Livraria da Folha

 
25/08/2010 - 09h16

Em "Menina de Vinte", autora de "Becky Bloom" constrói personagem desajustada e carismática

da Livraria da Folha

Divulgação
Novo livro da escritora Sophie Kinsella traz protagonista falida
Novo livro da escritora Sophie Kinsella traz protagonista falida

Quem já leu Sophie Kinsella, a criadora da bem-humorada saga iniciada com "Os Delírios de Consumo de Becky Bloom", sabe que resistir ao estilo da autora é tão dramático - e difícil -- quanto passar em frente a uma loja com a palavra "liquidação" na vitrine. É quase impossível não se apaixonar, tanto pelos sapatos e roupas em promoção, quanto por sua divertida obra.

Aproveitando esta empatia e carisma, a Record lança neste mês "Menina de Vinte", o novo romance da escritora. A protagonista desta vez é Lara Lington uma caça-talentos de 27 anos com uma imaginação fértil. A vida desajustada da personagem e seu bom humor para resolver os problemas dão a tônica da obra.

Os acontecimentos recentes não estão favoráveis e os ventos colocaram as coisas de cabeça para baixo: sua sócia foi viver um romance em Goa, sua empresa está afundando e ela acabou de ser abandonada pelo homem "perfeito".

A história começa com seus pais indo visitá-la. Alérgica a eventos de família, Lara é obrigada a comparecer à cremação de sua tia-avó Sadie, uma dançarina de ideias avanças, morta aos 105 anos. Enquanto tenta fazer seus pais acreditarem que sua vida anda nos trilhos ela quer encontrar um jeito de se livrar do velório.

Não bastando os pequenos problemas do dia a dia, Lara começa a ter visões. O espírito de sua tia-avó Sadie começa a aparecer com um estranho pedido: ela precisa localizar um colar antigo. Só assim a falecida poderá descansar para sempre.

Leia o primeiro capítulo de "Menina de Vinte".

*

A questão de mentir para seus pais é que você faz isso para protegê-los. É para o bem deles. Por exemplo, vamos analisar os meus pais. Se eles soubessem a verdade absoluta sobre meu dinheiro/minha vida amorosa/meu encanamento/meu imposto, teriam um ataque cardíaco instantâneo, e o médico perguntaria "Alguém deu alguma notícia chocante a eles?", e tudo seria culpa minha. Portanto, eles estão no meu apartamento há dez minutos e já contei as seguintes mentiras:

1. L&N Recrutamentos Executivos vai começar a dar lucro em pouco tempo, tenho certeza.

2. Natalie é uma sócia fantástica e largar meu emprego para me tornar caça-talentos com ela foi uma ideia brilhante.

3. É claro que eu não consumo só pizza, iogurte de cereja preta e vodca.

4. Sim, eu sei que existem juros em multas de estacionamento.

5. Sim, eu assisti ao DVD do Charles Dickens que eles me deram de Natal, é ótimo, principalmente aquela moça de gorrinho. Isso, Peggotty. Ela mesmo.

6. Eu tinha a intenção de comprar um alarme de incêndio no fim de semana, que coincidência eles comentarem!

7. Sim, vai ser ótimo rever a família toda.

Sete mentiras. Sem contar as mentiras sobre a roupa de minha mãe. E ainda nem falamos do Assunto.

Quando saio do meu quarto com um vestido preto e um rímel colocado às pressas, vejo minha mãe olhando para minha conta telefônica vencida em cima da lareira.

- Não se preocupe - digo rapidamente -, vou resolver isso.

- Se não resolver - diz minha mãe - vão cortar sua linha e vai demorar horrores até que seja instalada de novo. E o sinal do celular é ruim aqui. E se você tiver uma emergência? O que vai fazer?

Sua testa está franzida de ansiedade. Parece que tudo é iminente para ela, como se houvesse uma mulher em trabalho de parto gritando no quarto e a água do alagamento estivesse subindo pela janela, e como vamos chamar o helicóptero? Como?

