Livraria da Folha

 
30/08/2010 - 16h02

Leve sua mãe homofóbica na conversa, mas fuja do colo e da tortura

SÉRGIO RIPARDO
da Livraria da Folha

Acervo do Masp
"A Virgem Amamentando o Menino e São João Batista Criança em Adoração" (1500-1520), tela do italiano Giampietrino que compõe o acervo do Masp
"A Virgem Amamentando o Menino e São João Batista Criança em Adoração" (1500-1520), tela do italiano Giampietrino
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"Eu deveria ter colocado veneno de rato na tua mamadeira", sussurrou a mãe ao ver o filho pequeno se requebrando ao som do hit da cantora Sarajane nos anos 80 ("Vamos abrir a roda, enlarguecer, está ficando apertadinha, por favor, abre a rodinha, por favor"), diante dos amigos da família, na festa de aniversário do marido.

A homofobia materna cria monstros de insegurança, adultos deprimidos, carentes, ansiosos, sempre em alerta constante e desconfiados sobre sua capacidade de amar e ser amado, à espera de mais uma experiência de rejeição. Ninguém quer sofrer uma nova sensação de abandono.

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Guia GLS traz endereços para caça no gueto homossexual de SP
Guia GLS traz endereços para levar vida gay em paz, longe da família

Para gays e lésbicas, fugir da figura materna impiedosa e autoritária é uma das saídas para evitar essa dor provocada pelo desajuste, pelas cobranças para seguir o script hétero e abortar o desejo por alguém do mesmo sexo. Mas como largar alguém que nos colocou no mundo e amamentou? Como cortar laços afetivos tão viscerais?

É preciso tentar. Em nome da sua sobrevivência e da sanidade mental. Não permita que sua mãe destrua sua autoestima nem use da chantagem emocional para "enquadrar" sua orientação sexual. Ela não tem esse direito. Lute contra a tirania de quem balançou seu berço. Ela pode nunca aceitar sua homossexualidade, mas com jeitinho é possível conviver, respeitar e dividir bons momentos com aquela que deu o primeiro sopro de vida.

1- Não sou um óvulo estragado

Não é preciso brincar de boneca nem vestir roupas femininas para que sua mãe perceba que você é "diferente". Mais cedo ou mais tarde, antes mesmo que você ou alguém fale com todas as letras, ela saberá primeiro ou desconfiará. A primeira reação materna será guiada pelo o que se aprendeu no meio social: "gay é um óvulo estragado que insistiu em nascer". Ela se sentirá frustrada, tentará esquecer ou fará tudo para esconder do mundo (principalmente do marido) esse "fracasso genético". Depois tentará consertar, punir ou torturar o objeto de vergonha. Para perdoá-la, lembre-se sempre: sua santa mãezinha é humana (imperfeita e egoísta).

2- Vale pelo aluguel barato

Você nasce devendo nove meses de aluguel a sua mãe. Ela cobrará essa dívida e sempre tentará segurá-lo debaixo de suas asas. Quanto mais cedo você conseguir independência financeira, melhor, pois assim terá condições seguras de sair de casa e reduzir conflitos com seus pais sobre sua homossexualidade. Isso caso você queira viver sua orientação sexual às claras, sem dar satisfações a ninguém nem ouvir intervenções dos outros. Mas é bom ter em mente: morar com a família ainda tem suas vantagens práticas. É o aluguel mais barato da praça, sem necessidade de fiador, ideal para economizar e viabilizar aquele cruzeiro gay dos seus sonhos.

3- Mãe é mãe, vaca é vaca

O cineasta espanhol Pedro Almodóvar foi muito feliz ao expor a histeria feminina. As mães são exageradas e absurdas. Os hormônios enlouquecem as mulheres. Com depressão pós-parto, uma mãe pode estrangular seu filho com uma fralda. Uma viciada pode deixar o rebento morrer de fome ou de coisa pior. Lembra do bebê de "Trainspotting" (Danny Boyle,1996)? Quando criança, nunca sabemos o que se passa na cabeça delas, como anda seu casamento ou as circunstâncias da concepção. Héteros adoram gravidez indesejável, um filho para salvar casamento. Não vista a carapuça de que você, por ser gay, é o grande problema. Releve as maldades de uma mãe dramática e vingativa.

4- Química funciona para todos

Não demore a procurar ajuda especializada para lidar com a homofobia materna. Se ela acha que um psiquiatra vai "curar" sua homossexualidade, aproveite essa despesa médica e vire a questão pelo avesso: "Doutor, preciso conviver com esse tipo de mãe ou serei um adulto traumatizado. O senhor não poderia receitar algum tranquilizante ou antidepressivo para ela ou para mim?" Se já é adulto, fique atento ao difícil processo de envelhecimento materno, como sinais de solidão, viuvez, falta de lazer, abandono. Cuide dela (faça ginástica, mamãe), mesmo que ainda haja mágoa pela educação opressora. Peso na consciência de filho faz mal à pele.

