Livraria da Folha

 
11/08/2010 - 11h18

Leia trecho do novo livro de Dai Sijie, autor de "Balzac e a Costureirinha Chinesa"

da Livraria da Folha

Divulgação
Romance de Dai Sijie narra busca por manuscritos perdidos na China
Romance de Dai Sijie narra busca por manuscritos perdidos na China

O trabalho mais recente do escritor e diretor de cinema francês de origem chinesa Dai Sijie, "Em Uma Noite Sem Luar" (Objetiva, 2010), narra o encontro de uma estudante francesa com um chinês filho de europeu em Pequim, na China.

Ela trabalha como intérprete para o cineasta italiano Bernardo Bertolucci durante a pré-produção do longa-metragem "O Último Imperador".

Ao conhecer o tímido Tumchooq, a protagonista se interessa por sua história, assim como a de seu pai, um francês tradutor de textos buditas que sumiu durante o regime maoísta enquanto investigava uma ruína no país.

Juntos, eles passam a procurar pela metade desaparecida de um manuscrito em língua desconhecida deixado pelo pai dele.

Dai Sijie escreveu e dirigiu "Balzac e a Costureirinha Chinesa" (Objetiva). Também é autor de "O Complexo de Di" (Objetiva) e do filme "Les Filles du Botaniste", que fala sobre uma polêmica relação de amor entre duas mulheres na China.

Leia trecho.

*

Chamemos de relíquia mutilada esse pequeno texto sagrado escrito em uma língua já morta sobre um rolo de seda que, vítima de uma crise violenta de loucura, foi rasgado ao meio - não com as mãos nem com faca ou tesoura, mas com os dentes de um imperador enfurecido.

Meu encontro casual com o professor Tang Li, em meados de julho de 1978, numa sala de reuniões do Hotel de Pequim, e aquilo que ele me revelou sobre esse tesouro brilham ainda hoje como um pequeno quadrado de luz no labirinto enevoado e turvo em que se transformaram as minhas lembranças da China.

Pela primeira vez na vida eu era remunerada como intérprete, numa reunião de consulta organizada por uma produção de Hollywood para estabelecer o roteiro de O último imperador, que resultaria no filme espetacular que todos conhecem, coroado com oito ou nove Oscars e que arrecadou uma quantia faraônica nas bilheterias. Com a permissão da Universidade de Pequim, onde estava matriculada como estudante estrangeira no departamento de literatura chinesa, munida de um caderninho de anotações comprado na véspera especialmente para a ocasião, fui ao Hotel de Pequim no meio de uma tarde de verão em que o calor transformava tudo em vapor, fazendo da cidade uma caldeira na qual fervíamos a fogo brando. Com guinchos agônicos, as rodas de minha bicicleta enfiavam-se no asfalto grudento, amolecido pelo calor, do qual subiam, em espirais, fios azuis de fumaça. Tomava conta da entrada do grande hotel de oito andares, único arranha- céu da época, uma agitação fora de controle. A porta giratória de vidro fora ocupada por uma multidão barulhenta de cinquenta, cem, duzentas pessoas - não saberia dizer exatamente. Pela diversidade dos sotaques, podia-se ver que tinham vindo de todos os cantos da China. Pais carregados com sacolas de alimentos, crianças levando nas costas um estojo de violino, vestindo, apesar do calor, um paletó ocidental, com uma camisa branca bem-abotoada e uma gravata borboleta ou gravata simples, embora algumas tivessem apenas seis ou sete anos de idade. Quando uma criança, acompanhada do pai ou da mãe, aparecia vinda do hall, provocava imediatamente um alvoroço; os outros se precipitavam em sua direção, espremiam-se em volta deles, cobriam-nos de perguntas, agitavam- se, discutiam, com ar de preocupação... Dir-se-ia uma verdadeira multidão de refugiados angustiados debatendo-se na entrada de uma embaixada. Acabei entendendo que todos estavam ali à espera de uma audiência privada com Yehudi Menuhin, que ia à China uma vez por ano com uma missão artística e beneficente, na qual não faltava uma sutil campanha publicitária pessoal: revelar uma ou duas crianças-prodígio, um novo Mozart chinês. Para os violinistas iniciantes, tratava-se de uma oportunidade de ouro, a chance inesperada de partir para os Estados Unidos e frequentar uma escola de música dirigida pelo próprio mestre.

O elevador estava quebrado, e a subida até o oitavo andar, onde se realizava a minha reunião, exigiu um esforço considerável, maior ainda pelo fato de vários violinistas estarem amontoados também nas escadas, sentados ou deitados nos degraus, nos corredores e nos peitoris das janelas. Morta de cansaço, finalmente entrei na sala de reunião, a qual, por coincidência, ficava ao lado da sala de audiência dos futuros concertistas, cuja porta estava fechada.