- Bem... Não pensei nisso. Mãe, vou pagar a conta. É sério.

Minha mãe sempre se preocupou muito com as coisas. Quando ela fica com um sorriso tenso e os olhos distantes e assustados, você sabe que ela está imaginando uma cena apocalíptica. Ela ficou com essa expressão durante o último dia de discursos e prêmios na escola, e depois confessou que tinha reparado em um candelabro que estava pendurado no teto por uma corrente instável e ficado obcecada com o que aconteceria se ele caísse em cima da cabeça das garotas e se estilhaçasse em mil pedaços.

Agora ela está puxando o terno preto, o qual tem ombreiras e botões metálicos esquisitos, que a está sufocando. Lembro-me vagamente de quando ela passou por uma fase em que ia a entrevistas de emprego, há uns dez anos, e eu precisava ensinar-lhe coisas básicas do computador, por exemplo, como usar o mouse. Ela acabou trabalhando em uma organização para crianças carentes, que não exigia que ela se vestisse bem, graças a Deus.

Ninguém na minha família fica bem de preto. Meu pai está usando um terno feito com um tecido preto sem graça, que oculta todas as suas qualidades. Ele é muito bonito, com uma bela estrutura óssea e de uma maneira menos óbvia. Seu cabelo é castanho e fino, enquanto o de minha mãe é claro e fino como o meu. Os dois ficam ótimos quando estão à vontade - como quando estamos na Cornualha no barco frágil e antigo de papai, usando roupa de lã e comendo tortinhas. Ou quando estão tocando na orquestra amadora local, onde se conheceram. Hoje, porém, ninguém está à vontade.

- Então, está pronta? - Minha mãe olha para meus pés só de meia. - Onde estão seus sapatos, querida?

Caio sentada no sofá:

- Preciso mesmo ir?

- Lara! - grita minha mãe de maneira reprovadora. - Ela era sua tia-avó. Tinha 105 anos, sabia?

Minha mãe me disse que minha tia-avó tinha 105 anos umas 105 vezes. Tenho quase certeza de que é porque é o único fato que sabe sobre ela.

- E daí? Eu não a conhecia. Nenhum de nós a conhecia.

Isso é ridículo. Por que estamos nos arrastando para Potters Bar por causa de uma velhinha que nem sequer conhecemos? - Dou de ombros, sentindo-me mais como uma criança de 3 anos emburrada do que uma mulher madura de 27 anos com um negócio próprio.

- Seu tio Bill e os outros vão também - afirma meu pai.

- E se eles podem fazer esse esforço...

- É um evento de família! - interrompeu minha mãe.

Dou de ombros de um jeito mais evidente. Tenho alergia a eventos de família. Às vezes acho que seria melhor se fôssemos sementes de dente-de-leão - sem família, sem história, apenas flutuando pelo mundo, cada um em seu pedaço de penugem.

- Não vai demorar muito - diz minha mãe de maneira persuasiva.

- Vai demorar, sim. - Olho para o tapete. - E todo mundo vai me perguntar sobre... coisas.

- Não vão, não! - afirma minha mãe, olhando para meu pai como se pedisse apoio. - Ninguém vai falar de... coisas.

Silêncio. O Assunto está pairando no ar. É como se todos estivéssemos evitando encará-lo. Finalmente, meu pai toma coragem.

- Então! Por falar em... coisas - ele hesita. - No geral, você está... bem?

Posso ver que minha mãe está escutando de maneira muito alerta, mesmo que esteja fingindo pentear o cabelo.

- Ah, sabe como é - digo depois de uma pausa. - Estou bem. Quer dizer, não podem esperar que eu simplesmente me recupere...

- É claro que não! - meu pai volta atrás imediatamente. Então ele tenta de novo. - Mas você está... numa boa?

Faço que sim.

