Livraria da Folha

 
06/08/2010 - 09h15

"Essencial Joaquim Nabuco" reúne textos das principais obras do abolicionista

da Livraria da Folha

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Joaquim Nabuco em foto da época em que foi embaixador em Washington, de 1905 a 1910
Joaquim Nabuco em foto da época em que foi embaixador em Washington, de 1905 a 1910

"O Abolicionismo" (1883), "Um Estadista do Império" (1897), "Minha Formação" (1900), entre outros trechos das principais obras do abolicionista, político e diplomata brasileiro Joaquim Nabuco (1849-1910) estão reunidos em "Essencial Joaquim Nabuco", lançamento do selo Penguin-Companhia. Os textos foram selecionados pelo historiador Evaldo Cabral de Mello.

De forma temática, os textos costuram não apenas a trajetória de Nabuco e a evolução de seu pensamento e atitudes apaixonadas ao longo dos anos, mas, sobretudo, o tempo histórico brasileiro em suas décadas mais decisivas.

Criado no ambiente da aristocracia escravista, o diplomata não se intimidou em denunciar as injustiças e a liderar a campanha da abolição. Por sua coragem e ativismo social, é tido um dos maiores homens públicos que o Brasil já teve.

Leia abaixo um trecho extraído da primeira parte do livro, composto por textos abolicionistas.

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Influências sociais e políticas da escravidão

Não é somente como instrumento produtivo que a escravidão é apreciada pelos que a sustentam. É ainda mais pelos seus resultados políticos e sociais, como o meio de manter uma forma de sociedade na qual os senhores de escravos são os únicos depositários do prestígio social e poder político, como a pedra angular de um edifício do qual eles são os donos, que esse sistema é estimado. Aboli a escravidão e introduzireis uma nova ordem de coisas.
Professor Cairnes

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Textos de "O Abolicionismo", "Um Estadista do Império", "Minha Formação", entre outros
Textos de "O Abolicionismo", "Um Estadista do Império", "Minha Formação", entre outros

Depois da ação que vimos do regímen servil, sobre o território e a população, os seus efeitos sociais e políticos são meras consequências. Um governo livre, edificado sobre a escravidão, seria virgem na história. Os governos antigos não foram baseados sobre os mesmos alicerces da liberdade individual que os modernos e representam uma ordem social muito diversa. Só houve um grande fato de democracia combinada com a escravidão, depois da Revolução Francesa - os Estados Unidos; mas os Estados do Sul nunca foram governos livres. A liberdade americana, tomada a União como um todo, data, verdadeiramente, da proclamação de Lincoln que declarou livres os milhões de escravos do Sul. Longe de serem países livres, os Estados ao sul do Potomac eram sociedades organizadas sobre a violação de todos os direitos da humanidade. Os estadistas americanos, como Henry Clay e Calhoun, que transigiram ou se identificaram com a escravidão não calcularam a força do antagonismo que devia, mais tarde, revelar-se tão formidável. O que aconteceu - a rebelião na qual o Sul foi salvo pelo braço do Norte do suicídio que ia cometer, separando-se da União para formar uma potência escravagista, e o modo como ela foi esmagada - prova que nos Estados Unidos a escravidão não afetara a constituição social toda, como entre nós; mas deixara a parte superior do organismo intata, e forte ainda bastante para curvar a parte até então dirigente à sua vontade, apesar de toda a sua cumplicidade com essa.

Entre nós, não há linha alguma divisória. Não há uma seção do país que seja diversa da outra. O contato foi sinônimo de contágio. A circulação geral, desde as grandes artérias até aos vasos capilares, serve de canal às mesmas impurezas. O corpo todo - sangue, elementos constitutivos, respiração, forças e atividade, músculos e nervos, inteligência e vontade, não só o caráter, senão o temperamento, e mais do que tudo a energia - acha-se afetado pela mesma causa.

Não se trata, somente, no caso da escravidão no Brasil, de uma instituição que ponha fora da sociedade um imenso número de indivíduos, como na Grécia ou na Itália antiga, e lhes dê por função social trabalhar para os cidadãos; trata-se de uma sociedade não só baseada, como era a civilização antiga, sobre a escravidão, e permeada em todas as classes por ela, mas também constituída, na sua maior parte, de secreções daquele vasto aparelho.

