Livraria da Folha

 
12/08/2010 - 11h11

Leia trecho de "O Desfile de Páscoa", novo livro do autor de "Foi Apenas um Sonho"

da Livraria da Folha

Divulgação
Duas irmãs com vidas muito diferentes buscam a felicidade
Duas irmãs com vidas muito diferentes buscam a felicidade

"O Desfile de Páscoa" (Objetiva, 2010), do escritor norte-americano Richard Yates (1926-1992), conta a vida de duas irmãs e como o divórcio dos pais influenciou cada uma delas.

Apesar de crescerem de maneiras completamente diferentes, a dupla tem angústias muito parecidas. Enquanto uma casa cedo, com um marido cabeça dura e tem três filhos, a outra busca independência e sucesso no trabalho. No fundo, ambas querem a mesma coisa, apenas um pouco de felicidade.

A vida das irmãs se cruzará a todo momento, em situações por vezes dramáticas.

O título é considerado por parte da crítica como o melhor trabalho de Yates, conhecido em seu país como "poeta da solidão americana nos subúrbios". Seus escritos ganharam reconhecimento após a adaptação do romance "Foi Apenas um Sonho - Rua da Revolução" (Alfaguara, 2009) para o cinema.

Leia o trecho inicial de "O Desfile de Páscoa" .

*

Capítulo 1

Nenhuma das irmãs Grimes teria uma vida feliz e, olhando em retrospecto, sempre pareceu que o problema começou com o divórcio de seus pais. Isso aconteceu em 1930, quando Sarah estava com nove anos e Emily, cinco. A mãe delas, que encorajava ambas a chamá-la de "Pookie",* tirou-as de Nova York para uma casa alugada em Tenafly, Nova Jersey, onde pensou que as escolas seriam melhores e onde esperava dar início a uma carreira imobiliária nos subúrbios. A coisa não deu certo - pouquíssimos planos de independência dela algum dia deram - e partiram de Tenafly dois anos depois, mas foi um período inesquecível para as meninas.

"Seu pai nunca tá em casa?", perguntavam as outras crianças, e Sarah sempre se adiantava para explicar o que era um divórcio.

"Vocês nunca encontram ele?"

"Claro que a gente encontra."

"Onde ele mora?"

"Na cidade, em Nova York."

"Que é que ele faz?"

"Escreve manchetes. Ele escreve manchetes do Sun de Nova York." E o modo como disse isso deixou claro que era para ficarem impressionadas. Qualquer um podia ser um reporterzinho irresponsável metido a besta ou um burro de carga dum redator; mas o sujeito que escrevia as manchetes! O cara que lia de cabo a rabo toda a complexidade das notícias diárias para selecionar temas importantes e depois resumir tudo em umas poucas palavras muito bem escolhidas, engenhosamente combinadas para caber num espaço limitado - havia um jornalista e pai consumado digno do nome.

Certa vez, quando as garotas foram visitá-lo na cidade, ele as levou para ver a redação do Sun e elas conheceram tudo.

"A primeira edição está pronta pra rodar", ele disse, "então vamos descer na sala de impressão e dar uma olhada; depois eu mostro os andares de cima pra vocês". Desceu com elas por uma escada de ferro que cheirava a tinta e papel de jornal, e deram em um amplo espaço subterrâneo onde as enormes rotativas se enfileiravam uma atrás da outra. Operários corriam por todos os lados, todo mundo usando uns vistosos chapeuzinhos quadrados feitos com folha de jornal dobrada de um jeito complicado.

"Pra que eles usam esse chapéu de papel, pai?", perguntou
Emily.

"Bom, se você perguntar eles vão dizer que é pra não sujar o cabelo de tinta, mas eu acho que é só porque eles gostam de se sentir chiques."

"O que quer dizer 'chique'?"

"Ah, é mais ou menos como esse ursinho seu", ele disse, apontando o broche cravejado de granadas em forma de ursinho que ela usava no vestido nesse dia, e que esperava que alguém notasse. "É um ursinho muito chique."

Observaram as lâminas curvas das páginas recém-moldadas deslizando sobre esteiras rolantes e se ajustando em seus lugares nos cilindros; em seguida, após um toque de campainha, observaram as máquinas rodando. O piso metálico tremeu sob seus pés, fazendo cócegas, e o ruído era tão ensurdecedor que não podiam conversar: só conseguiam olhar uns para os outros e sorrir, e Emily tapou os ouvidos com as mãos. Faixas brancas de folhas de jornal corriam em todas as direções entre as máquinas, e jornais prontinhos saíam em pilhas ordenadamente sobrepostas.

"O que vocês acharam?", perguntou Walter Grimes para as filhas quando subiam as escadas. "Agora vamos dar uma olhada na redação de cidade."

Era um mar de mesas, onde os homens sentavam martelando máquinas de escrever. "Aquele lugar ali na frente onde juntaram as mesas é a mesa de cidade", ele disse. "O editor de cidade é aquele sujeito careca conversando ao telefone. E aquele outro sujeito ali é mais importante ainda. É o chefe de redação."

