Livraria da Folha

 
09/09/2010 - 19h07

Tiririca representa protesto contra corrupção, diz autor de "Soldados Não Choram"

WILLIAM MAGALHÃES
colaboração para a Livraria da Folha

Divulgação
Livro retrata a história do casal da infância até saída do Exército
Livro retrata a história do casal da infância até saída do Exército

Em entrevista à Livraria da Folha, Fernando Alcântara de Figueiredo, ex-sargento do Exército e candidato a deputado federal pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), declarou que vê com tristeza a candidatura do palhaço Tiririca a uma vaga na Câmara.

Autor do livro "Soldados não Choram", Alcântara é conhecido por ter assumido a homossexualidade ao lado do marido, o sargento Laci Marinho de Araújo. Desesperados pela perseguição sofrida por conta de uma denúncia de corrupção, o casal resolveu expor a relação e as ameaças que recebiam.

Durante a conversa, Fernando revelou por que decidiu sair candidato e diz o que pensa sobre a presença de homossexuais na política. Para o ex-sargento e militante de direitos humanos, é preciso observar a história de cada indivíduo antes de votar.

Sobre a candidatura de personagens folclóricos, Fernando disse que Tiririca revela uma espécie de voto de protesto, personificando a descrença da população em relação a política de modo geral. Para o candidato, é necessário ficar atento aos partidos que usam celebridades e artistas como forma de angariar votos.

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O sargento Laci Marinho de Araújo ao lado do companheiro e candidato Fernando Alcântara de Figueiredo
O sargento Laci Marinho de Araújo ao lado do companheiro e candidato Fernando Alcântara de Figueiredo

Leia a seguir a entrevista na íntegra.

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Livraria da Folha - Por que você decidiu sair candidato?

Fernando Alcântara de Figueiredo - Chegou um momento em que vi que não havia outra saída a não ser tomar uma atitude mais pró-ativa. Recebi vários convites e posterguei muito. Foi uma decisão muito ponderada e estudada. Fui convidado por três partidos políticos. O último deles foi o PSB, com o qual me identifiquei mais por conta da própria ideologia partidária.

A decisão vem da própria história da nossa luta. E ela toma uma proporção muito maior quando representa o anseio de tantas outras pessoas que ficaram para trás. O Laci e eu somos só mais um caso de tantos que acontecem nas Forças Armadas e que a opinião pública não fica sabendo. Nós tivemos sorte e graças a Deus que todo mundo ficou sabendo, embora a gente tenha sofrido muito com isso. A gente só consegue mudar isso no campo político, por isso eu decidi ir pra política.

Livraria da Folha - Você disse que foi convidado por três partidos. Quais foram os outros dois?

Alcântara - Agora isso não tem mais importância... Prefiro não comentar este assunto. Até já andei falando aí pra algumas pessoas. O problema do convite também é que como eu estava residindo em Brasília antes de 2009, a intenção dos partidos era tentar me colocar como deputado distrital. Só que a nossa luta é toda voltada para o âmbito federal. Ela influencia a vida das pessoas no país, não só num determinado território. Minha atuação seria inócua se eu ficasse restrito no âmbito distrital.

Mesmo porque existem questões acerca das Forças Armadas que eu devo combater como, por exemplo, a impossibilidade de habeas corpus pra transgressões disciplinares de militares. São tratados como cidadãos de segunda classe e isso a gente tem que mudar, como a própria extinção da Justiça Militar da União. Poucas pessoas sabem, mas existem mecanismos de se condenar civis na justiça militar. É uma justiça extremamente complacente com a arbitrariedade, preconceito e os maus tratos dentro das Forças Armadas, o que não tem mais cabimento em nossa democracia.

Livraria da Folha - Você vai defender também os direitos LGBTs na sua plataforma?

Alcântara - Os direitos LGBTs são o grande gancho de nosso projeto de mandato, mas ele se engloba numa série de medidas em prol dos direitos humanos como um todo. Todas as pessoas que são marcadas, que têm um estigma social... Acreditamos que temos que combater o preconceito na sua raiz, ou seja, mudando a cultura. E cultura só se muda com educação.

