Livraria da Folha

 
20/08/2010 - 18h28

"Morte de Tinta" conclui trilogia fantástica iniciada com "Coração de Tinta"

da Livraria da Folha

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Nesta aventura, pessoais reais e personagens de livros se misturam
Nesta aventura, pessoais reais e personagens de livros se misturam

"Morte de Tinta" (Companhia das Letras, 2010) narra a aventura final da trilogia "Mundo das Tintas", da escritora alemã Cornelia Funke. O universo criado pela autora é habitado pelos "língua encantada", pessoas que ao lerem um livro em voz alta, trazem os personagens para o mundo real, assim como também podem entrar nas histórias.

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Cornelia Funke; "Coração de Tinta", primeiro livro da trilogia, foi adaptado por Hollywood
Cornelia Funke; "Coração de Tinta", primeiro livro da trilogia, foi adaptado por Hollywood

Neste volume, o protagonista Mortimer (Mo) --um encadernador de livros-- assume a personalidade de Gaio, uma espécie de Robin Hood. Ele terá que lutar com o pior entre todos os vilões, o Cabeça de Víbora e contra si mesmo, pois aos poucos começa a esquecer quem é no mundo real.

O livro também conta a história de Fenoglio, o autor de "Coração de tinta". A obra, preferida de Mo, fez com que o herói descobrisse seus poderes no primeiro livro da série. O escritor terá que lutar com Orfeu, um plagiador que tenta alterar a narrativa.

Ainda estão presentes Meggie, que se encontra apaixonada por Farid e vive as alegrias e tristezas do primeiro amor, e a mãe dela, grávida de um novo herdeiro.

Publicado pela Companhias das Letras em 2006, o primeiro volume da série tem o mesmo nome do livro de Fenoglio, "Coração de Tinta" (veja preço especial). Foi adaptado para o cinema em 2008, com o ator norte-americano Brendan Fraser no papel principal. O segundo título da série se chama "Sangue de Tinta" (Companhia da Letras, 2009).

Leia o primeiro capítulo de "Morte de Tinta".

*

1. Nada além de um cachorro e uma folha de papel

A luz da lua se derramava pelo roupão de Elinor, pela sua camisola, seus pés descalços, e pelo cachorro deitado a seus pés. O cachorro de Orfeu. Ele a fitava com seus olhos de permanente tristeza. Como se ele se perguntasse por que, com tantos aromas inquietantes no mundo, ela estava ali no meio da noite, sentada em sua biblioteca, rodeada de livros silenciosos, olhando para o nada.

- É, por quê? - perguntava-se Elinor em meio ao silêncio.

- Porque eu não consigo dormir, seu bicho burro. - Mesmo assim deu-lhe uns tapinhas na cabeça. "A que ponto chegamos, Elinor!", pensou, enquanto se levantava com dificuldade da poltrona. "Agora você passa a noite conversando com um cachorro. Isso porque você não suporta cães, e este menos ainda, que a cada respiração arfante te faz lembrar do seu detestável dono!"

Sim, ela ficara com o cão, apesar da lembrança dolorosa que ele provocava, e também com a poltrona, apesar da Gralha ter sentado nela. Mortola... Quantas vezes ela imaginou ter ouvido a sua voz ao entrar na biblioteca silenciosa, quantas vezes vira Mortimer e Resa parados entre as estantes, ou Meggie, sentada em frente à janela, um livro no colo, o rosto escondido por trás dos cabelos lisos e louros... Lembranças. Era tudo o que lhe restava. Nem um pouco mais concretas do que as imagens evocadas pelos livros. Mas o que restaria se ela perdesse também essas lembranças? Então, ficaria definitivamente sozinha outra vez - com o silêncio e o vazio em seu coração. E um cão feio.

Seus pés pareciam tão envelhecidos sob a pálida luz da lua. "O luar!", pensou, enquanto mexia os dedos. Tantas histórias nas quais possuía poderes mágicos. Tudo mentira. A sua cabeça inteira estava entupida de mentiras impressas. Nem mesmo para a lua ela conseguia olhar sem que sua vista ficasse obscurecida por uma nuvem de letras. Se fosse possível apagar todas as palavras do cérebro e do coração e ver o mundo apenas com os próprios olhos, uma vez que fosse!

"Céus, Elinor, você está novamente com esse humor maravilhoso!", pensou, enquanto tateava até a vitrine onde guardava o que Orfeu deixara para trás, além do cachorro. "Você se banha em autocomiseração da mesma forma que esse cachorro burro em cada poça d'água que encontra."

A folha de papel por trás do vidro protetor parecia insignificante, nada além de uma folha de papel comum, pautada, e escrita com letra espremida e tinta azul-pálido. Nem comparação com os livros suntuosamente ilustrados da outra vitrine - mesmo que se percebesse em cada letra o quanto Orfeu estava convencido de si mesmo. Tomara que os elfos de fogo tenham lhe queimado aquele sorriso autocomplacente dos lábios!, pensava Elinor enquanto abria a vitrine. Tomara que os encouraçados o tenham espetado com suas lanças - ou, melhor ainda: que ele tenha morrido de fome na Floresta sem Caminhos, bem, bem lentamente. Não era a primeira vez que ela traçava o triste fim de Orfeu no Mundo de Tinta. Seu coração solitário tinha prazer com essas imagens, mais do que com qualquer outra coisa.