Com a linha divisória da cor, assim era, por exemplo, nos Estados do Sul da União. Os escravos e os seus descendentes não faziam parte da sociedade. A escravidão misturava, confundia, a população em escala muito pequena. Estragava o solo, impedia as indústrias, prepara va a bancarrota econômica, afastava a imigração, produzia, enfim, todos os resultados dessa ordem que vimos no Brasil; mas a sociedade americana não era formada de unidades, criadas por esse processo. A emenda constitucional, alterando tudo isso, incorporou os negros na comunhão social, e mostrou como são transitórias as divisões que impedem artificialmente ou raças ou classes de tomar o seu nível natural.

Mas, enquanto durou a escravidão, nem os escravos nem os seus descendentes livres concorreram, de forma alguma, para a vida mental ou ativa dessa sociedade parasita que eles tinham o privilégio de sustentar com o seu sangue. Quando veio a abolição, e depois dela a igualdade de direitos políticos, a Virgínia e a Geórgia viram, de repente, todas as altas funções do Estado entregues a esses mesmos escravos, que eram, até então, socialmente falando, matéria inorgânica, e que, por isso, só podiam servir nesse primeiro ensaio de vida política para instrumentos de especuladores adventícios, como os carpet baggers. Esse período, entretanto, pode ser considerado como a continuação da guerra civil. A separação das duas raças, que fora o sistema adotado pela escravidão norte-americana - mantida por uma antipatia à cor preta, que foi sucessivamente buscar fundamentos na maldição de Cam e na teoria da evolução pitecoide, e por princípios severos de educação -, continua a ser o estado das relações entre os dois grandes elementos de população dos Estados do Sul.

No Brasil deu-se exatamente o contrário. A escravidão, ainda que fundada sobre a diferença das duas raças, nunca desenvolveu a prevenção da cor, e nisso foi infinitamente mais hábil. Os contatos entre aquelas, desde a colonização primitiva dos donatários até hoje, produziram uma população mestiça, como já vimos, e os escravos, ao receberem a sua carta de alforria, recebiam também a investidura de cidadão. Não há assim, entre nós, castas sociais perpétuas, não há mesmo divisão fixa de classes. O escravo, que, como tal, praticamente, não existe para a sociedade, porque o senhor pode não o ter matriculado e, se o matriculou, pode substituí-lo, e a matrícula mesmo nada significa, desde que não há inspeção do Estado nas fazendas, nem os senhores são obrigados a dar contas dos seus escravos às autoridades. Esse ente, assim equiparado, quanto à proteção social, a qualquer outra coisa de domínio particular, é, no dia seguinte à sua alforria, um cidadão como outro qualquer, com todos os direitos políticos e o mesmo grau de elegibilidade. Pode mesmo, ainda na penumbra do cativeiro, comprar escravos, talvez, quem sabe? - algum filho do seu antigo senhor. Isso prova a confusão de classes e indivíduos e a extensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre escravos e livres, que fazem da maioria dos cidadãos brasileiros, se se pode assim dizer, mestiços políticos, nos quais se combatem duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado.

A escravidão, entre nós, manteve-se aberta e estendeu os seus privilégios a todos indistintamente: brancos ou pretos, ingênuos ou libertos, escravos mesmo, estrangeiros ou nacionais, ricos ou pobres; e, dessa forma, adquiriu, ao mesmo tempo, uma força de absorção dobrada e uma elasticidade incomparavelmente maior do que houvera tido se fosse um monopólio de raça, como nos Estados do Sul. Esse sistema de igualdade absoluta abriu, por certo, um melhor futuro à raça negra do que era o seu horizonte na América do Norte. Macaulay disse na Câmara dos Comuns em 1845, ano do bill Aberdeen: "Eu não julgo improvável que a população preta do Brasil seja livre e feliz dentro de oitenta ou cem anos. Não vejo porém perspectiva razoável de igual mudança nos Estados Unidos". Essa intuição da felicidade relativa da raça nos dois países parece hoje ser tão certa quanto provou ser errada a suposição de que os Estados Unidos tardariam mais do que nós a emancipar os seus escravos. O que enganou, nesse caso, o grande orador inglês foi o preconceito da cor, que se lhe figurou ser uma força política e social para a escravidão, quando, pelo contrário, a força desta consiste em banir tal preconceito e em abrir a instituição a todas as classes. Mas, por isso mesmo, entre nós, o caos étnico foi o mais gigantesco possível, e a confusão reinante nas regiões em que se está elaborando, com todos esses elementos heterogêneos, a unidade nacional faz pensar na soberba desordem dos mundos incandescentes.

 
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