Mas existem outras questões que dizem respeito a saúde, educação, valorização da mulher, as questões acerca da defesa nacional, o comportamento dentro das instituições militares. A gente tem um risco de suicídio muito grande dentro das Forças Armadas que não é divulgado por conta da perseguição política ou homofóbica e às vezes as duas juntas. E eu me sinto preparado para combater toda forma de arbitrariedade.

Livraria da Folha - Além dessas bandeiras você vai tocar também na questão do aborto ou legalização de alguma droga?

Alcântara - Olha, eu defendo as liberdades de um modo geral e na questão do aborto me sinto à vontade de falar porque assim como as mulheres eu sou vítima do preconceito por conta de determinadas situações... Ninguém é a favor do aborto, nem aqueles que defendem ferozmente, porque a própria mulher fica com um trauma psíquico para a vida toda. É uma ferida que marca a alma.

Mas existem situações em que só ela pode decidir sobre o próprio corpo. A decisão de qual o movimento ela vai tomar que vai influenciar em sua vida do momento da concepção por diante. Já está mais do que comprovado. Entidades científicas internacionais já debateram isso. Muitos países do primeiro mundo têm tomado por conduta observar que nas 12 primeiras semanas da gestação existe uma célula embrionária, não existe ainda um ser. Ele passa a ser considerado como tal a partir do surgimento do feto. Então, especificamente dentro desse período, deve haver a legalização do aborto.

Sinto-me a vontade pra levantar essa bandeira porque já sofro com o avanço do fundamentalismo religioso, então não terei melindres nenhum para tratar desse assunto.

Especificamente com relação às drogas, acredito que temos que caminhar pra legalização, inclusive pra diferenciar decisivamente o usuário do traficante. O governo que teria que tomar conta de tudo isso, que deveria comercializar, educar e acompanhar o processo todo, da utilização ao abandono da dependência química, como acontece na Holanda, por exemplo. E aí teríamos um impacto bem grande, nas políticas sociais que dizem respeito a saúde. Mas hoje, no Brasil, não temos condições pra isso. Não temos cultura, instalações adequadas, não temos uma postura da saúde de sustentar esse mecanismo todo para arcar o grande mal que são as drogas.

Com isso acabaríamos gerando um problema muito sério para as famílias daqueles que já são dependentes. Então, por hora, eu não sou favorável a descriminalização de forma alguma. Existem várias outras questões, por exemplo, como teremos mecanismos eficazes de diferenciar o traficante do usuário? Isso é um debate que tem que ser aprofundado, não é bem por aí. Seria muita irresponsabilidade defender essa postura de descriminalização total sem antes ouvir a sociedade e conscientizar e mudar a cultura.

Livraria da Folha - Você vai lutar em favor da lei da homofobia também?

Alcântara - Sim, vamos ser uma voz pra vencer o fundamentalismo religioso. O que está faltando é isso. Nós temos de fato vários parlamentares que tem se dedicado a causa. Atualmente quem está mais firme nesta situação é a senadora Fátima Cleide (PT - RO), [tem] o senador Suplicy (PT - SP), o senador José Nery (PSOL - PA)... várias pessoas têm se empenhado lá dentro. Só que entendo que o discurso, em determinado ponto, pode ficar acanhado, recuar em determinadas argumentações, em razão dessas pessoas, apesar de bastante solidárias, não terem vivido na pele a questão do preconceito contra a homossexualidade.

Só vai ter condições de a gente trabalhar lá de igual pra igual, contra o fundamentalismo religioso se tiver alguém que realmente tenha passado por tal situação e que tenha a clara percepção da hora e do que tem que ser falado. A gente só consegue realmente defender e vencer o preconceito dentro do Congresso Nacional se tiver disposto a isso. Ter coragem para peitar essas pessoas. Realmente é muito difícil. E como homossexual, como estigmatizado, como bissexual, transexual, essas pessoas já ultrapassaram essa barreira do discurso contido, como acontece, por exemplo, na tentativa de aprovação da união civil. Eu não acredito nisso. Sinceramente sou favorável a ter nada do que ter migalhas, do que me contentar só com esse discurso preconceituoso de que eu tenho que aceitar o contrato social. Um contrato vai ser sempre um contrato. O que a gente luta é pelo casamento civil, que vai acabar abarcando outras questões como a adoção, sem necessidade do judiciário se pronunciar sobre o caso. Vemos o judiciário legislando, quando quem tem essa obrigação é o poder legislativo, é o Congresso Nacional. Então temos que tomar as rédeas do nosso destino, pondo gente que esteja realmente habilitada e com coragem para combater o preconceito.