"Onde é que fica sua mesa, pai?", perguntou Sarah.

"Ah, eu trabalho na mesa dos copidesques. Lá no canto. Estão vendo?" Apontou uma enorme mesa em semicírculo feita de madeira amarela. Um homem sentava no centro e seis outros em torno, lendo ou escrevendo com lápis.

"É ali que você escreve as manchetes?"

"Bom, escrever os títulos é parte do trabalho, é. Funciona assim: quando os repórteres e os redatores terminam as matérias, eles dão na mão do contínuo - aquele sujeitinho ali é um contínuo -, e ele traz pra gente. A gente revisa a matéria pra ver se não tem erro de gramática, de grafia e de pontuação, depois escreve os títulos e elas estão prontas pra ir. Oi, Charlie", disse para um homem que passava a caminho do filtro. "Charlie, quero que conheça minhas meninas. Esta é a Sarah e esta é a Emily."

"Puxa", disse o homem, curvando o tronco. "Que mocinhas mais lindas. Tudo bem com vocês?"

Em seguida ele as levou para a sala do teletipo, onde puderam assistir ao serviço de notícias chegando de todas as partes do mundo, e depois para a sala da composição, onde os tipos eram encaixados para formar as páginas. "Estão prontas pra almoçar?", perguntou. "Querem ir ao banheiro, primeiro?"

Quando caminhavam pelo City Hall Park ao sol primaveril, ele segurou as duas pela mão. Ambas usavam casaquinhos leves em cima de seus melhores vestidos, com meias brancas e sapatos pretos de couro envernizado, e eram garotas muito bonitas. Sarah era a morena, com um ar de inocência e credulidade que jamais perderia; Emily, uma cabeça mais baixa, era loira, magra e muito séria.

"City Hall não parece grande coisa, parece?", disse Walter Grimes. "Mas estão vendo aquele prédio alto ali no meio das árvores? O vermelho escuro? Aquele é o World - era, quero dizer; fechou no ano passado. O maior jornal diário do país."

"Bom, mas o Sun é o melhor agora, não é?", disse Sarah.

"Ah, não, amor; o Sun não é grande coisa como jornal."

"Não? Por quê?", Sarah parecia preocupada.

"Ah, ele é meio que reacionário."

"O que isso quer dizer?"

"Quer dizer muito, muito conservador; muito republicano."

"A gente não é republicano?"

"Acho que sua mãe é, queridinha. Eu não sou."

"Oh."

Ele tomou duas bebidas antes do almoço, pedindo ginger ale para as meninas; depois, quando se debruçavam sobre seu frango à la king com batata amassada, Emily falou pela primeira vez desde que haviam saído do jornal. "Pai? Se você não gosta do Sun, por que trabalha lá?"

Seu rosto triste, que as duas garotas consideravam bonito, parecia cansado. "Porque eu preciso do emprego, coelhinha", ele disse. "Está ficando difícil arranjar emprego. Ah, imagino que se eu fosse bem talentoso, podia achar outra coisa, mas sou só um - sabem como é -, sou apenas um copidesque."

Não era muito com que voltar para Tenafly, mas pelo menos ainda podiam dizer que ele escrevia manchetes.

"... E se você acha que escrever manchetes é fácil, está muito enganado!", falou Sarah para um menino malcriado no parquinho depois da escola, um dia.

Emily, porém, era uma chata da precisão, e assim que o menino se afastou, lembrou sua irmã dos fatos. "Ele é só um copidesque", disse.

Esther Grimes, ou Pookie, era uma mulher pequena e ativa cuja vida parecia devotada a atingir e manter uma qualidade elusiva que ela chamava de "estilo". Examinava atentamente as revistas de moda, procurava se vestir bem e experimentava várias maneiras de arrumar o cabelo, mas seu olhar parecia eternamente desnorteado e nunca aprendeu de fato a manter o batom bem delineado em sua boca, o que lhe emprestava um ar de hesitação confusa e vulnerável. Encontrava mais estilo entre gente rica do que na classe média, e desse modo aspirava às atitudes e aos maneirismos dos ricos na criação de suas filhas. Ela sempre procurou morar entre pessoas "agradáveis", pudesse ou não se dar a esse luxo, e tentava ser rígida em questões de etiqueta.

"Meu bem, eu preferia que você não fizesse assim", disse para Sarah ao café da manhã, certo dia.

"Assim como?"

"Mergulhar a torrada no leite, desse jeito."

"Oh." Sarah puxou do copo uma comprida fatia amanteigada encharcada de leite e a levou pingando de encontro à boca. "Por quê?", perguntou, depois de mastigar e engolir.

"Porque sim. Porque não é bonito. Emily é quatro anos mais nova que você e ela não faz coisas de nenê desse jeito."

E isso era outra coisa: ela sempre sugeria, em centenas de modos diferentes, que Emily tinha mais estilo que Sarah.