- Ótimo - suspira minha mãe, aliviada. - Sabia que você ia superar... coisas.

Meus pais não mencionam mais o nome "Josh", porque eu sempre começava a chorar quando ouvia essa palavra. Durante um tempo, minha mãe se referia a ele como "Aquele Que Não Podemos Dizer O Nome". Agora ele virou "coisas".

- E você não... entrou em contato com ele? - Meu pai olha para qualquer lugar menos para mim, e minha mãe parece estar muito entretida com sua bolsa.

Mais um eufemismo. O que ele quis dizer foi: "Você mandou mais alguma mensagem obcecada para ele?"

-Não - respondo, ruborizando. - Não falei com ele, está bem?

É muito injusto falarmos sobre isso. Na verdade, tudo adquiriu uma proporção muito maior do que deveria. Apenas mandei algumas mensagens para Josh. Três por dia, se chegar a isso tudo. Quase nenhuma. E elas não eram obcecadas. Eu só estava sendo sincera e aberta, comportamentos que, aliás, são recomendáveis em um relacionamento.

Não dá para apagar o que você sente apenas porque a outra pessoa fez isso, não é? Não dá para dizer: "Ah, beleza! Seu plano é nunca mais nos vermos, nunca mais fazermos amor e nunca mais conversarmos nem nos comunicarmos de maneira alguma. Que ideia genial, Josh! Por que eu não pensei nisso?"

Então o que acontece é que você escreve o que sente de verdade em uma mensagem, simplesmente porque você quer compartilhar esse sentimento, e, no minuto seguinte, seu namorado muda o número do celular e avisa a seus pais. Muito covarde.

- Lara, sei que você ficou muito magoada e que está passando por um momento muito doloroso. - Meu pai limpa a garganta. - Mas já se passaram quase dois meses. Você precisa seguir em frente, querida. Precisa ver outros jovens... sair e se divertir...

Oh, Deus, não vou aguentar mais um daqueles discursos de papai sobre como muitos homens vão cair aos pés de uma musa como eu. Para começar, nem há tantos homens assim no mundo, todo mundo sabe disso. E uma garota de 1,64m com nariz de batata e nada bronzeada não é exatamente uma musa.

Tudo bem, sei que posso ser bonitinha às vezes. Meu rosto tem formato de coração, tenho olhos verdes e grandes e algumas sardas no nariz. E tenho lábios cheios que ninguém na minha família tem. Pode confiar em mim, não sou nenhuma modelo.

- Então foi isso que fez quando você e mamãe terminaram daquela vez em Polzeath? Você saiu para conhecer gente nova? - Não consigo deixar de dizer isso, por mais que seja coisa do passado. Meu pai suspira e troca olhares com minha mãe.

- Nunca devíamos ter contado essa história para você - ela resmunga, passando a mão na testa. - Nunca devíamos ter comentado...

- Porque se tivesse feito isso - continuo inexoravelmente -, vocês nunca teriam voltado, não é mesmo? Meu pai nunca teria dito que é a metade da sua laranja, e vocês nunca teriam se casado.

Essa frase da metade da laranja virou uma tradição de família. Ouvi essa história um zilhão de vezes. Meu pai chega à casa de minha mãe todo suado porque tinha ido de bicicleta, e ela estava chorando, mas fingiu que estava resfriada, e eles se reconciliaram e a minha avó fez chá com biscoitos. (Não sei porque os biscoitos são relevantes nessa história, mas sempre são mencionados.)

- Lara, querida - suspira minha mãe. - Foi muito diferente, nós estávamos juntos há três anos, estávamos noivos...

- Eu sei! - digo, na defensiva. - Sei que era diferente. Só estou dizendo que às vezes as pessoas voltam. Acontece.

Silêncio.

- Lara, você sempre teve uma alma romântica... - meu pai começa.

