Livraria da Folha

 
01/10/2010 - 11h17

Em "O Brasil Não Existe!", Laerte, Cecilia Giannetti e Gero Camilo fabulam cotidiano brasileiro

da Livraria da Folha

Divulgação
Oito intérpretes recriam irrealidade brasileira, na qual povo sobrevive
Oito intérpretes recriam irrealidade brasileira, na qual povo sobrevive

Oito canções para oito intérpretes da realidade brasileira. O livro "O Brasil Não Existe!: Ficções e Canções" (Publifolha, 2010) é uma recriação do país nosso de cada dia.

Amilcar Bettega, Cecilia Giannetti, Gero Camilo, Vadim Nikitin, José Roberto Torero, Siba, Guilherme Wisnik e Laerte inventam novas melodias para esse Brasil que se reinventa a cada situação --doce ou áspera-- que surge em seu caminho.

Contos, quadrinhos, memórias, nota de viagem e peça teatral captam o leitor pela música que lembram, pela nota que incidem.

No conjunto, perfazem um quadro inusitado e variado de um Brasil que sobrevive. Dos afetos contraditórios à sociedade dos ratos, pincelada na HQ do cartunista da Folha Laerte, um novo país é moldado.

O livro acompanha um CD com oito canções recriadas pelo pianista André Mehmari. "Alegria, Alegria", "Chega de Saudade", "Assum Preto", "O Samba da Minha Terra", "Construção", "Aquarela do Brasil", "Tristezas do Jeca" e "Odeon" contam com o arranjo do músico.

Leia abaixo um trecho extraído do texto de Cecilia Giannetti. A escritora e jornalista se baseou na música "Odeon", de Ernesto Nazareth, para descrever uma realidade que se perde e se ganha conforme nossas derrotas ou vitórias pessoais.

*

GANHA OU PERDE
[Cecilia Giannetti]

Clonazepan: meu dia rico, de recuo a lugares impossíveis. Por trás do vidro fumê adivinho o que eles lá de fora veem cá dentro. É nada atrás de nada. Desse jeito não vai. Um calhamaço pra ler. O sujeito, esse americano, diz as coisas de maneira tortuosa e repetitiva, fala de uma realidade enjoada que conheço bem: eternamente a roer rapadura com os dentes que restam.

Mal vejo o que vai lá fora, esse vidro escuro. Enquanto procuro mastigar o brasilianista, o jogo do Brasil tortura quem quer sossego. Devem estar todos de verde e amarelo na rua. Ouço as cornetas, tem até um berrante. Torcedores, uma cidade inteira, o país gritando e soprando ruídos estridentes, soltando fogos, urros. Não é o que me distrai. A distração que arranjei, fora o jogo, me reduz as horas de trabalho e atrapalha as letras a minha frente. Apego-me a essa distração hoje, o brasilianista me põe pra dormir. Ou é o remédio, nome genérico do sonho. Comprimidos de 2 mg, gotas de 2,5 mg/mL.A tampa possui lacre inviolável. Que abro e sonho. Meu recuo até a praça. Um terço da manhã pensando na minha cidade vazia nesta época do ano. Meio de lugar nenhum, lá que fica. Como é que deve estar o céu a mais de dois mil quilômetros de distância daqui? A mesma doceira na praça à noite? Senhora miúda, apesar dos bolos que faz e vende.Talvez ela mesma nunca tenha comido um só, seca. Brigadeiros, cajuzinhos, olhos-de-sogra, tortas de banana, ameixa, jabuticaba.Vendia o cento de doces para festas de crianças. Para casamentos, os cristalizados. As encomendas eram transportadas de uma rua à outra pelos netos da doceira, dois meninos de 14 e 17 anos. De vez em quando tropeçavam nos próprios chinelos, fazendo os noivos no topo de um bolo ameaçarem duplo suicídio camadas de glacê abaixo.

Óxido de ferro amarelo. Óxido de ferro vermelho. Beijo nas minhas pálpebras. Café. Uma coca-cola zero à esquerda. Clonazepan gotas apresenta odor de pêssego. Gosto amargoso. Se instituíssem aqui a Lei Seca e cortassem o fornecimento de antidepressivos e ansiolíticos, não tinha coragem de olhar. A seco, esse Brasil não desce pela goela.

Na praça a doceira engordando as mães da meninada, botequins estufando a barriga dos pais. Os mais novos gastando as solas dos sapatos melhores que tivessem, rodando e rodando aquela roda onde nada acontece, em volta da igreja que, a essa altura, já ganhou umas mãos de tinta para ajeitar a aparência acanhada.As rachaduras devem permanecer, rugas de fé no concreto centenário, bem como os velhos sentados nos bancos de cimento. Às vezes levavam seus instrumentos, cavaquinho, violão, pandeirola, uma roda de choro pra não passarem a noite em branco. Nunca se faz nada por aquele lugar. Aqui é tudo espelhado. Prefiro trabalhar no escritório do amigo. Em casa não concentro. Aqui também é difícil. Aqui nada se vê de fora para dentro, pouco se vê de cá lá fora. Na minha cidade todos se viam todos os dias.

- Fabiano, vai onde todo bonito?

E me deu um beijo na cabeça. Meus cabelos estavam secos ou molhados? Repartidos para o lado.Algum creme, goma, gel pra amansar os fios encaracolados que me fugiam ao controle. Senti nojo da minha cabeça, pensei nos lábios dela, se tinham sentido o gosto e a textura dos fios empapados por aquela porcaria barata, a embalagem azul e branca que eu guardava no armário do banheiro. Que me dava caspa. Aquilo de beijo era muito diferente. Nunca tinha tido beijo dela, nem no rosto, nunca nem um nada. Só um puxão no braço uma vez, quando a gente subia o morro. Ela tinha me puxado pra me desviar de um monte de bosta de cavalo.

Meu amigo sempre teve casa em São Paulo. Mas nunca está aqui. Paga por uma sala que mal usa, me empresta. Viaja. Atrás de dinheiro. A sala é pra reuniões. As viagens são pra caçar a grana de verdade. Investimentos.Patrocínios. Boa aparência. Eu não entendo de números, mal sei contar meus centavos.Tive sorte de entender as letras, ou não tinha trabalho. Ele, que ganha dinheiro de verdade, não se incomoda comigo aqui usando a sala pela qual paga. Não faz diferença pro bolso. Me leva nas festas quando está na cidade. Das festas minha família quer saber. Espumante. Tecidos de brilho. Gente de televisão. Boçalidades.

 
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