Livraria da Folha

 
10/10/2010 - 12h01

Romance argentino sobre o tempo tem como tema churrasco de domingo; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Eventos em torno de churrasco marcam discussão sobre o tempo
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Os romances de Juan José Saer conservam, em sua maioria, o mesmo grupo de personagens e o mesmo tema, a durabilidade do instante. Em "O grande", o escritor fala de Willi Rincón (de quem já havia retratado a juventude) quando este volta à sua cidade natal depois de viver na Itália e trabalhar como roteirista de cinema.

O personagem quer organizar um churrasco para rever seus amigos. Cada capítulo é um dia da semana que contam a chegada de Rincón e a organização do evento. O livro começa na terça-feira e culmina na segunda, logo após o encontro.

O escritor morreu enquanto concluía o último capítulo, que é composto apenas por uma frase. De acordo com amigos que acompanhavam sua criação, esta seria uma parte curta e destinada a arrematar as sensações que invadiram o protagonista ao longo do encontro.

Saer lecionou no curso de cinema da Universidad Nacional del Litoral, na Argentina. Se auto-exilou e ficou radicado na França desde 1968. É considerado como um dos principais autores argentinos da geração pós-Borges. Tem obra extensa que engloba romances, contos, ensaios e poemas.

Monte sua estante com obras de Juan José Saer

Leia trecho do primeiro capítulo de "O grande".

*

Terça-feira
Sons de água

São, mais ou menos, de uma tarde chuvosa do início de abril, cinco e meia: Nula e Gutiérrez estão atravessando, na diagonal, um campinho aberto, quase quadrangular, fechado no lado de cima, para cuja extremidade se dirigem, cruzando um mato ralo de mimosas atrás do qual, ainda invisível para eles, corre o rio.

O céu, a terra, o ar e a vegetação são cor de cinza, não no tom acerado que o frio lhes dá em maio ou junho, mas com a porosidade morna e esverdeada das primeiras chuvas do outono que não são suficientes, na região, para abolir o verão insistente e desmedido: os dois homens, que caminham, nem lentos nem rápidos, a pouca distância um atrás do outro, ainda vestem trajes leves. Gutiérrez, que vai na frente, está com um casaco impermeável de um amarelo violento e Nula, que vacila preocupado a cada passo para saber onde apoiará o pé, com uma jaqueta vermelha de um material sedoso que no linguajar da família (é um presente de sua mãe), devido a seu aspecto liso e brilhante, chamam brincando de tecido de paraquedas. As duas manchas vivas, vermelha e amarela, que se movem no espaço cinza-esverdeado, parecem uma colagem de papel acetinado sobre o fundo de uma aguada monocromática, da qual o ar seria a superfície mais diluída, e as nuvens, a terra e as árvores, as massas mais concentradas de cinza.

Como veio procurá-lo por razões comerciais-entregar-lhe três caixas de vinho, uma de viognier, duas de cabernet sauvignon, e quatro linguiças artesanais encomendadas na semana anterior-, Nula, que pretendia visitar mais dois clientes aquela tarde, vestiu-se com certo apuro, e além da jaqueta vermelha pôs uma camisa nova, um colete de verão sem mangas, branco, calça recém-passada e mocassins bem engraxados, que justificam a cautela com que avança e que contrasta com a negligência do outro, que, com passo firme e sem parar de falar, vai apoiando, sem prestar nenhuma atenção, no capim saturado de água que bordeja a trilhazinha estreita de terra arenosa ou nas poças esporádicas que a entrecortam, suas botas de borracha enlameadas e ruidosas.

O fundo cinza faz com que o vermelho e o amarelo da indumentária adquiram uma vivacidade incrementada, quase exorbitante, que se para o olhar reforça sua presença no campo vazio, para o conhecimento, por paradoxal que pareça, faz com que percam uma boa dose de realidade. Na pobreza atormentada da paisagem, as duas peças vistosas, talvez pelo que custaram (a amarela, embora mais cara e comprada na Europa, mesmo assim parece mais castigada do que a vermelha), produzem um contraste evidente ou, melhor dizendo, constituem um anacronismo. A presença excessiva das coisas singulares, ao interromper a sucessão monótona do acontecer, em razão mesmo de sua abundância injustificada, acaba, como se sabe, por empobrecê-las.