- Não sou romântica! - grito, como se isso fosse uma ofensa grave. Estou encarando o tapete, mexendo na ponta com o dedo do pé, mas em minha visão periférica posso observar meu pai e minha mãe, um mandando o outro falar alguma coisa. Minha mãe sacode a cabeça e aponta para meu pai como se dissesse: "Fale você!"

- Quando você termina com alguém - meu pai começa de novo com uma pressa desconfortável -, é fácil olhar para trás e achar que a vida seria perfeita se vocês voltassem. Mas...

Ele vai começar a dizer como a vida é uma escada rolante. Preciso falar antes dele, rápido.

- Pai, escute, por favor. - De algum jeito consigo falar da maneira mais calma possível. - Você entendeu tudo errado. Não quero voltar com Josh. - Tento fazer com que essa ideia soe ridícula. - Não foi por isso que mandei mensagens para ele. Eu só queria uma conclusão. Ele terminou tudo sem dar nenhum aviso, sem conversar, sem discutir. Não tive nenhuma resposta. São como... assuntos pendentes. É como ler um livro da Agatha Christie e não descobrir quem é o culpado!

Pronto. Agora eles vão entender.

- Bem - diz meu pai finalmente. - Consigo compreender suas frustrações...

- É tudo que eu queria - digo da maneira mais convincente possível. - Queria entender o que Josh estava pensando. Queria conversar sobre o assunto. Queria me comunicar com ele como dois seres humanos civilizados.

E eu queria voltar com ele, diz minha cabeça, como uma flecha silenciosa e verdadeira. Porque eu sei que Josh ainda me ama, mesmo que ninguém concorde.

Mas não adianta dizer isso a meus pais. Eles nunca vão entender. Como poderiam? Eles não têm noção de como e eu Josh éramos um casal maravilhoso, de como éramos perfeitos um para o outro. Não entendem como Josh obviamente tomou uma decisão apavorada, apressada e tipicamente masculina, com base em um motivo provavelmente inexistente, e se eu apenas pudesse conversar com ele, tenho certeza de que conseguiria resolver tudo e ficaríamos juntos de novo.

Às vezes me sinto muito mais avançada que meus pais, assim como Einstein deve ter se sentido quando seus amigos diziam: "O universo é plano, Albert, confie na gente", e ele pensava secretamente: "Eu sei que é redondo. Vou mostrar a vocês."

Minha mãe e meu pai estão secretamente conversado um com o outro de novo. Acho melhor cortar o mal pela raiz.

- De qualquer jeito, não precisam se preocupar comigo - digo rapidamente. - Porque eu já segui em frente. Tudo bem, talvez eu não tenha seguido completamente em frente - corrijo- me quando vejo a expressão de dúvida deles -, mas aceitei que Josh não quer conversar. Percebi que simplesmente não era para ser. Aprendi muito sobre mim mesma e... estou me sentindo bem. De verdade.

Estou com um sorriso estampado no rosto. Parece que estou entoando o mantra de uma seita maluca. Eu deveria estar de túnica e batendo em um tamborim.

Hare hare... eu segui em frente... hare hare... estou me sentindo bem...

Meu pai e minha mãe trocam olhares. Não faço ideia se eles acreditam em mim, mas pelo menos consegui acabar com a conversa.

- É assim que se faz! - diz meu pai, aliviado. - Muito bem, Lara! Sabia que você ia conseguir. E você pode se concentrar no negócio com Natalie, que está indo tão bem...

Meu sorriso vira mais de seita ainda:

- Com certeza!

Hare Hare... meu negócio está indo bem... hare hare... não é nem um pouco um desastre...

- Estou tão feliz por você ter passado por isso! - Minha mãe vem para perto de mim e me dá um beijo na testa. - Agora é melhor irmos. Vá de calçar um sapato preto. Vamos, vamos!

Com um suspiro ressentido, eu me levanto e me arrasto para o quarto. O dia está lindo e ensolarado, e vou passá-lo em uma droga de encontro de família que envolve uma pessoa de 105 anos morta. Às vezes a vida é muito ruim mesmo.

