Livraria da Folha

 
14/09/2010 - 15h01

Lançamento da L&PM reúne textos perdidos de Bukowski; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Volume traz obras menos conhecidas de Charles Bukowski
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De histórias publicadas em revistas pornôs até o primeiro e último contos escritos pelo "velho safado". "Pedaços de um Caderno Manchado de Vinho" traz uma seleção de textos do escritor norte-americano de origem alemã Charles Bukowski (1920-1994), a maior parte deles até então restritos apenas aos lugares onde saíram originalmente, sejam jornais independentes ou antologias literárias.

As narrativas são marcadas pelas principais características do autor, histórias autobiográficas, cheias de bebedeiras, mulheres e corridas de cavalo, ou surreais que contam vivências de personagens do submundo.

Polemicamente classificado como um autor da 3ª geração do movimento beat, Bukowski é um dos escritores contemporâneos mais celebrados no mundo. É conhecido por obras como "Pulp", "Numa Fria" e "Factótum".

Entre as muitas adaptações de seus textos para filme, a mais famosa é "Barfly", com Mickey Rourke no papel principal.

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Livro reúne escritos até então dispersos de Charles Bukowski; autor narra histórias com mulheres e bebedeiras
Livro reúne escritos até então dispersos de Charles Bukowski; autor narra histórias com mulheres e bebedeiras

Monte sua estante com obras de Charles Bukowski

Leia trecho do conto "As Consequências de uma Longa Carta de Rejeição".

*

Dei uma volta na rua, pensando no que tinha acontecido. Era a maior que eu já recebera. Normalmente, diziam apenas: "Lamentamos, mas esta obra não segue nossos padrões" ou, "Lamentamos, mas não temos como enquadrar seu texto em nossa linha editorial". Ou o que era mais comum, a boa e velha rejeição impressa e padronizada.

Mas esta era a maior de todas. Era sobre o meu conto "Minhas aventuras em meia centena de pensões". Fui até um poste de luz, retirei a carta do bolso e a reli:

Caro sr. Bukowski:

De fato, trata-se de uma reunião de ideias ótimas, mas também de outras coisas tão cheias de prostitutas idolatradas, manhãs de ressaca e vômito, misantropia, elogio ao suicídio etc. que não creio que qualquer revista em circulação possa aceitar o conto. Há, no entanto, uma espécie de saga de um certo tipo de pessoa no que o senhor escreve, um trabalho feito com honestidade. É possível que publiquemos alguma coisa sua em breve, só não podemos precisar quando. Depende do senhor.

Atenciosamente,

Whit Burnett

Ah, eu conhecia aquela assinatura: o longo "h" que se curvava em direção à extremidade do "W", e o começo do "B" que descia página abaixo.

Coloquei a carta de volta no bolso e segui caminhando pela rua. Sentia-me muito bem.

Fazia então apenas dois anos que eu estava escrevendo. Dois breves anos. Hemingway precisou de dez. E Sherwood Anderson tinha quarenta antes de publicar alguma coisa.

Enfim, me parecia que o melhor a fazer era largar a bebida e as mulheres de má fama. De toda maneira, estava difícil de conseguir uísque, e o vinho estava arruinando o meu estômago. Millie... bem, me livrar de Millie seria muito mais complicado...

...Mas Millie, Millie querida, precisamos nos lembrar da arte. Dostoiévski, Górki, a invasão russa, e agora a América quer alguém do Leste Europeu. A América está cansada de tantos Browns e Smiths. Os Browns e os Smiths são bons escritores, mas há milhares deles, todos escrevendo igual. A América deseja algo obscuro, as meditações impraticáveis e os desejos reprimidos de um homem do Leste Europeu.

Millie, Millie, seu corpo é perfeito: todo ele desce firme até os quadris, e fazer amor com você é fácil como calçar um par de luvas no auge do inverno. Seu quarto está sempre quente e alegre e você tem discos e queijos e sanduíches que me agradam. E, Millie, tem o gato também, lembra? Lembra quando era um filhotinho? Tentei ensiná-lo a dar a patinha e depois rolar, e então você me disse que ele não era um cachorro e que não ia conseguir fazer aquilo. Bem, eu consegui, não é verdade, Millie? O gato agora já cresceu e já tem seus filhotinhos. Mas a hora dele chegou, Millie: os gatos e o seu corpo perfeito e a Sexta Sinfonia do Tchaikovsky. A América precisa de um homem do Leste Europeu...

Quando dei por mim estava na frente da minha pensão e resolvi entrar. Foi quando percebi uma luz acesa na minha janela. Olhei para dentro: Carson e Shipkey estavam sentados na mesa com alguém que eu não conhecia. Jogavam carta, e no centro havia uma enorme garrafa de vinho. Carson e Shipkey eram pintores que não conseguiam se decidir se imitavam Salvador Dalí ou Rockwell Kent, e trabalhavam no estaleiro enquanto tentavam chegar a uma conclusão.

Então avistei um homem sentado de modo muito calado na beirada da cama. Usava um bigode e cavanhaque e me pareceu familiar. Tinha a impressão de lembrar o seu rosto. Devia tê-lo visto em um livro, num jornal, num fi lme, talvez.

Então lembrei.

Quando lembrei quem ele era, fiquei em dúvida se entrava ou não. Afinal, o que dizer? Como agir? Com um homem como aquele era difícil saber. Era preciso tomar cuidado para não dizer a coisa errada, era preciso ser cauteloso em relação a tudo.