Calmo, concentrando-se para construir cada frase, Gutiérrez monologa com desdém desapaixonado, esboçando de quando em quando um giro de cabeça que nunca se concretiza inteiramente, na direção do ombro esquerdo, com o qual parece relembrar ao interlocutor que é a ele que se dirige, embora, devido à distância que os separa, ao ar livre e ao deslocamento disseminado pelos sons que ele profere e, principalmente, às pancadas vigorosas das botas contra as poças d'água e as ervas submersas, sem falar na concentração que é forçado a dedicar à proteção de seus mocassins e sua calça, Nula não consegue mais que pescar uma ou outra palavra ou fragmentos de frases, sem no entanto perder o sentido geral, mesmo que esta seja apenas a terceira vez que encontra Gutiérrez, e mesmo que o primeiro encontro não tenha durado mais do que dois ou três minutos: pelo que ouviu durante um bom tempo na vez anterior, com surpresa e curiosidade, no dia em que vendeu as primeiras três caixas de vinho a Gutiérrez, quando o outro monologa, parece fazê-lo sempre sobre o mesmo tema.

Se Nula, imaginando que os relata a um terceiro, pudesse resumir esses monólogos em poucas palavras, elas seriam mais ou menos as seguintes:

"Eles", ou seja os habitantes dos países ricos onde ele viveu por mais de trinta anos, perderam todo contato com a vida e agora se espojam no sensualismo bestial mais mesquinho e, no que diz respeito a consciência moral, dão-se por satisfeitos com o exercício esporádico da beneficência e com a formulação compungida de aforismos edificantes. Chama os ricos de quinta coluna e partido do estrangeiro, e quanto ao resto, quanto às pessoas em geral, diz que, por um carro novo, seriam capazes de vender suas filhas de doze anos a um puteiro de Istambul. Se satisfazem com toda e qualquer mentira contada pelo governo, contanto que não lhes tirem o cartão de crédito nem as privem do supérfluo. Os ricos solucionam tudo comprando, e os pobres, endividando-se. A única coisa que os interessa é convencer-se de que seu próprio modo de vida é o único racional e, consequentemente, no dia seguinte sempre se indignam com os crimes individuais ou coletivos que cometem ou toleram, tratando de justificar com sofismas pedantes de leguleios os atos de covardia que são obrigados a cometer na defesa desenfreada do conforto excessivo em que ficaram aprisionados etc., etc.

A virulência do sentido contrasta com a serenidade do perfil que exibe toda vez que a cabeça gira na direção do ombro esquerdo, com o vigor calmo de seus movimentos e com a neutralidade monocórdia de sua voz, que parece recitar não uma diatribe violenta, mas, amável e paternal, uma série de recomendações práticas dirigidas a um viajante que se dispõe a enfrentar um continente desconhecido. Suas frases não se precipitam nem se enredam devido à fúria, não são entrecortadas por interjeições nem por gritos indignados; antes, vão saindo de seus lábios harmoniosas e espaçadas, matizadas aqui e ali por um galicismo ou um italianismo, e se às vezes se detêm e vacilam durante alguns segundos, é porque, depois de mais de três décadas vivendo no exterior, do porão escuro que no fundo de seu ser armazena o repertório incalculável de palavras que constituem seu idioma materno, uma ou outra, devido à prolongada falta de uso que a mantinha relegada a algum canto, demora a subir pela ramificação intrincada da memória até a ponta da língua que, como a plataforma flexível de um trampolim, haverá de lançá-la para a luz do dia. Seu discurso é ao mesmo tempo irônico e grave, proferido com uma entonação distraída que é difícil saber se é autêntica ou simulada, se o homem de quase sessenta anos que a utiliza expressa por seu intermédio um ódio contido ou uma prática solipsista e um tanto hermética da comicidade.