Quando ficou claro que não conseguiria coisa alguma como corretora de imóveis em Tenafly, ela começou a fazer viagens frequentes que duravam o dia todo para outras cidades, ou por Nova York, deixando as meninas com outras famílias. Sarah parecia não ligar para suas ausências, mas Emily, sim: ela não gostava dos cheiros nas casas das outras pessoas; não conseguia comer; ficava preocupada o dia inteiro, imaginando horríveis acidentes de trânsito, e se Pookie aparecia com uma hora ou duas de atraso para apanhá-las, chorava como um bebê.

Certo dia, no outono, foram ficar com uma família chamada Clark. Levaram suas bonecas de papel-cartão com elas, para o caso de não terem com quem brincar, o que parecia provável - os três filhos dos Clark eram meninos -, mas a sra. Clark advertiu o filho mais velho, Myron, a ser um bom anfitrião, e ele levou essa atribuição a sério. Estava com onze anos e passou o dia se exibindo para elas. "Ei, olha só", dizia. "Olha isso."

Havia um cano metálico horizontal sustentado por postes de metal nos fundos do quintal dos Clark, e Myron era muito bom em se pendurar ali de cabeça para baixo. Ele corria para a barra, a ponta da camisa esvoaçando sob o suéter, agarrava-a com as duas mãos, balançava os calcanhares para cima, passando por baixo e depois por cima dela, e se prendia pelos joelhos; depois segurava de novo, girava de dentro para fora e caía no chão levantando poeira.

Mais tarde, ele liderou seus irmãos e as garotas dos Grimes em um complicado jogo de guerra, e em seguida entraram para ver sua coleção de selos, e quando saíram outra vez, não havia muito mais o que fazer.

"Ei, olhem", ele disse. "A altura da Sarah dá direitinho pra ela passar pela barra sem bater a cabeça." Era verdade: ela era apenas cerca de um centímetro mais baixa que a barra. "Já sei o que a gente pode fazer", disse Myron. "A Sarah corre pra barra o mais rápido que conseguir, passa raspando debaixo e vai ser incrível."

Uma distância de uns trinta metros foi estabelecida; os outros ficaram dos lados para assistir, e Sarah começou a correr, os cabelos longos esvoaçando. O que não ocorreu a nenhum deles foi que Sarah correndo era mais alta que Sarah parada - Emily percebeu isso uma fração de segundo tarde demais, quando não havia tempo nem para gritar. A barra atingiu Sarah pouco acima do olho com um som que Emily jamais esqueceria - ding! - e então ela ficou se contorcendo e gritando no chão, com sangue por todo o rosto.

Emily molhou a calcinha quando corria para a casa com os meninos dos Clark. A sra. Clark gritou um pouquinho também quando viu Sarah; então enrolou-a em um cobertor - ouvira dizer que vítimas de acidentes às vezes entram em choque - e levou-a para o hospital, com Emily e Myron no banco de trás. Sarah havia parado de chorar a essa altura - ela nunca fora de chorar muito -, mas Emily estava apenas começando. Chorou por todo o caminho até o hospital e no corredor diante da sala de pronto-socorro, de onde a sra. Clark saiu três vezes para anunciar "Não quebrou nada" e "Não teve concussão" e "Sete pontos".

Depois, voltaram todos para casa - "Nunca vi ninguém aguentar a dor tão bem assim", ficava dizendo a sra. Clark - e Sarah ficou no sofá da sala de estar às escuras, a maior parte do rosto inchada, roxa e azul, com uma pesada bandagem tapando um dos olhos e uma toalha cheia de gelo sobre a bandagem. Os meninos haviam saído para o quintal outra vez, mas Emily não se afastou da sala.

"Precisa deixar sua irmã descansar", disse-lhe a sra. Clark. "Vai brincar lá fora, querida."

"Tudo bem", disse Sarah com uma voz estranha e distante. "Deixa ela ficar."

Assim Emily recebeu permissão de ficar, o que provavelmente foi uma boa coisa, porque ela teria brigado e esperneado se alguém tentasse fazê-la sair de onde estava, no horroroso tapete dos Clark, mordendo o punho úmido. Não estava mais chorando; apenas observava sua irmã prostrada na penumbra, sentindo onda após onda de uma terrível sensação de desamparo.

"Tudo bem, Emmy", dizia Sarah numa voz distante. "Tudo bem. Não fica preocupada. Pookie vai chegar logo."

O olho de Sarah não estava machucado - seus olhos castanhos amplos e fundos permaneciam o traço dominante em um rosto que iria se tornar lindo -, mas pelo resto de sua vida uma fina cicatriz pequena e azulada marcaria sua fronte da sobrancelha à pálpebra, como uma pincelada hesitante, e Emily jamais conseguiria olhar para aquilo sem se lembrar de como a irmã aguentou a dor tão bem. Isso também a lembrava, muitas vezes, de sua própria suscetibilidade a sentir pânico e seu medo inexplicável de ficar sozinha.

* Pronuncia-se "puqui": equivale a "chuchu", pessoa muito querida. (N. do T.)

*

"O Desfile de Páscoa"
Autor: Richard Yates
Editora: Objetiva
Páginas: 224
Quanto: R$ 33,90 (veja preço especial)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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