Enquanto paramos no estacionamento da Casa Funerária Potters Bar, reparo que há uma pequena multidão em frente a uma porta lateral. Vejo então o brilho de uma câmera de tevê e um microfone felpudo pairando sobre a cabeça das pessoas.

- O que está acontecendo? - Olho pela janela do carro. - Alguma coisa a ver com tio Bill?

- Provavelmente - concorda meu pai.

- Acho que alguém está fazendo um documentário sobre ele - acrescenta minha mãe. - Trudy falou algo do tipo. Por causa do livro dele.

É isso que acontece quando um de seus parentes é uma celebridade. Você se acostuma com as câmeras por perto. E com as pessoas dizendo, quando você se apresenta: "Lington? Alguma relação com a Lingtons Coffee?" e ficando completamente chocadas quando você responde que sim.

Meu tio Bill é o Bill Lington, que começou a Lingtons Coffee do nada aos 26 anos e a transformou em um império mundial de lojas de café. O rosto dele está impresso em todos os copos de café, o que faz com que ele seja mais famoso que os Beatles ou algo do tipo. Você o reconheceria se o visse. E no momento ele está mais em destaque do que o normal porque sua autobiografia, Duas moedinhas, foi lançada mês passado e se tornou um best seller. É possível que Pierce Brosnan faça o papel de meu tio no filme.

É claro que li o livro de cabo a rabo. É todo sobre como ele só tinha 20 centavos e comprou um café tão ruim que teve a ideia de gerenciar lojas de café. Então ele abriu uma loja e começou uma cadeia, e agora é praticamente dono do mundo. O apelido dele é "O Alquimista" e, de acordo com um artigo do ano passado, todo o mundo dos negócios quer saber o segredo de seu sucesso.

Por isso ele começou a dar palestras com o tema "Duas Moedinhas". Fui a uma delas secretamente há alguns meses, só para ver se conseguia alguma dica sobre como gerenciar um novo negócio. Havia duzentas pessoas presentes, todas engolindo cada palavra, e no fim tínhamos que segurar duas moedas para cima e dizer: "Este é o meu começo." Foi muito cafona e constrangedor, mas todo mundo a minha volta parecia estar inspirado. Pessoalmente, prestei muita atenção no que ele estava dizendo e mesmo assim não sei como ele conseguiu.

Ele tinha 26 anos quando ganhou o primeiro milhão. Vinte e seis! Começou um negócio e se tornou um sucesso instantaneamente. Enquanto, eu comecei um negócio há seis meses e tudo que me tornei foi uma maluca instantaneamente.

- Talvez você e Natalie escrevam um livro sobre o negócio de vocês um dia! - diz minha mãe como se pudesse ler minha mente.

- O domínio mundial está logo ali - afirma meu pai, com entusiasmo.

- Olhe, um esquilo! - Aponto rapidamente pela janela.

Meus pais me deram tanto apoio em meu negócio que não posso contar a verdade. Então sempre mudo de assunto quando eles falam alguma coisa sobre isso.

Para ser mais precisa, pode-se dizer que minha mãe não me apoiou de cara. Na verdade, pode-se dizer que, quando eu disse que ia largar meu emprego em marketing e tirar todo o dinheiro da poupança para começar uma empresa de caça-talentos, sem nunca ter trabalhado com isso antes nem saber nada sobre o assunto, ela teve uma crise nervosa.

Mas ela se acalmou quando expliquei que ia ser sócia de minha melhor amiga, Natalie. E que Natalie era uma executiva de caça-talentos muito boa e que ela gerenciaria o negócio no início, enquanto eu lidaria com a administração e o marketing e aprenderia as habilidades de uma caça-talentos. E que já tínhamos muitos contatos e que pagaríamos o empréstimo do banco rapidinho.