Decidi, primeiro, dar uma volta na quadra. Li em algum lugar que isso ajudava a diminuir o nervosismo. Ouvi Shipkey blasfemar enquanto eu me afastava e alguém deixou cair um copo. Isso em nada me ajudaria.

Decidi treinar meu discurso para a ocasião. "Na verdade, não sou muito bom com as palavras. Sinto-me muito tímido e nervoso. Guardo tudo para pôr no papel. Tenho certeza de que o senhor ficará desapontado comigo, mas sempre fui assim."

Pensei que aquilo funcionaria e, assim que terminei de dar a volta na quadra, fui direto para o quarto.

Percebi que Carson e Shipkey já estavam para lá de embriagados, e vi que não me ajudariam em nada. O tampinha que eles tinham trazido para o jogo também estava fora de combate, excetuado o fato de que ele acumulara todo o dinheiro da mesa.

O homem de cavanhaque se levantou da cama.

- Como vai o senhor? - perguntou.

- Bem, e o senhor? - Trocamos um aperto de mão. - Espero que o senhor não esteja esperando há muito tempo? - eu disse.

- Ah, não.

- Na verdade - eu falei -, não sou muito bom com as palavras...

- A não ser quando ele está bêbado, então ele fala pelos cotovelos. Às vezes ele vai até a praça e começa a discursar e se ninguém o escuta ele fala com as aves - disse Shipkey.

O homem de cavanhaque deixou escapar um riso. Tinha uma risada maravilhosa. Evidentemente um homem de fino entendimento.

Os outros dois seguiam jogando cartas, mas Shipkey virou a cadeira e ficou a nos observar.

- Sinto-me muito tímido e nervoso - continuei - e...

- Nervoso que nem bife nervoso - gritou Shipkey.

Tinha sido uma péssima sacada, mas o homem de cavanhaque riu novamente e eu me senti melhor.

- Guardo tudo para pôr no papel e...

- Nervosinho ou nervosão? - gritou Shipkey.

-...e tenho certeza de que o senhor ficará desapontado comigo, mas sempre fui assim.

- Escute, senhor! - gritou Shipkey, avançando e recuando o corpo na cadeira. - Escute aí, ô do cavanhaque!

- Pois não?

- Escute, tenho um metro e noventa de altura, cabelos cacheados, um olho de vidro e dados vermelhos.

O homem riu.

- Então não acredita em mim? Não acredita que eu tenho um par de dados vermelhos?

Shipkey, quando ficava bêbado, sempre queria, por alguma razão, fazer com que as pessoas acreditassem que ele tinha um olho de vidro. Apontava para um dos olhos e afirmava que aquele era de vidro. Alegava que o olho tinha sido feito pelo pai, um especialista internacional, que havia, infelizmente, sido morto por um tigre na China.

De repente, Carson começou a gritar:

- Vi você pegar aquela carta! Onde você a enfiou? Vamos, devolva, _devolva agora_! Cartas marcadas,_ marcadas_! Por isso está ganhando! Assim até eu!

Carson se levantou e agarrou o pequeno jogador pela gravata e começou a sufocá-lo. Carson estava com o rosto vermelho de raiva, e logo o do pequeno jogador começou a adquirir a mesma cor por causa da esganação.

- O que está pegando, hein? Rá! O que está pegando? Rá! - gritou Shipkey. - Deixe eu ver, hein! Passa pra cá!

Carson estava tão vermelho que mal conseguia falar. Silvou as palavras por entre os lábios com grande esforço, sem deixar de puxar a gravata. O pequeno jogador começou a se debater, os braços parecendo os de um polvo que tentasse chegar à superfície.

- Ele nos passou a perna! - silvou Carson. - Trapaceou! Puxou uma carta da manga, tenho certeza! Trapaceou a gente, não há dúvida!

Shipkey se posicionou atrás do pequeno jogador e o agarrou pelos cabelos, sacudindo a cabeça dele para frente e para trás. Carson se atinha à gravata.

- Você nos passou a perna, não é? Trapaceiro! Diga alguma coisa! - gritou Shipkey, aferrado aos cabelos do outro.

O pequeno jogador não dizia nada. Apenas debatia os braços, começando a suar.

- Vou levá-lo a um lugar onde possamos tomar uma cerveja e comer alguma coisa - eu disse ao homem de cavanhaque.

- Vamos! Desembucha! Desista! Você não pode nos enganar!

- Ah, não creio que seja necessário - disse o homem de cavanhaque.

- Seu verme! Seu rato imundo!

- Eu insisto - eu disse.

- Querendo roubar um homem com olho de vidro, não é verdade? Vou mostrar pra você, seu rato imundo!

- Bem, é muita gentileza de sua parte. Estou com um pouco de fome, de fato - disse o homem de cavanhaque.

- Fale alguma coisa, rato imundo! Se não disser nada em dois minutos, nos próximos dois minutos, arranco seu coração para usar de maçaneta!

- Vamos sair daqui - eu disse.

- Tudo bem - disse o homem de cavanhaque.

*

"Pedaços de um Caderno Manchado de Vinho"
Autor: Charles Bukowski
Editora: L&PM Editores
Páginas: 304
Quanto: R$ 45,60 (preço promocional, por tempo limitado)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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