Livraria da Folha

 
11/10/2010 - 14h04

Leia primeiro capítulo do aclamado romance espanhol "O Tempo Entre Costuras"

da Livraria da Folha

Divulgação
Costureira vive rede de intrigas em fenômeno editorial espanhol
Costureira vive rede de intrigas em fenômeno editorial espanhol

O fenômeno editorial "O Tempo Entre Costuras" (Planeta, 2010) narra a história de uma costureira que vai ao Marrocos (África) --na época um protetorado da Espanha-- atrás de um grande amor enquanto a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) está prestes a rebentar.

Arte
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No exercício de sua profissão, a protagonista acaba por se envolver indiretamente no conflito, em uma emocionante aventura cheia de fugas, intrigas e espionagem.

Para contar a história, a escritora mescla personagens fictícias e reais. A escolha de palavras foi elogiada pela crítica. No volume, a escritora usa uma linguagem leve, poética e conduz a leitura em ritmo alucinante.

O romance --estreia de María Dueñas-- chegou manso, quase sem publicidade, às livrarias espanholas por um selo menos conhecido da editora Planeta. Os primeiros leitores começaram a divulgar a obra pela internet e desde o lançamento, em 2009, o livro teve 25 edições apenas em sua terra natal, com mais de 550 mil cópias comercializadas e os direitos vendidos para mais de 20 países.

Leia o primeiro capítulo de "O Tempo Entre Costuras".

*

Uma máquina de escrever detonou meu destino. Foi uma Hispano-Olivetti, e dela me separou durante semanas o vidro de uma vitrina. Visto hoje, do parapeito dos anos passados, é difícil acreditar que um simples objeto mecânico pudesse ter potencial suficiente para alterar o rumo de uma vida e dinamitar em quatro dias todos os planos traçados para sustentá-la. Pois assim foi, e nada pude fazer para impedir.

Não eram, na realidade, grandes projetos os que eu acalentava na época. Tratava-se apenas de aspirações próximas, quase domésticas, coerentes com as coordenadas do local e do tempo que me coube viver; planos de futuro acessíveis, bastando esticar um pouco as pontas dos dedos. Naqueles dias, meu mundo girava lentamente ao redor de algumas presenças que eu julgava firmes e imperecíveis. Minha mãe sempre havia sido a mais sólida de todas elas. Era costureira, trabalhava em um ateliê de nobre clientela. Tinha experiência e bom gosto, mas nunca foi mais que uma simples costureira assalariada; uma trabalhadora como tantas outras que, durante dez horas diárias, acabava com as unhas e as pupilas cortando e costurando, experimentando e retificando peças destinadas a corpos que não eram o seu e a olhares que raramente teriam por destino sua pessoa. De meu pai eu sabia pouco, na época. Quase nada. Nunca esteve por perto; e nem sua ausência me afetou. Jamais senti muita curiosidade por saber dele até que minha mãe, em meus oito ou nove anos, se aventurou a me fornecer algumas migalhas de informação. Que ele tinha outra família, que era impossível que vivesse conosco. Engoli aqueles dados com a mesma pressa e o pouco apetite com que matei as últimas colheradas dos legumes que tinha a minha frente: a vida daquele ser estranho me interessava bem menos que descer rapidamente para brincar na praça.

Eu nasci no verão de 1911, no mesmo ano em que Pastora Imperio se casou com El Gallo, veio à luz no México Jorge Negrete, e na Europa decaía a estrela de um tempo que chamaram de Belle époque.¹ Ao longe começavam a se ouvir os tambores daquilo que seria a primeira grande guerra e nos cafés de Madri lia-se, na época, El Debate e El Heraldo, enquanto La Chelito,² nos palcos, enlouquecia os homens mexendo descaradamente os quadris ao ritmo do cuplé. O rei Alfonso XIII, entre uma amante e outra, conseguiu engendrar naqueles meses sua quinta filha legítima. Enquanto isso, no comando de seu governo estava o liberal Canalejas, incapaz de pressagiar que apenas um ano depois um excêntrico anarquista ia acabar com sua vida dando-lhe dois tiros na cabeça enquanto observava as novidades da livraria San Martín.