Quanto à idade, para ser precisos, Nula tem vinte e nove anos e Gutiérrez exatamente o dobro, ou seja, um está entrando na maturidade e o outro, em compensação, em breve começará a abandoná-la de modo definitivo, como todo o resto, aliás. E embora ambos falem de igual para igual e até com certo humor, prescindem do "tu": o mais velho talvez por ter ido para o exterior antes que a adoção generalizada da segunda pessoa entrasse na moda nos anos 70, e Nula porque, como tática comercial, prefere não tratar com intimidade os clientes novos que não conhecia pessoalmente antes de ir visitá-los para tentar vender-lhes um pouco de vinho. O tratamento na terceira pessoa e a diferença de idade não diminuem a curiosidade recíproca que determina que, embora esta seja apenas a terceira vez que se veem e embora ainda não tenham atingido uma verdadeira intimidade, suas relações se situem num plano decididamente extracomercial. A curiosidade que os atrai não tem nada de espontâneo ou de inexplicável: em Gutiérrez, embora este ainda não saiba quais são as razões precisas que motivaram o interesse de Nula, as reações do vendedor de vinhos no dia do primeiro encontro pareceram-lhe pouco usuais num simples comerciante, e a atitude paródica adotada por ele durante a segunda entrevista, quando realizou os gestos e proferiu os discursos consabidos de um vendedor, mais suas alusões discretas ao Problema xxx, 1, de Aristóteles sobre a poesia, o vinho e a melancolia, fizeram-no vislumbrar a possibilidade de uma verdadeira conversa desinteressada, o que se confirmaria imediatamente, concluídas as tratativas comerciais no decorrer da segunda visita.

A primeira não durou mais que dois ou três minutos: escorrendo água, Gutiérrez saiu da piscina e foi a seu encontro cruzando a grama bem aparada com a mesma indiferença para com o lugar onde punha os pés descalços com a qual neste momento, recorda Nula, deixa cair as botas de borracha de encontro às poças que entrecortam o caminhozinho ou as ervas molhadas que o bordejam. Nula trazia uma recomendação de, entre outros, Soldi e Tomatis, e falara com ele por telefone na véspera para anunciar sua visita às onze e meia. Como a visita teve lugar algumas semanas antes, no mês de março, ainda era verão: à luz excessiva e ardente da manhã, Nula o viu avançar até onde estava vindo do retângulo branco da piscina, por sua vez emoldurado por um retângulo largo de lajes brancas onde havia três espreguiçadeiras de madeira branca e lona-verde, de listras vermelhas e brancas verticais, e amarela-; ambos ficaram inscritos no terreno liso e verde limitado ao fundo por um arvoredo espesso e cercados, para além de um bom espaço de solo verde, à esquerda pela casa branca e à direita por um caramanchão com sua respectiva churrasqueira e um quartinho que provavelmente continha ferramentas, bicicletas, a vara de pescar, uma máquina de cortar grama e coisas do gênero. Não sei se foi Gutiérrez, mas a pessoa que mandou construí-la deve ter se inspirado nas casas californianas que, de acordo com os critérios dos seriados da televisão, devem possuir todos aqueles que, por boas ou más artes, venceram na vida, comentou Tomatis no dia em que lhe recomendava Gutiérrez como possível cliente. Na verdade, não era uma casa tão luxuosa assim, mas sem dúvida era o que de mais caro se podia encontrar nos arredores de Rincón, e embora Nula nunca tivesse estado na Califórnia, quando pequeno acompanhara muitos seriados, de modo que, observando o conjunto enquanto Gutiérrez se aproximava escorrendo água, pensou que, como de hábito, Tomatis, talvez por razões puramente retóricas, mais uma vez exagerara.

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"O grande"
Autor: Juan José Saer
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 416
Quanto: R$ 48,45 (preço promocional, por tempo limitado)
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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