Livraria da Folha

 
11/08/2010 - 22h02

Raimundo Carrero recomenda horários para ler "A Minha Alma É Irmã de Deus"

da Livraria da Folha

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Obra completa tetralogia "Quarteto Áspero", de Raimundo Carrero
Obra completa tetralogia "Quarteto Áspero", de Raimundo Carrero

O autor sugere a leitura do volume das 2h às 6h para que a lenta passagem entre a sombra e a luz se torne leve e também melancólica, com a chegada pausada da manhã. Nesse momento, a história atinge o instante de repouso e humildade necessário.

A outra opção é avessa --passadas 12 horas do primeiro horário indicado. Das 14h às 18h, as personagens ficam repletas de solidão, silêncio e sabedoria.

Raimundo Carrero comunga esses dois horários místicos para o leitor se dedicar às páginas de "A Minha Alma É Irmã de Deus". Eleito o melhor livro do ano de 2009 pelo Prêmio São Paulo de Literatura, o volume conclui a tetralogia "Quarteto Áspero", composta por "Maçã Agreste", "Somos Pedras que Se Consomem" e "O Amor Não Tem Bons Sentimentos".

Camila, a protagonista da obra, é uma jovem solitária que deseja ser santa para desfilar no exército das 11 mil virgens do Paraíso. Em uma tarde de domingo no Recife, conhece o pastor-músico Leonardo, criador da seita "Os Soldados da Pátria por Cristo", que passa o dia tocando saxofone pelas calçadas. Decide acompanhá-lo para proclamar as maravilhas religiosas em meio à miséria, à bebida e ao misticismo. O pastor desaparece e Camila fica sujeita à violência e ao descaso das ruas.

A Livraria da Folha selecionou quatro trechos da primeira parte do livro ("Noivos: Uma pessoa era uma comunidade inteira") para o leitor aplicar um dos horários de leitura, que Carrero indica.

*

Os Senhores do Lixo
- Camila, vá jogar o lixo fora.
Ela escutava ainda os passos no corredor quando, saindo do quarto, caminhava em direção à sala, no momento, agora, em que chega aqui, parada, de pé, tamborilando de leve os dedos na mesa escura, larga, sem toalha e ensebada, poucas cadeiras, na sala de paredes ásperas, em ruínas, num teto sem forro. Ali estavam três rostos de expectativa: uma boca quase sem dentes querendo sorrir, um nariz carcomido, e um queixo caído, tocando no peito. Cumpria-se o rito. Uma disciplina alimentar nem rígida nem permanente: às vezes sem café, às vezes sem pão, às vezes sem carne, às vezes sem nada. Por disciplina. E por hábito.

Naqueles dias vazios de comida olhavam-se, baixavam os olhos, rezavam. Bem poucas palavras, bem poucas, somente para agradecer a falta de alimentos. Leonardo na cabeceira, os ombros começando a cair, não admitia que faltassem à mesa pelo simples fato de não haver pão; os cabelos desalinhados, contido naquela maneira de falar sem erguer os olhos, e mastigando. Movia-o a dignidade da fome. O rosto sonolento, sempre sonolento, de embriaguez. E os lábios tão finos que se confundiam com a comida. Não raro, pensava que ele comia os próprios lábios.

Sangue Dividido
- Camila, vá jogar o lixo fora.
Ainda puxava a cadeira para se sentar quando ouviu a ordem. Repetida. Para que sentar se devia levar o lixo no terreiro? A frase era uma monótona formação de palavras, lentas e enfadonhas, feito se criasse um eco que batia nas janelas, circulando pela sala de paredes altas e sujas, a casa abandonada pelos donos fazia tempo. Primeiro foi Leonardo quem falou, e depois Raquel, a prostituta que se lambuzava no sexo não por gozo e prazer, não por dinheiro e agrado, mas porque tinha um corpo social.