Cresci em um ambiente moderadamente feliz, com mais apertos que excessos, mas sem grandes carências nem frustrações. Fui criada em uma rua estreita de um bairro típico de Madri, ao lado da praça De la Paja, a dois passos do Palácio Real; a um pulo da agitação constante do coração da cidade, em um ambiente de roupa estendida, cheiro de água de lavadeira, vozes de vizinhas e gatos ao sol. Frequentei uma rudimentar escola em um local próximo: em seus bancos, previstos para duas pessoas, acomodávamo-nos de quatro em quatro, sem ordem e aos empurrões para recitar em voz alta La canción del pirata e a tabuada. Ali aprendi a ler e escrever, a usar as quatro réguas e o nome dos rios que cortavam o mapa amarelado pendurado na parede. Aos doze anos, concluí minha formação e entrei, na qualidade de aprendiz, no ateliê em que minha mãe trabalhava. Meu destino natural.

Do ateliê de dona Manuela Godina, a proprietária, havia décadas saíam peças primorosas, excelentemente cortadas e cosidas, famosas em Madri inteira. Roupas de dia, vestidos de coquetel, casacos e capas que depois seriam ostentados por senhoras distintas em seus passeios pela Castelhana, no Hipódromo e no polo de Puerta de Hierro, ao tomar chá no Sakuska e quando iam às igrejas de segunda categoria. Passou-se algum tempo, porém, até que comecei a adentrar os segredos da costura. Primeiro, fiz de tudo no ateliê: retirava as brasas dos fogareiros e varria do chão os restos de tecido, aquecia os ferros de passar no fogo e corria sem parar para comprar linhas e botões na praça de Pontejos. Eu também era encarregada de levar às seletas residências os modelos recém-terminados embrulhados em grandes sacolas de tecido escuro; era minha tarefa favorita, o melhor entretenimento naquela carreira incipiente. Conheci, assim, os porteiros e motoristas das melhores casas, as donzelas, criadas e mordomos das famílias mais endinheiradas. Contemplei, sem mal ser vista, as mulheres mais refinadas, suas filhas e maridos. E, como uma testemunha muda, adentrei suas casas burguesas, palacetes aristocráticos e apartamentos suntuosos dos edifícios tradicionais. Em algumas ocasiões não chegava a ultrapassar as áreas de serviço e alguém do corpo de empregados cuidava de receber a roupa que eu portava; em outras, porém, incitavam-me a entrar até os quartos, e para isso eu percorria os corredores e vislumbrava os salões, e comia com os olhos os tapetes, os lustres, as cortinas de veludo e os pianos de cauda que às vezes alguém tocava e às vezes não, pensando em como seria estranha a vida em um universo como aquele.

Meus dias transcorriam sem tensão nesses dois mundos, quase alheia à incongruência que existia entre ambos. Com a mesma naturalidade transitava por aquelas largas vias com passagens de carruagens e grandes portais, e pela trama enlouquecida das ruas tortuosas de meu bairro, sempre cheias de poças, dejetos, gritaria de vendedores e latidos pungentes de cães com fome; aquelas ruas pelas quais as pessoas sempre andavam com pressa e onde, ao ouvir "lá vai água!", mais valia se proteger em algum lugar para evitar tomar um banho de urina. Artesãos, pequenos comerciantes, empregados regulares e diaristas recém-chegados à capital enchiam as casas de aluguel e dotavam meu bairro de sua alma de povo. Muitos deles mal ultrapassavam seus limites, a não ser por motivo de força maior; minha mãe e eu, porém, saíamos cedo a cada manhã, juntas e apressadas, para ir à rua Zurbano e nos integrar sem demora a nosso cotidiano afazer no ateliê de dona Manuela.