O plano parecia brilhante. O plano era brilhante. Até um mês atrás, quando Natalie saiu de férias, se apaixonou por um vagabundo em Goa e me mandou uma mensagem uma semana depois dizendo que não sabia quando ia voltar, mas que as informações importantes estavam no computador e que eu ficaria bem e que o surfe era maravilhoso lá, que eu deveria visitá-la, muitos beijos, Natalie.

Nunca mais vou fazer negócios com Natalie. Nunca mais.

- Será que está desligado? - Minha mãe está batendo no celular. - Não pode tocar durante a cerimônia.

- Vou dar uma olhada - Meu pai para o carro, desliga o motor e pega o celular. - O bom é colocar no silencioso.

- Não! - grita minha mãe, apavorada. - Quero desligá-lo! O modo silencioso pode dar errado!

- Prontinho, então. - Meu pai aperta o botão lateral. - Está desligado. - Ele devolve o celular para minha mãe, que o encara com ansiedade.

- Mas e se, de algum jeito, ele ligar de novo enquanto estiver na minha bolsa? - Ela olha com uma cara de suplício para nós dois. - Isso aconteceu com Mary no iate clube, sabia? O negócio simplesmente ligou na bolsa dela e tocou, enquanto ela fazia parte do júri. Disseram que ela devia ter batido ou encostado nele de algum jeito...

A voz dela está ficando mais fina e arfante. Essa seria a hora em que minha irmã Tonya surtaria e diria: "Não seja idiota, mãe! É óbvio que seu celular não vai ligar sozinho!"

- Mãe. - Pego o celular gentilmente. - Que tal deixarmos no carro?

- Isso. - Ela relaxa um pouco. - É uma boa ideia. Vou colocar no porta-luvas.

Olho para meu pai, que dá um sorrisinho para mim. Coitada da mamãe. Tanta coisa ridícula passando pela cabeça... Ela realmente precisa entender a proporção das coisas.

Quando chegamos perto da funerária, ouço no ar a fala lenta inconfundível de tio Bill, e, como previsto, ao passarmos pela pequena multidão, lá está ele com sua jaqueta de couro e seu eterno bronzeado e seu cabelo macio. Todo mundo sabe que tio Bill é obcecado pelo cabelo. É grosso, exuberante e bem preto, e, se qualquer jornal sugerir que ele o pinta, tio Bill ameaça processá-los.

- A família é a coisa mais importante - diz ele ao entrevistador de calça jeans. - A família é o nosso amparo. Se eu precisar interromper meus compromissos para ir a uma cremação, é o que farei. - Vejo a admiração pairando sobre a multidão. Uma garota, segurando um copo para viagem da Lingtons, está claramente transtornada e fica sussurrando para a amiga: "É ele mesmo!"

- Se pudermos parar agora... - Um dos assistentes de tio Bill se aproxima de um câmera. - Bill precisa entrar na casa funerária. Obrigado, gente. Só mais alguns autógrafos... - comunica à multidão.

Esperamos pacientemente enquanto todo mundo consegue um autógrafo de tio Bill no copo de café ou no programa da cremação, enquanto a câmera filma tudo. Depois, finalmente, eles vão embora e tio Bill vem em nossa direção.

- Olá, Michael. É bom ver você. - Ele aperta a mão de meu pai e imediatamente depois vira para falar com o assistente. - Já conseguiu ligar para Steve?

- Aqui. - O assistente entrega rapidamente o celular a tio Bill.

- Olá, Bill! - Meu pai é sempre educado com tio Bill. - Não nos vemos há um tempo. Como você está? Parabéns pelo livro.

- Obrigada pelo exemplar autografado - acrescenta alegremente minha mãe.

Bill acena com a cabeça rapidamente para todos nós, depois fala no celular:

- Steve, recebi seu e-mail.

Minha mãe e meu pai trocam olhares. Obviamente, este é o fim de nosso grande reencontro familiar.

- Vamos descobrir aonde temos que ir - minha mãe sussurra a meu pai. - Lara, você vem?

