! Rosinha

Ele dobra os joelhos para beijá-la. Os que não queriam se comover foram se retirando. O assassino já não sabe bem onde está. Vai sendo levado agora para um destino que lhe é indiferente. É ainda a voz da mesma canção que fala alguma coisa ao desespero:

Quem fez do meu coração seu barracão?

Foi ela

Que ninguém o incomode agora. Larguem os seus braços. Rosinha está dormindo Não acordem Rosinha. Não é preciso segurá-lo, que ele não está bêbedo O céu baixou, se abriu Esse temporal assim é bom, porque Rosinha não sai. Tenham paciência Largar Rosinha ali, ele não larga não Não! E esses tambores? Ui! que ventania É guerra ele vai se espalhar Por que estão malhando em sua cabeça? Na bigorna do Engenho de Dentro é assim Se afastem que ele está lutando por ela Ele é bamba Não se massacra um operário dessa maneira Estão atrapalhando o seu caminho para Rosinha Se apitam assim, acordam ela Ela já não está presente Deslizando no éter Deixem ele passar Os outros fiquem no chão Fiquem por aí Ele vai tirar Rosinha da cama Ela está dormindo, Rosinha Fugir com ela, para o fundo do país Abraçá-la no alto de um colina

*

"Os 100 Melhores Contos de Medo, Horror e Morte da Literatura Universal"
Autor: Flávio Moreira da Costa (Org.)
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 40
Páginas: 552
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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