A folha de papel já estava ficando amarelada. Papel barato. Ainda por cima. E aquelas palavras, nem dava para imaginar que elas haviam transportado o seu autor para outro mundo, bem diante dos olhos de Elinor. Ao lado da folha de papel havia três fotos - uma de Meggie e duas de Resa, uma de quando era criança e outra tirada havia poucos meses, na qual ela aparecia ao lado de Mortimer. Os dois tão sorridentes. Tão felizes. Não passava uma noite sem que Elinor contemplasse aquelas fotos. Ao menos já não lhe escorriam as lágrimas pelo rosto, mas elas continuavam ali, no seu coração. Lágrimas salgadas. O coração a ponto de transbordar. Uma sensação horrível.

Perdidos.

Meggie.

Resa.

Mortimer.

Fazia quase três meses que eles haviam desaparecido. No caso de Meggie eram inclusive alguns dias a mais...

O cachorro se espreguiçou e veio trotando sonolento em sua direção. Ele enfiou o focinho no bolso do seu roupão, na certeza de que ali sempre encontraria alguns biscoitos para cães.

- Está certo, está certo - murmurou ela enquanto lhe colocava uma daquelas coisinhas malcheirosas na boca. - Onde está o seu dono, hein? - Ela aproximou a folha de papel do seu nariz e o idiota a cheirava como se realmente pudesse sentir o cheiro de Orfeu por trás das letras.

Elinor olhou fixamente para as palavras pronunciando-as: Nas ruelas de Ombra... Quantas vezes nas últimas semanas ela estivera assim à noite, rodeada de livros que não significavam mais nada desde que ficara novamente sozinha com eles. Eles se calavam, como se soubessem que ela os trocaria sem pensar duas vezes pelas três pessoas que havia perdido. Perdido dentro de um livro.

- Eu vou aprender, maldita seja! - Sua voz soou teimosa como a de uma criança. - Eu vou aprender a ler de modo a que os livros tenham que engolir a mim também, ah, se vou!

O cachorro olhava para ela como se acreditasse em cada uma das suas palavras, mas Elinor não acreditava em nada do que dizia. Não. Ela não era uma língua encantada. Mesmo que tentasse uma dúzia de anos mais e continuasse tentando - as palavras não ressoavam quando ela as pronunciava. Elas não cantavam. Não como com Meggie e Mortimer - ou o três vezes amaldiçoado Orfeu. Apesar de ela tê-las amado tanto durante toda a sua vida.

A folha tremia entre os seus dedos quando ela começou a chorar. Ali estavam elas novamente, as lágrimas, apesar de tê-las segurado por tanto tempo, todas as lágrimas em seu coração. Ele simplesmente transbordara. Elinor soluçava tão alto que o cachorro se encolheu assustado. Era absurdo que escorresse água dos olhos quando o que doía era o coração. Nos livros, as heroínas trágicas costumavam ser terrivelmente lindas. Nem uma palavra sobre olhos inchados ou um nariz vermelho. "Eu sempre fico com o nariz vermelho quando choro", pensou Elinor. "Talvez por isso eu não apareça em livro nenhum."

- Elinor?

Ela se virou e secou rapidamente as lágrimas do rosto.

Darius estava ali junto à porta, vestindo o roupão grande demais que ela havia lhe dado de presente no seu último aniversário.

- O que foi? - falou com aspereza. Onde estava aquele lenço novamente? Fungando, ela o tirou da manga e limpou o nariz. - Três meses, faz três meses que eles desapareceram, Darius! Por acaso não é razão para chorar? É. Não me olhe assim tão compadecido com seus olhos de coruja. Não importa quantos livros nós compremos - ela apontou com um gesto amplo para a estante repleta -, tanto faz quantos nós arrematemos, troquemos, roubemos. Nenhum deles me diz o que eu quero saber! Milhares de páginas, e em nenhuma delas há uma única palavra sobre quem eu quero ouvir. Do que me interessam todos os outros? Eu quero ouvir somente a história deles! Como está Meggie? Como estão Resa e Mortimer? São felizes, Darius? Estão vivos? Será que eu vou voltar a vê-los algum dia?

Darius passou os olhos pelos livros, como se pudesse encontrar a resposta em algum deles. Mas então ele se calou, assim como todas aquelas páginas impressas.

- Vou buscar um copo de leite com mel para você - disse ele finalmente e desapareceu em direção à cozinha.

E Elinor ficou novamente só com todos aqueles livros, o luar e o cão feio de Orfeu.

*

"Morte de Tinta"
Autora: Cornelia Funke
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 576
Quanto: R$ 35,90 (preço promocional, por tempo limitado)
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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