- Na verdade, vou ficar um pouco aqui - digo no impulso. - Vejo vocês lá dentro!

Espero até que meus pais tenham desaparecido e chego perto de tio Bill. Do nada, elaborei um plano demoníaco. Na palestra, tio Bill disse que a chave do sucesso para qualquer empresário era aproveitar todas as oportunidades. Bom, sou uma empresária, não sou? E esta é uma oportunidade, não é?

Espero até que ele termine a conversa e digo hesitante:

- Oi, tio Bill. Posso falar com você rapidinho?

- Espere. - Ele levanta a mão e coloca o BlackBerry no ouvido. - Olá, Paulo. E aí? - Seus olhos viram para mim e ele faz um sinal com a mão, algo que interpreto como sendo minha vez de falar.

- Você sabia que sou caça-talentos agora? - Dou um sorriso nervoso. - Abri uma empresa com uma amiga. O nome é L&N Recrutamento Executivo. Posso falar de nosso negócio?

Tio Bill franze a testa pensativo por um momento, depois diz:

- Espere um pouco, Paulo.

Nossa! Ele colocou a ligação em espera! Por mim!

- Nos especializamos em encontrar indivíduos altamente qualificados e motivados para posições de executivos seniores - digo, tentando não falar muito rápido. -Fiquei pensando se talvez eu pudesse conversar com alguém em seu departamento de RH, explicar o que fazemos, talvez pudéssemos fazer algo juntos...

- Lara. - Tio Bill levanta a mão para me interromper. - O que você diria se eu passasse o contato de minha gerente de recrutamento e dissesse a ela: "Esta é minha sobrinha, dê uma chance a ela?"

Sinto uma explosão de alegria. Quero cantar "Aleluia". Minha aposta deu certo!

- Eu agradeceria muito, tio Bill! - digo, tentando ficar calma. - Eu daria tudo de mim, trabalharia 24 horas por dia, ficaria tão agradecida...

- Não - ele interrompe. - Você não ficaria. Você não teria respeito por você mesma.

- O q-quê? - paro de falar, confusa.

- Estou negando o pedido. - Ele me dá um sorriso branco e ofuscante. - Estou fazendo um favor, Lara. Se você conseguir tudo sozinha, vai se sentir muito melhor. Você vai sentir que mereceu tudo.

- Certo - engulo, o rosto ardendo de humilhação. - Eu quero merecer. Eu quero dar duro. Só pensei que, talvez...

- Se eu consegui com duas moedinhas, Lara, você também consegue. - Ele me encara por um momento. - Acredite em você mesma. Acredite em seu sonho. Tome.

Ah, não. Por favor, não. Ele colocou a mão no bolso e pegou duas moedas de 10 centavos.

- Estas são suas duas moedinhas. - Ele me olha com um ar profundo e sincero, do mesmo jeito que faz no comercial de tevê. - Lara, feche os olhos. Sinta. Acredite. Diga: "Este é o meu começo."

- Este é o meu começo - resmungo, me contraindo toda. - Obrigada.

Tio Bill acena com a cabeça e volta a falar no celular:

- Paulo, desculpe pela interrupção.

Ardendo de vergonha, vou embora. Que maneira de aproveitar as oportunidades... Que grande contato... Só quero que essa cremação idiota acabe logo para eu poder ir para casa.

Dou a volta pelo prédio, atravesso as portas de vidro da frente da casa funerária e me vejo em um foyer com poltronas, pôsteres de pombas e um ar calmo. Não há ninguém por perto, nem mesmo um balcão de recepção.

De repente, ouço uma cantoria vinda de trás de uma porta de madeira. Merda. Já começou. Estou perdendo tudo. Rapidamente abro a porta e, como previsto, há fileiras de bancos cheios de gente. O lugar está tão cheio que, enquanto tento passar, as pessoas do fundo se empurram para o lado. Encontro um lugar da maneira mais discreta possível.