Livraria da Folha - Você é a favor de que sejam eleitos candidatos gays para que defendam os direitos gays?

Alcântara - Desde que observada a história de cada um. Não é assim discriminadamente "só porque é gay vou votar nele". Essa é uma das posturas das pessoas de um modo geral, não só dos homossexuais, mas da própria sociedade. A gente tem observado que o preconceito está diminuindo e que as pessoas observam mais a história de vida e de luta das pessoas. Considerado o histórico, a coragem, o caráter principalmente, profissionalismo, respeito às pessoas, você verifica aquele tem condições de merecer o seu voto. As pessoas não votam mais em partidos, não votam mais em coligações. Você defender um discurso desta forma é perigoso porque pode cair no ostracismo. As pessoas defendem agora personagens, elas acreditam muito na história de cada um. É nisso que a gente tem que investir. São nessas pessoas que têm demonstrado coragem pra enfrentar determinadas situações que a gente tem que acreditar e que merecem nossa confiança na hora do voto.

Livraria da Folha - Se você não fosse candidato votaria em alguns desses personagens como Ronaldo Esper ou [a drag queen] Rosana Star?

Alcântara - Não. Porque não consigo enxergar nenhum tipo de luta consistente dessas pessoas. A Rosana Star realmente não posso me pronunciar porque não a conheço. Estaria cometendo um grave erro. Não conheço a história dela. A do Ronaldo Esper, embora eu o respeite como artista, realmente não consigo enxergar uma consistência política de luta que pudesse fazer jus a meu voto. Mas isso não quer dizer que ele não tenha uma importância de vida, mesmo porque ele tem mais idade que eu e, portanto, é experiente naquilo que faz. Mas se dependesse do meu voto eu me absteria de votar neles.

Livraria da Folha - Tiririca é um dos principais candidatos pleiteando uma vaga na Câmara. Você está preparado para enfrentá-lo?

Não vejo Tiririca como meu concorrente, mesmo porque tem 70 vagas lá no Legislativo e eu preciso só de uma pra poder ocupar minha posição lá. Agora vejo isso com muita tristeza porque alguns partidos têm demonstrado, não somente com relação ao artista Tiririca, uma tentativa de angariar voto por meio do protesto. Tiririca ganhando as eleições vai representar o voto de protesto, não o voto ideológico, consciente.

É como falei com relação ao Ronaldo Esper. A gente tem que respeitar as pessoas e a história de vida deles, mas temos que ter o claro discernimento de qual é o momento e qual a intenção de alguns partidos de expor essas pessoas na tentativa de ter uma vaga no Congresso Nacional. Então não acredito num voto, não pro Tiririca específico, mas pro personagem artista, nem pro Ronaldo Esper, nem pra qualquer outro que se apresente.

Com relação especificamente a esta conduta de se votar em personagens cômicos, acredito que a população está mais propensa a rechaçar este tipo de comportamento partidário.

Livraria da Folha - Que tipo de protesto o Tiririca representa?

Alcântara - O protesto é o inconformismo e o descrédito crescente com relação ao parlamento. Tivemos vários casos e corrupção noticiados em que se impera a impunidade. Quando isto acontece várias outras questões são enaltecidas. Por exemplo, quando recentemente houve um posicionamento de que os torturadores da época da ditadura não poderiam ser punidos, no meu entendimento e no entendimento de várias outras entidades de direitos humanos, isso significa outorgar e liberar o crime de tortura no nosso país. Porque este crime perpetuado pelas outras instituições militares hoje são frutos daquela época. E como aquelas pessoas não foram punidas, as de hoje também não serão. É assim que é visto.

