Livraria da Folha

 
09/07/2010 - 16h18

Professor Pasquale aponta quais palavras são "traiçoeiras" no português

da Livraria da Folha

Filipe Redondo/Folha Imagem
Professor Pasquale Cipro Neto é especialista em língua portuguesa
Professor Pasquale Cipro Neto é especialista em língua portuguesa

Em 52 artigos curtos e objetivos, "Inculta e Bela (Vol. 4)", o professor de língua portuguesa Pasquale Cipro Neto trata, com humor e objetividade, importantes aspectos do português, sempre entrelaçados a fatos cotidianos.

O autor fala sobre as concordâncias verbal e nominal, acentuação, ortografia, entre outros, sem a excessiva ênfase nas regras e exceções gramaticais que tendem a afastar as pessoas.

No trecho abaixo, Pasquale descreve quais palavras são consideradas "traiçoeiras" na língua portuguesa. O pecado mora ao lado das terminologias médicas, mas não abandona também outras palavras como "discreção" e "discrição", a dupla perigosa formada pelo verbo "estender" e pelo substantivo "extensão", entre outros.

Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro e não está atualizado de acordo com as regras do Novo Acordo Ortográfico. Conheça o livro "Escrevendo pela Nova Ortografia".

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Palavras traiçoeiras

Reprodução
Prof. Pasquale mostra curiosidades e esclarece dúvidas do português
Prof. Pasquale mostra curiosidades e esclarece dúvidas do português

Em um texto anterior, escrevi sobre termos médicos. "Má-formação" (e sua variante espúria "malformação", comum na literatura médica e registrada pelos dicionários e pelo Vocabulário Ortográfico), "liquor" (e sua variante "líquor") e "cateter" foram alguns dos termos comentados. Pois bem. Ontem [31/01/2001], na via Dutra, policiais impediram um assalto a uma transportadora. Houve tiroteio e um delegado foi ferido. No rádio, um repórter informou que uma bala atingiu a veia "femural" do delegado. A veia é mesmo "femural"?

Aviso logo que não me atrevo a entrar no mérito da localização e da função da veia. Limito-me à questão lingüística. Imbuído de boa-fé, o repórter deve ter associado o adjetivo ao substantivo, o que o levou a manter a base deste naquele. E foi traído. O substantivo é "fêmur" (do latim femur), mas o adjetivo é "femoral" (do latim femoris). A veia não é "femural"; é "femoral".

Caso único? Antes fosse! No território médico, o tórax se encarrega de fornecer mais um. Diferentemente do que talvez o substantivo possa sugerir, o adjetivo é "torácico", com "c". A caixa é torácica, e não "toráxica". Em vários termos técnicos ligados ao tórax aparece o "c", e não o "x" ("toracografia", "toracostomia", "toracoscopia", entre outros). Caso único? Antes fosse! No território médico, o tórax se encarrega de fornecer mais um. Diferentemente do que talvez o substantivo possa sugerir, o adjetivo é "torácico", com "c". A caixa é torácica, e não "toráxica". Em vários termos técnicos ligados ao tórax aparece o "c", e não o "x" ("toracografia", "toracostomia", "toracoscopia", entre outros).

A "traição" não é privilégio da terminologia médica. Fora dela, os exemplos são numerosos. Qual é o nome da qualidade possuída por quem é discreto? Será "discreção", como sugere o adjetivo? Não é. É "discrição", com "i" mesmo, o que também vale para o antônimo ("indiscrição"). Quem é discreto age com discrição; quem é indiscreto, com indiscrição.

Outra dupla perigosa é formada pelo verbo "estender" e pelo substantivo "extensão". As duas vêm do latim (extendere e extensione, respectivamente). Por um dos tantos caprichos de nosso complicado sistema gráfico, o "x" ficou no substantivo, mas foi trocado por "s" no verbo. Não é à toa que, na parte de automóveis dos classificados dos jornais, as formas "estendida" e "extendida" se alternam nos anúncios de picapes que têm cabina (ou "cabine", tanto faz) estendida (com "s", já que vem de "estender").

Os adjetivos baseados em nomes de escritores importantes também são problemáticos. Muitas vezes se lê "rodrigueano", quando se trata de algo relativo a Nelson Rodrigues e seu universo dramático. A forma correta é "rodriguiano", com "i". Temos aí o sufixo "-iano", que designa procedência, origem. Também terminam em "-iano" os adjetivos "rosiano" (relativo a Guimarães Rosa) e "camoniano" (relativo a Luís de Camões).

Por fim, uma dupla mais do que traiçoeira: "catequese" e "catequizar". Haja cuidado para não errar os membros da família! É bom lembrar que "catequizado", "catequização" ("ato de catequizar"), "catequizador" e "catequizante" vêm de "catequizar", portanto se grafam com "z".

Depois desse festival de "traições", torna-se difícil dar este conselho: em geral, as palavras derivadas tendem a manter a base gráfica das primitivas. Se quiser (e puder), acredite. É isso. (01/02/01)

 
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