Depois de dois anos no ateliê, decidiram que havia chegado o momento de eu aprender a costurar. Aos catorze anos comecei com o mais simples: ganchinhos, chuleados, alinhavos. Depois vieram as casas de botão, os pespontos e as bainhas. Trabalhávamos sentadas em pequenas cadeiras de junco, encurvadas sobre tábuas apoiadas nos joelhos; nelas apoiávamos nosso trabalho. Dona Manuela atendia as clientes, cortava, provava e ajustava. Minha mãe tirava as medidas e se encarregava do resto: costurava o mais delicado e distribuía as demais tarefas, supervisionava sua execução e impunha o ritmo e a disciplina a um pequeno batalhão formado por meia dúzia de costureiras maduras, quatro ou cinco mulheres jovens e algumas aprendizes tagarelas, sempre com mais vontade de rir e fofocar que de trabalhar. Algumas se saíram boas costureiras, outras não foram capazes e ficaram para sempre com as funções menos gratas. Quando uma ia embora, outra nova a substituía naquele lugar agitado, incongruente com a serena opulência da fachada e a sobriedade da sala luminosa a que só as clientes tinham acesso. Elas, dona Manuela e minha mãe, eram as únicas que podiam usufruir de suas paredes forradas cor de açafrão; as únicas que podiam se aproximar dos móveis de mogno e pisar no chão de carvalho que nós, as mais novas, nos encarregávamos de encerar com trapos de algodão. Só elas recebiam de quando em quando os raios de sol que entravam pelas quatro altas varandas voltadas para a rua. O resto da tropa permanecia sempre na retaguarda: naquele gineceu gelado no inverno e infernal no verão que era nosso ateliê, esse espaço de fundos e cinza que tinha apenas duas janelinhas que davam para um escuro pátio interno, e onde as horas passavam como sopros de ar em meio ao cantarolar de canções e o barulho de tesouras.

Aprendi rápido. Eu tinha dedos ágeis que logo se adaptaram ao contorno das agulhas e ao contato dos tecidos, às medidas, às peças e aos volumes. Molde dianteiro, contorno de peito, comprimento de perna. Cava, boca de calça, viés. Aos dezesseis anos aprendi a distinguir os tecidos, aos dezessete, a apreciar suas qualidades e a calibrar seu potencial. Crepe da China, musselina de seda, georgette, chantilly. Passavam-se os meses como em uma roda-gigante: nos outonos fazendo casacos de bons tecidos e ternos de meia-estação, nas primaveras costurando vestidos voláteis destinados às férias cantábricas, longas e alheias, em La Concha e El Sardinero. Completei dezoito anos, dezenove. Iniciei-me pouco a pouco no manejo do corte e na confecção das partes mais delicadas. Aprendi a montar golas e colarinhos, a prever caimentos e antecipar acabamentos. Eu gostava do meu trabalho, era feliz com ele. Dona Manuela e minha mãe me pediam opinião às vezes, começavam a confiar em mim. "A menina tem mão e olho, Dolores", dizia dona Manuela. "É boa, e vai ser ainda melhor se não se desviar. Melhor que você, se bobear." E minha mãe continuava trabalhando, como se não a ouvisse. Eu também não levantava a cabeça de meu tablado, fingia não ter ouvido nada. Mas, disfarçadamente, olhava para ela de soslaio e via em sua boca cheia de alfinetes aflorar um levíssimo sorriso.

Passavam-se os anos, passava a vida. Mudava também a moda e a seus ditados se acomodava o trabalho do ateliê. Depois da guerra europeia chegaram as linhas retas, abandonaram-se os corpetes e as pernas começaram a se mostrar sem sombra de rubor. Mas, quando os felizes anos 1920 chegaram ao fim, as cinturas dos vestidos voltaram a seu lugar natural, as saias se alongaram e o recato tornou a se impor em mangas, decotes e vontades. Pulamos, então, para uma nova década e chegaram mais mudanças. Todas juntas, imprevistas, quase aos montes. Completei vinte anos, veio a República e conheci Ignacio. Foi em um domingo de setembro em La Bombilla; em um baile tumultuado abarrotado de garotas de ateliês, maus estudantes e soldados de licença. Ele me tirou para dançar, me fez rir. Duas semanas depois, começamos a fazer planos para casar.