Fui convidada a me juntar a um grupo composto por um representante do diretor ítalo-americano, uma assistente de produção, um outro tradutor e uma dezena de eminentes historiadores chineses, em torno de uma mesa retangular coberta com uma toalha branca cheia de garrafas de Coca-Cola, xícaras de chá, cinzeiros, vasos de rosas de plástico e de papel, no meio da qual reinava um gravador profissional, imponente e majestoso. Na parede estava presa uma ampliação de uma fotografia em preto e branco de Puyi, o último imperador, tirada na Cidade Proibida num dia de inverno particularmente rigoroso de 1920, trajando uma roupa ocidental, com óculos de vidros redondos e sem aros, os traços rígidos, o olhar sombrio. As trocas de apresentações e os apertos de mão eram acompanhados pela minha tradução hesitante do chinês para um inglês com forte sotaque francês, enquanto o outro intérprete, não muito mais à vontade do que eu, traduzia do inglês para o chinês; o protocolo era estritamente respeitado. Notei a presença de um chinês de uns sessenta anos de idade diferente de seus compatriotas, todos eles com camisas de mangas curtas. Estava todo coberto com o traje tradicional chinês, um robe de seda azul-escuro, abotoado lateralmente, que descia até os pés e lhe conferia, considerando a estação do ano, um aspecto meio despropositado, porém tocante. Era o único a se inclinar para cumprimentar os convidados da reunião, mas sem a menor bajulação, e, às vezes, erguia a mão elegantemente, num gesto de uma lentidão antiquada, para acariciar a longa barba branca que flutuava levemente ao sopro do ventilador de teto. O tempo parecia ter-se fixado nele, que encarnava sozinho toda uma época, um universo à parte. Quando pronunciou seu nome, em duas letras, senti-me tocada pela sua simplicidade e pela sua familiaridade, que se associava, em minha mente, a... eu procurava, procurava, examinando seu rosto, mas em vão. A lembrança se perdia em alguma dobra da memória entorpecida pelo nervosismo daquela primeira experiência profissional. Quando traduzi a forma como seus colegas chineses o apresentavam - "o dicionário vivo da Cidade Proibida" -, o representante do diretor deu uma gargalhada e, com um ar condescendente, prometeu encaixar aquele "Senhor" como figurante ou até mesmo em algum papel menor. Os outros chineses riram muito, mas ele não. Ouvi um zunido de insetos que o sopro artificial do ventilador fazia dançarem nos pequenos focos de luz da sala. O som de um violino, no outro lado da parede, uma sonata ou um concerto de Mendelssohn, suave, um tanto piegas, servia de música de fundo da reunião.

Passaram-se duas ou três horas até que meu olhar se voltou novamente para o homem de traje tradicional. A reunião, durante a qual ele permanecera calado, chegava ao fim, os presentes olhavam para seus relógios impacientemente, quando ele, de repente, pediu a palavra, com uma voz cansada, frágil, como que abafada.

- Se ainda tivermos mais alguns minutos, gostaria, muito humildemente, tão humildemente quanto me impõe a minha cultura, de pleitear o restabelecimento da verdade.

Numa fração de segundo, traduzindo suas palavras, achei que me lembrara do que o seu nome evocava em mim. Era... Nesse instante, um enorme mosquito, grudado na testa reluzente do representante do diretor, chamou-me a atenção; eu o vi se soltar dali, voar, voltar e aterrissar com precisão na ponta de seu nariz, provavelmente menos oleoso. Passou pela minha cabeça o verso de um poeta russo que eu tinha acabado de traduzir: "O mosquito exibia com beatitude um pequenino ventre rubi." Era exatamente isso. Quanto a saber quem era o velho chinês, minhas reminiscências, que mal tinham despertado, acabaram por se apagar.

- Peço ao diretor e a seus roteiristas - prosseguiu o velho -, por seu intermédio ou por intermédio do gravador do qual meus eminentes colegas não afastam os olhos, que joguem esse roteiro, ao menos essa versão, no lixo do hotel, onde, a despeito de seu prestígio, vive uma importante população subterrânea saltitante, como a chamava La Fontaine, que o roerá, eu espero, página por página, palavra por palavra, de tão mal que ele retrata a verdadeira personalidade de Puyi, que era, ao contrário do que dá a entender a biografia mentirosa na qual se baseia o seu roteiro, um ser patologicamente complexo, e não me refiro de modo algum à sua homossexualidade, pois outros imperadores antes dele também tiveram tendência semelhante. A questão não é essa, mas sim a sua crueldade sádica, seus frequentes acessos de delírio, tão imprevisíveis quanto incontroláveis, coisas de um esquizofrênico, no sentido puramente médico da palavra.

No silêncio generalizado, podiam-se ouvir, através da parede, as notas soltas do motivo com o qual começa o allegro de um concerto de Beethoven e, em seguida, um tapa que o representante do diretor deu em si mesmo. O mosquito, que eu não conseguia ver mais, devia ter escapado do golpe e desaparecido.

- Merda!

Gritando essa palavra vingativa, o sujeito levantou da cadeira, esmagou o inseto entre as mãos e lançou seu cadáver esmagado e sanguinolento num cinzeiro, onde o calcinou com a ponta de seu cigarro.