Enquanto olho em volta, tentando encontrar minha mãe e meu pai, fico perplexa com a quantidade de gente presente. E as flores. Em toda a lateral do lugar há lindos arranjos de flores em tons de branco e creme. Uma mulher lá na frente está cantando "Pie Jesu", mas há tantas pessoas na minha frente que não consigo ver. Perto de mim, algumas pessoas estão fungando, e uma garota está chorando copiosamente. Me sinto mal. Todas essas pessoas vieram aqui pela minha tia-avó, e eu nem a conhecia.

Não mandei flores, percebo mortificada. Será que eu deveria ter escrito um cartão ou algo do tipo? Deus, espero que meus pais tenham resolvido tudo.

A música é tão linda e o clima é tão sentimental que não consigo impedir meus olhos de encherem d'água. A meu lado está uma senhora com um chapéu de veludo preto, que percebe e faz um barulho compreensivo com a boca:

- Você tem um lencinho, querida? - sussurra.

- Não - admito, e ela imediatamente abre sua bolsa grande e fora de moda. Um cheiro de cânfora surge e, dentro da bolsa, vejo vários pares de óculos, uma caixa de balas de menta, um pacote de grampos, uma caixa onde está escrito "Barbante" e meio pacote de bolachas.

- É sempre bom trazer lenços para cremações. - Ela me estende um pacote.

- Obrigada - engulo, pegando um lenço. - É muito gentil de sua parte. Sou a sobrinha-neta, aliás.

Ela acena com a cabeça de maneira simpática:

- Deve ser um momento horrível para você. Como a família está lidando?

- É... Bem... - Dobro o lenço, pensando no que responder. Não posso dizer: "Ninguém se incomodou muito, aliás, meu tio Bill ainda está lá fora falando no BlackBerry." - Todos precisamos contar um com o outro numa hora dessas. - Improviso finalmente.

- É isso mesmo - a senhora concorda plenamente como se eu tivesse dito algo muito sábio e não uma frase batida de um cartão qualquer. - Temos que contar um com o outro - ela pega minha mão. - Fico feliz em conversar, querida, quando você quiser. É uma honra conhecer um parente de Bert.

- Obrigada - começo a dizer automaticamente, depois paro.

Bert?

Tenho certeza de que o nome de minha tia não era Bert. Na verdade, sei que não era. Seu nome era Sadie.

- Sabe, você se parece muito com ele - a mulher analisa meu rosto.

Merda. Estou na cremação errada.

- Alguma coisa na sua testa. E você tem o nariz dele. Alguém já disse isso a você, querida?

- Às vezes! - digo, exageradamente. - Na verdade, preciso... é... Muito obrigada pelo lenço... - Rapidamente caminho em direção à porta.

- É a sobrinha-neta de Bert - ouço a voz da senhora atrás de mim. - Está muito triste, coitadinha.

Praticamente me jogo na porta de madeira e vou parar no foyer de novo, quase batendo em meus pais. Eles estão acompanhados de uma mulher de terno escuro com cabelos brancos enrolados e uma pilha de panfletos na mão.

- Lara, onde você estava? - Minha mãe olha confusa para a porta. - O que estava fazendo aí dentro?

- Você estava no velório do sr. Cox? - a mulher de cabelo branco está perplexa.

- Eu me perdi! - digo, defendendo-me. - Não sabia para onde ir. Vocês deveriam colocar avisos nas portas.

Silenciosamente, a mulher levanta a mão e aponta para o aviso com letras de plástico acima da porta: "Bertram Cox - 13h30." Droga. Como não vi isso?

- Bem, enfim - digo, tentando recuperar minha dignidade.

- Vamos indo. Precisamos pegar um lugar.

*

"Menina de Vinte"
Autor: Sophie Kinsella
Editora: Record
Páginas: 496
Quanto: R$ 42,90 (veja preço especial)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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