Quem era Ignacio e o que representou para mim? O homem da minha vida, pensava então. O garoto tranquilo que intuí destinado a ser o bom pai dos meus filhos. Já havia chegado à idade em que, para as garotas como eu, sem ofício nem benefício, não restavam muitas opções além do casamento. O exemplo de minha mãe, criando-me sozinha e trabalhando para isso de sol a sol, jamais me havia parecido um destino apetecível. E em Ignacio encontrei um candidato idôneo para não seguir os passos dela: alguém com quem passar o resto da minha vida adulta sem ter de acordar a cada manhã com a boca cheia de sabor de solidão. Não me liguei a ele por uma paixão arrasadora, mas sim por um afeto intenso e pela certeza de que meus dias a seu lado transcorreriam sem pesares nem estardalhaços, com a doce suavidade de um travesseiro.

Ignacio Montes, eu acreditei, seria o dono do braço ao qual me agarraria em mil passeios, a presença próxima que me proporcionaria segurança e abrigo para sempre. Dois anos mais velho que eu, magro, afável, tão fácil quanto doce. Tinha boa estatura e poucas carnes, maneiras educadas e um coração no qual a capacidade para me amar parecia se multiplicar com as horas. Filho de uma viúva castelhana com o dinheiro bem contado debaixo do colchão; residente com intermitências em pensões de pouca monta; aspirante iludido a profissional da burocracia e eterno candidato a todo ministério capaz de lhe prometer um salário vitalício. Guerra, Governo, Fazenda. O sonho de 3 mil pesetas ao ano, 241 ao mês: um salário fixo para todo o sempre em troca de dedicar o resto dos seus dias ao mundo manso dos departamentos e antessalas, dos mata-borrões, do papel-carbono, dos carimbos e dos tinteiros. Em cima disso planejamos nosso futuro: na esteira da quietude de um funcionalismo que, chamada após chamada, se negava obstinadamente a incorporar meu Ignacio em sua folha de pagamento. E ele insistia sem desalento. E em fevereiro tentava na pasta da Justiça e em junho na da Agricultura, e começava tudo de novo.

E, enquanto isso, incapaz de se permitir distrações caras, mas disposto até a morte a me fazer feliz, Ignacio me agradava com as humildes possibilidades que seu paupérrimo bolso lhe permitia: uma caixa de papelão cheia de bichos-da-seda e folhas de amoreira, pacotinhos de castanhas assadas e promessas de amor eterno sobre a relva embaixo do viaduto. Juntos ouvíamos a banda de música do parque do Oeste e remávamos nas canoas de Retiro nas manhãs de domingo em que havia sol. Não havia festa com balanço e realejo a que não fôssemos, nem xotes que não dançássemos com precisão de relógio. Quantas tardes passamos em Las Vistillas, quantos filmes vimos em cinemas de bairro. Uma horchata valenciana era, para nós, um luxo, e um táxi, uma quimera. A ternura de Ignacio não era exagerada, porém, não tinha fim. Eu era seu céu e as estrelas, a mais bonita, a melhor. Meu cabelo, meu rosto, meus olhos. Minhas mãos, minha boca, minha voz. Eu inteira configurava para ele o insuperável, a fonte de sua alegria. E eu o ouvia, chamava-o de bobo e me deixava amar.