- O que é que esse mosquito estava fazendo aqui? - disse ele. - Queria fazer cinema também?

Deu uma gargalhada, para declarar em seguida que a reunião, então, encerrava-se por ali. Antes de sair, virou-se para mim.

- Diga ao velho que ele certamente está dizendo a verdade, mas que ela é triste demais, negativa demais, que ela não é nada conveniente para o público ocidental, que não tem valor algum para o cinema, que ninguém se interessa por isso, muito menos um diretor conhecido mundialmente e cujo objetivo se resume numa única palavra: Oscar.

E saiu. Enquanto eu fazia a tradução, procurando com dificuldade alguns contornos e palavras atenuantes, o "dicionário vivo da Cidade Proibida" fixava seus olhos enormes em mim, sua barba lisa e seus cabelos brancos entesados de tanta raiva.

Só depois que a sua silhueta, naquele robe azul, desapareceu oscilante atrás da porta e que fechei aliviada o meu caderno cheio de rabiscos, veio-me à mente, de repente, aquilo que pouco antes eu não tinha conseguido me lembrar. Tang Li, é claro! O autor da Biografia secreta de Cixi. Eu me levantei, cruzei a porta e avancei pelo corredor, trombei com alguém e me lancei pela escadaria onde se amontoavam os futuros Mozarts, entre os quais fui abrindo caminho, a cada andar. Como se estivesse diante do portador da Boa-nova, a multidão nervosa, torturada pela espera e pela angústia, animou-se novamente. Meu jeito apressado, meu pequeno caderno de tradutora, meu físico ocidental... eram detalhes certamente insignificantes mas que foram suficientes para suscitar expectativas, para erguer ondas de excitação que me acompanharam até o térreo, chuvas de perguntas, de súplicas, de temores quanto à escolha do rei do violino, de quem achavam que eu fosse a poderosa assistente que programava nos bastidores as audiências a portas fechadas. Apesar das minhas explicações, em meio às quais eu não parava de jurar em vão em nome do cinema e de pronunciar o nome de um outro rei, o da câmera, os pais dos jovens artistas me perseguiam obstinadamente, só Deus sabe o porquê, e uma mãe de uns trinta anos de idade, corcunda, o cabelo com permanente, o rosto todo suado, portando uma saia barata, puxando os filhos pelo braço, seguida do marido careca, partiu atrás de mim como uma predadora decidida e desceu as escadas com a impetuosidade de um corajoso soldado, sem me perder de vista. Mas ela deve ter tropeçado em algum degrau, pois sua sacola caiu e dela saíram latas, sanduíches, garrafas d'água e uma maçã vermelha que ficou saltitando de degrau em degrau até o patamar.

Na rua, já era quase noite. Tive de deixar minha bicicleta no estacionamento e atravessar, à custa de muita acrobacia, o fluxo intenso, não de automóveis, que eram objetos raros naquela época, mas das bicicletas, que avançavam de modo irrefreável, para alcançar o velho de robe azul comprido no ponto do bonde, do outro lado da avenida mais larga da China, construída na loucura das grandiosidades dos anos cinquenta, imitando a Praça Vermelha de Moscou. Por dois segundos, eu teria perdido o bonde. O motorista partiu, mas meu alívio se desvaneceu quando vi chegarem correndo, ofegantes, o pai, o filho e o estojo do violino, sem, no entanto, a mãe. Corri até a porta, que tremia com os socos dados pelo pai e acabou-se abrindo. Mais uma vez fui posta a uma difícil prova; expliquei-lhe quem eu era, auxiliada pelo testemunho do velho historiador, que veio me ajudar e cuja hostilidade parecia ter sumido naquela avenida cinza e imponente, conhecida então no mundo todo por seus desfiles militares, suas grandes manifestações supostamente populares e, anos mais tarde, pelo massacre de estudantes. O pai, perdido em meio a nomes como Menuhin, Bertolucci e Puyi, finalmente jogou a toalha, e a pressão de um grupo de estudantes que se aglomerava na porta do bonde acabou por afastá-lo, desamparado, junto com o filho.

Mais do que os olhos fixos, imóveis, quase saltando das órbitas do velho historiador, é sua voz que me vem à mente e que ainda vibra em meus ouvidos; um fio de voz fremente, cansada, de grande suavidade, engolida na maior parte do tempo pelo barulho do bonde. Sua voz e a maneira com que ele limpava a garganta quando uma onda de tristeza ou de indignação o envolvia. Em pé entre os demais usuários, as mãos presas numa correia de couro, sem nada falar sobre as curvas que quase o derrubavam, sem olhar para mim, ele retomou o tema de Puyi no ponto em que fora interrompido naquela tarde, como se nada tivesse acontecido naquele intervalo de tempo e a reunião prosseguisse naturalmente no bonde todo empoeirado.

*

"Em Uma Noite Sem Luar"
Autor: Dai Sijie
Editora: Objetiva
Páginas: 248
Quanto: R$ 38,90 (veja preço especial)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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