Ouvira dela que se prostituíra não por atração carnal, mulher que se atira no fogo da luxúria, o desejo, vulgar, de me envolver com homens é algo permanente, sempre foi assim e não sinto vergonha, remorso ou arrependimento, orgulho-me de cumprir o meu destino, quero emprestar meu sangue para eles, que só experimentam a fome. Naquele instante, devia ter vindo da noite - a face limpa, encerada, sob os cabelos negros severamente penteados para trás, e os olhos cansados, encimados por sobrancelhas escuras, pintadas a lápis. O nariz arranhado. A boca mostrava um toque de batom remoto. Essa espécie de batom que se desfigura nos lábios, cor sobre cor: rósea e acinzentada.

Não Dizer Nada, Nunca
- Camila, vá jogar o lixo fora.
A modulação da voz a encantava, ainda entorpecida pelo sono, mais do que Raquel, e pela preguiça permanente, que se arrastava no corpo e no desejo. Acordara, enfim. Voltara-se para Alvarenga, o camelô que anunciava na corneta as sentenças dos Soldados da Pátria por Cristo. Amém? Amém. E que não falou. E ela ouviu. Não falou por escrúpulo e por humildade, era possuidor de uma humildade estratégica, mas por amor, por absoluto amor a Raquel. E não falou, não disse a frase, Camila porém era capaz de ouvi-la. Ele não dizia nada, nunca dizia nada, tocava a corneta. Para rezar ou para chamar os homens de Raquel. Era preciso que ela lhe concedesse licença quando precisava falar. Com um olhar; um gesto, um sinal.

Falaria somente para repetir Raquel, para dizer o mesmo que ela dissera, novamente, mas com a alegria de quem descobre a própria voz, afagando-a, acarinhando-a, olhando-a. Olhando-a com o espanto daqueles que pedem perdão. Mais do que pedem, imploram. Nem falava e já pedia desculpas. Até aguardou ainda um pouco que ele falasse. As palavras, contudo, e os ecos das palavras, começaram a sumir e, mais do que
sumir, a afundar, ela podia ouvir as palavras afundando num poço. Afundavam lentamente, sem pressa, sem agonia. Estava certo. E com elas, o rosto de Alvarenga. É uma ordem, então será cumprida.

Máscara Suspensa
Caminhava lenta, mais lenta, sem se preocupar com a tarefa, feito se diz bom dia. Um passo depois do outro, e outra vez, o chape-chape dos chinelos recomeçando. Recomeçando. Sempre. Entrou na cozinha depois de afastar a cortina de pano para apanhar o saco. Na verdade, não havia saco nenhum, mas folhas de papel de jornal. Ela recolhia pouca coisa, uma antiga borra de café, cascas de laranja, maçã comida ao meio, açúcar atraindo moscas no balcão de louças, palito de fósforo, tralhas, tralhas, tralhas, água suja na pia. O velho fogão num canto, coberto por uma toalha, ou por um lençol, a tampa caída, o pano de prato não passava de uma camisa antiga, antiga e rota, do pastor Leonardo, tantas vezes lavada e tantas vezes suja. Ela não gostava daquilo, e as mãos ardiam lavando, lavando sempre. Lavando sempre, a ponto de criar rachaduras nos dedos.

Aguardava a voz muito mais profunda de Alvarenga, o que não falou, com a intensidade da espera, mais profunda do que a de Leonardo e mais leve que a de Raquel. Não era nenhum fenômeno, nem mesmo gostava de fenômenos. Nada excepcional. Era mais fácil ouvir o camelô porque, depois da fala da mulher, ele ficava indeciso e ansioso, a boca aberta, esperando uma ordem de Raquel - só falaria, só falaria se lhe fizesse um sinal, talvez um aceno, um gesto, ainda que sutil. As palavras, com certeza, já estavam na garganta, prontas para atravessá-la. Não diria nada, no entanto. A expectativa no rosto, no rosto gordo e esperançoso, numa tentativa de sorriso. A tentativa de sorriso que ilumina, enfeita, inquieta e derrota a face. A boca parada, os olhos parados, a face parada.

Usava o boné de Papai Noel. Sempre.

 
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