A vida no ateliê naqueles tempos marcava, não obstante, um ritmo diferente.
Tornava-se difícil, incerta. A Segunda República havia infundido um sopro de agitação na confortável prosperidade do ambiente de nossas clientes. Madri andava convulsionada e frenética, a tensão política impregnava todas as esquinas. As boas famílias prolongavam até o infinito seus veraneios no Norte, desejosas de permanecer à margem da capital inquieta e rebelde em cujas praças anunciavam o Mundo Obrero enquanto os proletários descamisados da periferia adentravam sem reservas a Porta do Sol. Os grandes carros particulares começavam a rarear pelas ruas, as festas opulentas também. As velhas damas enlutadas rezavam novenas para que Azaña³ caísse logo e o barulho das balas se tornava cotidiano quando se acendiam os faróis a gás. Os anarquistas queimavam igrejas, os falangistas sacavam pistolas com pose de valentões. Com frequência crescente, os aristocratas e altos burgueses cobriam com lençóis seus móveis, demitiam os empregados, trancavam as janelas e partiam com urgência para o exterior, passando tranquilamente joias, medos e dinheiro pelas fronteiras, sentindo saudade do rei exilado e de uma Espanha obediente que ainda tardaria a chegar.

E no ateliê de dona Manuela entravam cada vez menos mulheres, saíam menos pedidos e havia menos a fazer. Em um penoso conta-gotas, foram sendo dispensadas primeiro as aprendizes e depois as demais costureiras, até que, no fim, só restamos a dona, minha mãe e eu. E quando terminamos o último vestido da marquesa de Entrelagos e passamos os seis dias seguintes ouvindo rádio, de braços cruzados sem que sequer uma alma batesse à porta, dona Manuela anunciou, entre suspiros, que não tinha mais remédio senão fechar o ateliê.

Em meio à convulsão daqueles tempos, quando as disputas políticas faziam tremer as poltronas dos teatros e os governos duravam três pais-nossos, mal tivemos oportunidade de chorar o que perdemos. Três semanas depois do advento de nossa inatividade compulsória, Ignacio apareceu com um buquê de violetas e a notícia de que finalmente havia sido admitido. O projeto de nosso pequeno casamento desterrou a incerteza, e sobre a mesa dobrável planejamos o evento. Embora entre os ares novos trazidos pela República estivesse a moda dos casamentos civis, minha mãe, em cuja alma conviviam sem o menor desconforto sua condição de mãe solteira, um férreo espírito católico e uma nostálgica lealdade à monarquia deposta, incitou-nos a celebrar um casamento religioso na vizinha igreja de Santo André. Ignacio e eu aceitamos - como poderíamos não aceitar sem transtornar aquela hierarquia de vontades na qual ele realizava todos os meus desejos e eu acatava os de minha mãe sem discussão? Além de tudo, eu não tinha razão de peso alguma para me negar: a expectativa que sentia pela celebração daquele casamento era modesta, e tanto fazia para mim um altar com padre e batina ou uma sala presidida por uma bandeira de três cores.

Decidimos, assim, marcar a data com o mesmo padre que 24 anos antes, em um 8 de junho e por determinação do santoral, havia me imposto o nome de Sira. Sabiniana, Victorina, Gaudencia, Heraclia e Fortunata foram outras opções em consonância com os santos do dia.

"Sira, padre, ponha Sira mesmo, que pelo menos é curto." Essa foi a decisão de minha mãe em sua solitária maternidade. E Sira fiquei.

Celebraríamos o casamento com a família e alguns amigos. Com meu avô sem pernas nem luzes, mutilado de corpo e alma na guerra das Filipinas, permanente presença muda em sua cadeira de balanço ao lado da mesa de nossa sala de jantar. Com a mãe e as irmãs de Ignacio, que viriam do povoado. Com nossos vizinhos Engracia e Norberto e seus três filhos, socialistas e afetuosos, tão próximos a nós, na porta da frente, como se o mesmo sangue nos corresse pelas veias. Com dona Manuela, que novamente pegaria linhas e agulhas para me presentear sua última obra em forma de vestido de noiva. Receberíamos nossos convidados com tortas de merengue, vinho de Málaga e vermute, talvez pudéssemos contratar um músico do bairro para que tocasse um pasodoble, e algum retratista de rua tiraria uma foto que enfeitaria nosso lar, esse que ainda não tínhamos e que por ora seria a casa de minha mãe.