O que acontece dentro do Congresso é reflexo dessa cultura da impunidade. Hoje existe um constante descrédito em relação ao parlamento e como nosso voto ainda é obrigatório, as pessoas vão lá como se fosse uma forma de dizer "olha, não estou nem aí pra vocês, já que esta casa não tem seriedade vou tratar vocês com menos seriedade ainda. Vou por qualquer um aí dentro". E aí você coloca vários personagens, e entre eles os cômicos, que estão lá pra caçoar da política.

Livraria da Folha - Existe um projeto de lei que pretende instituir o dia do orgulho heterossexual. Você eleito pretende se posicionar contra isso?

Alcântara - Está mais do que evidente que este tipo de projeto tem uma base fundamentalista preconceituosa. Qual o grande objetivo pelo movimento da visibilidade dos homossexuais? É justamente porque a sociedade, por séculos, tem exposto os homossexuais a total humilhação social e essa grande humilhação é a questão da invisibilidade.

Assim como nas Forças Armadas, tanto nos Estados Unidos, como aqui no Brasil, desde que você não fale [pode ser gay]. Isso é fala recorrente. Alguns generais tem ido a público, inclusive, falar isso "a gente aceita desde que ele não fale", ou seja, "desde que ele não exista pra gente". Essa luta foi feita para que o indivíduo se sinta orgulhoso da forma como ele é, ele se sinta visível.

Agora do orgulho heterossexual é totalmente descabido. Qual o interesse disso? É atacar a comunidade LGBT, com certeza. E qualquer parlamentar sério, não só os que levantam dignamente a bandeira LGBT, mas todo aquele que acredita numa sociedade justa e humana, tem a obrigação de rechaçar esse tipo de comportamento, porque não deixa de ser um desrespeito e uma forma de denegrir os homossexuais.

Livraria da Folha - O fato de você ter uma biografia conhecida, por meio do livro "Soldados não Choram", pode ajudar na campanha?

Alcântara - Acredito que é um conjunto de coisas. Realmente o livro tem o papel de desmistificar várias questões. Quando as pessoas me receberam em casa através da televisão e aquela história toda emblemática da prisão, elas não tinham conhecimento de quem eram, até então, aqueles dois personagens.

A gente estava no final de semana na revista "Época" e de uma hora para outra a aparecemos na televisão, houve a prisão e uma série de outras coisas que foram acontecendo e foram noticiadas. Mas o cerne da questão de como surgiu tudo aquilo, a grande perseguição que existia por trás daquilo tudo eu só pude expor verdadeiramente no livro.

Muita coisa foi deixada de lado porque o livro ia ficar muito extenso, cansativo e caro, inclusive. Mas existem várias outras questões, que podem ser aprofundadas e que estão em âmbito de negociação. Aliás, não posso precisar, mas já está em fase de produção um documentário sobre a nossa história, lá fora, na Holanda, e isso tudo faz com que traga luz a esse tema, como é que funciona a perseguição dentro das Forças Armadas aos diferentes.

E minha história não é de perseguição exclusivamente homofóbica, ela se inicia com um caráter político interno, porque denunciei corrupção e fui perseguido por isso. Aí a homofobia institucional toma um caráter muito perverso quando se vai atrás da minha vida pessoal, a minha vida íntima, que mantinha com outro militar pra tentar me desacreditar perante a opinião pública e autoridades envolvidas na investigação. É bem emblemático e está no livro. As pessoas vão se identificar com várias passagens, não só a questão da sexualidade, mas com relação ao preconceito, e a visão política e socioeconômica de um rapaz de família pobre que saiu do nordeste pra tentar a sorte na cidade grande, a falta de perspectiva de emprego. É a história de uma pessoa que teve íntima relação com as dificuldades.

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"Soldados não Choram"
Autor: Fernando Alcântara de Figueiredo
Editora: Editora Globo
Páginas: 200
Quanto: R$ 26,90 (veja preço especial)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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