5- Grite independência ou morte

Se você não suporta a repressão materna por causa da homossexualidade, trate de decretar logo sua autonomia emocional e refaça sua base afetiva com amigos, sem mentiras nem pressões descabidas. Não perca tempo. Não deixe para fazer isso depois dos 30. Nos primeiros anos, você sentirá falta do colo, dos mimos e todo o carinho que só as mães sabem oferecer. Mas há o outro lado, o preço que elas cobram por isso: obediência cega a tudo que pregam. Ao virar homem de verdade, evite promessas de que nunca a abandonará, que sempre estará ao seu lado. Você agora tem sua própria vida, não ceda ao chororô, não volte com o rabo entre as pernas.

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Professora esclarece dúvidas e ajuda pais na aceitação de filho gay
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6- Doutrine aos poucos, até a exaustão

Por mais desgastante que seja, você terá de ensinar sua mãe a respeitá-lo. Não acontece do dia para noite, mas ela precisa sair das trevas da ignorância e se atualizar um pouco sobre o mundo. No primeiro momento, ela rejeitará essa iniciativa, pois foi programada à ideia de que "filho sabe menos". Mas não desista e martele na cabeça dela notícias sobre a tolerância da homossexualidade em outras áreas. Mostre filmes, livros, revistas, panfletos. Aponte exemplos de mães que convivem com gays. Tente argumentar sem impor nem provocar. Não force a barra com visitas de namorados antes do tempo. Não espere mudanças no curto prazo, busque aliados na família.

7- Até coração materno tem substituto

Quer conhecer realmente alguém? Comece pela mãe. O mimetismo costuma ser surpreendente. Passamos a vida toda à procura de um substituto para nossas mães. Nem percebemos quando a imitamos, seja em suas reações, acertos ou erros. Mesmo quem nunca teve uma mãe biológica acaba se atormentando com essa lacuna ou elegendo uma figura feminina para genitora simbólica, como as divas. Tentamos ser sempre um clone daquilo que admiramos. E o mundo seria realmente lindo se esse amor fosse mútuo, com respeito às diferenças. Quando não é assim, só nos resta superar o passado, sobreviver e se apegar ao futuro. Aos gatos e cachorros, aquele amor incondicional que um dia esperamos de nossas genitoras.

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Por causa de homem, um mãe pode até matar seus filhos, mostra "Medeia"
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"Mãe" de Pasolini

"Medeia", filme de Pasolini com Maria Callas no papel principal, já tem mais de 40 anos. Com pouquíssimos diálogos, o filme exige um conhecimento mínimo sobre a tragédia de Eurípedes para que se entenda o que está passando. Pasolini enxuga bastante as histórias sobre essa mitologia, e a primeira parte do filme é arrastada, pedra sobre pedra, sombra e luz, criando a tensão, pontilhando as referências da tragédia grega. Pasolini usa e abusa de exibir os corpos do elenco masculino, a fotografia é genial com muitas panorâmicas, e a música mete medo.

Medeia é uma espécie de feiticeira, se apaixona loucamente por Jasão, que está interessado em conseguir um carneiro mágico, o velocino de ouro, em troca da promessa de se tornar rei. Medeia o ajuda a roubar o velocino e foge com ele. Mas Jasão acaba largando Medeia, pois ela é considerada uma bruxa, uma primitiva, uma bárbara, e topa se casar com uma princesa. Mordida pela traição e expulsa do reino, Medeia prepara sua vingança. E aqui surge uma amarga lição: nunca aceite presentes de inimigos, não existe perdão a uma traição, uma mágoa sempre vira ódio. Medeia dá vestidos e joias de presente de casamento para a noiva de Jasão, mas tudo está envenenado, a princesa fica "colocada" (grogue) e se mata.

Puta da vida, Medeia leva sua vingança às últimas consequências, matando "friamente" os filhos pequenos que teve com Jasão. É a última chance de Maria Callas, em sua única atuação no cinema, provar que só ela mereceria este papel, sempre cobiçado no teatro. Não há excessos esperados de uma diva da ópera. E se realmente fosse possível viajar pelo tempo escolheria testemunhar este momento da filmagem de Medeia, o seu grito final para um Jasão impotente e desesperado com a morte da noiva e dos filhos: "É inútil. Nada mais é possível".

 
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