Foi quando, em meio àquela confusão de planos e decisões, Ignacio teve a ideia de eu prestar exames para me tornar funcionária pública como ele. Seu recém-adquirido posto em uma repartição administrativa havia aberto seus olhos para um mundo novo: a administração na República, um ambiente no qual se perfilavam para as mulheres alguns destinos profissionais além do fogão, da lavanderia e das tarefas do lar; no qual o gênero feminino podia abrir caminho ombro a ombro com os homens em igualdade de condições e com a expectativa voltada para os mesmos objetivos. As primeiras mulheres já se sentavam como deputadas no Congresso, foi declarada a igualdade de sexos para a vida pública, reconhecida nossa capacidade jurídica, o direito ao trabalho e o sufrágio universal. Mesmo assim, eu teria preferido mil vezes voltar para a costura, mas Ignacio não levou mais de três dias para me convencer. O velho mundo dos tecidos e dos pespontos havia ruído, e um novo universo abria suas portas diante de nós: seria preciso adaptar-se a ele. O próprio Ignácio poderia se encarregar de minha preparação; ele tinha todos os conteúdos e experiência de sobra na arte de prestar concursos e ser reprovado um monte de vezes sem jamais sucumbir à desesperança. Eu, de minha parte, contribuiria para o projeto com a clara consciência de que teria de pôr as mãos na massa para sustentar o pequeno pelotão que a partir de nosso casamento formaríamos nós dois, minha mãe, meu avô e a prole que viesse. Concordei, então. Uma vez decididos, só nos faltava um elemento: uma máquina de escrever na qual eu pudesse aprender a datilografar e me preparar para a inescusável prova de datilografia. Ignacio passara anos treinando com máquinas alheias, transitando uma via-crúcis de tristes escolas com cheiro de gordura, tinta e suor concentrado: não quis que eu fosse obrigada a repetir aqueles sacrifícios, por isso seu empenho para que tivéssemos nosso próprio equipamento. Atrás dele saímos nas semanas seguintes, como se fosse o grande investimento de nossa vida.

Estudamos todas as opções e fizemos cálculos sem fim. Eu não entendia daquilo, mas achava que algo de formato pequeno e leve seria o mais conveniente para nós. Para Ignacio, o tamanho era indiferente, porém reparava com minuciosidade extrema em preços, prazos e mecanismos. Localizamos todos os pontos de venda em Madri, passamos horas inteiras em frente a suas vitrinas e aprendemos a pronunciar nomes estrangeiros que evocavam geografias distantes e artistas de cinema: Remington, Royal, Underwood. Poderíamos ter nos decidido por uma marca ou outra; tanto fazia acabar comprando em uma casa americana ou em outra alemã, mas a escolhida foi, finalmente, a italiana Hispano-Olivetti da rua Pi y Margall. Como poderíamos saber que com aquele ato tão simples, com o simples fato de avançar dois ou três passos e ultrapassar uma porta, estávamos assinando a sentença de morte de nosso futuro em comum e entortando as linhas do porvir de forma irremediável?

¹ Pastora Imperio foi uma famosa dançarina de flamenco, enquanto Rafael Gómez Ortega, conhecido
como El Gallo, foi um grande toureiro. Existe, em Sevilha, um monumento em homenagem aos dois. Já Jorge Negrete foi um dos mais populares cantores e atores mexicanos. (N.T.)

² Conhecida como La Chelito, Consuelo Portela foi uma controvertida cantora e dançarina cubana. (N.T.)

³ Manuel Azaña Díaz foi o último presidente da Segunda República Espanhola, e também escritor agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1926. (N.T.)

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"O Tempo Entre Costuras"
Autora: María Dueñas
Editora: Planeta
Páginas: 480
Quanto: R$ 31,90 (preço especial, por tempo limitado)
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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