Livraria da Folha

 
22/10/2010 - 12h01

Criar HQs longas é uma batalha, mas vale a pena, diz autor de "Memória de Elefante"

FELIPE JORDANI
colaboração para a Livraria da Folha

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Banda Samba Concorrência retratada no livro "Memória de Elefante", de Caeto, com o quadrinista nos vocais
Banda Samba Concorrência retratada no livro "Memória de Elefante", de Caeto, com o quadrinista nos vocais

A vida de Caetano Melo dos Santos, o quadrinista Caeto, é pintada por ele mesmo em tons cheios de álcool e punk rock no recém-lançado "Memória de Elefante" (Quadrinhos na Cia., 2010).

Arquivo Pessoal
Caeto desenha e escreve em registro autobiográfico "Mémória de Elefante"
Caeto desenha e escreve em registro autobiográfico "Mémória de Elefante"
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O quadrinho, com um pé nas HQs underground norte-americanas, fala de momentos fundamentais na vida do autor, como a descoberta da homossexualidade do pai, a posterior batalha do progenitor contra a Aids e a busca de Caeto por estabilidade financeira e um relacionamento duradouro.

O volume foi um trabalho complexo de ser executado, tanto na dimensão emocional como nos mais de quatro anos que levou para ser terminado. "Era a única história que eu tinha pra contar, mas às vezes é difícil contar essa história."

Sozinho em São Paulo, o artista teve que lutar para sobreviver de arte, enquanto morava com a família bagunceira e problemática de um amigo e, posteriormente, ao dividir um lugar com o também quadrinista Ulisses Garcez e Júlio, um cachorro hiperativo e com cara de louco.

Em entrevista, por telefone, à Livraria da Folha, o quadrinista fala sobre o processo de produção de "Memória de Elefante", comenta fatos contados no livro, conta seus novos projetos e resgata sua trajetória nos quadrinhos.

Os trabalhos do artista também podem ser vistos no Cinesesc, em São Paulo, na exposição "Cinemagnético", com painéis e figuras em imãs que convidam o observador a interferir no desenho.

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HQ brasileira flerta com quadrinhos independentes norte-americanos
HQ brasileira flerta com quadrinhos independentes norte-americanos

Livraria da Folha: Como a maior parte dos quadrinistas, você começou a fazer HQs em fanzines. Pode contar um pouco essa trajetória?
Caeto: Em 1998, eu e Ulisses Garcez começamos a fazer o fanzine "Sociedade Radioativa". Tínhamos 18 anos na época. Aí começamos a exercitar. Fazíamos mais como uma brincadeira, era xerocado e tinha cerca de cinquenta cópias. Fomos convidando amigos para participar e, no final das contas, ficamos 10 anos produzindo edições. Depois de uns 5 anos, começamos até a ter uma cobrança de uma galerinha que já lia e achava meio tosqueira. Com a pressão, começamos a melhorar ao longo do tempo. Aprendemos bastante. Quando parei, fui fazer outro fanzine que chamava "Glamour Popular". Teve apenas um número e mostrava o começo do "Memória de Elefante".

Livraria da Folha: Nesse fanzine só tinha você?
Caeto: Não, mas não quis chamar as pessoas com quem já tinha trabalhado. Saí do "Sociedade Radioativa" para dar um tempo. Chamei o Daniel Paiva, do Rio de Janeiro, que faz o "Tarja Preta" e minha mulher na época, a Luana. A ideia do fanzine era criar histórias autobiográficas.

Livraria da Folha: E como veio o convite para fazer "Memória de Elefante" ?
Caeto: Na verdade eu é que fui na editora. Conversei com o Rafael Coutinho [autor de "Cachalote" ], soube que a Companhia das Letras ia abrir um selo de quadrinhos e, como estava com o roteiro pronto e algumas páginas desenhadas, levei e eles curtiram.

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Livraria da Folha: Que efeito trouxe para você colocar memórias e sentimentos no papel e transformar em uma narrativa gráfica? Pode-se dizer que foi algo como um divã?
Caeto: Talvez, não sei. Era a única história que eu tinha pra contar, mas às vezes é difícil contá-la.

Livraria da Folha: Você acaba repensando varias coisas, não é?
Caeto: Sim, foi como uma reconstituição porque eu fotografei todas as cenas, reconstruí elas, parecia aquelas reconstituições de um crime, sabe? (Risos.) Foi difícil escrever esse livro.

Livraria da Folha: Ah, você remontou as cenas?
Caeto: Em quase todos os momentos do livro eu fotografei e encenei os personagens. A Luana e o Ulisses [Garcez] me ajudaram a tirar as fotos. Em alguns momentos a Luana interpretou ela mesma, em outros, eu que a interpretei. No restante, interpretei todo mundo. Usei as fotos como uma referência para fazer os desenhos.

Livraria da Folha: Como foi o processo de reunião das memórias para montar o livro?
Caeto: Não sabia como fazer. Sempre tinha trabalhado o quadrinho sem roteiro escrito. Fiz um para levar o projeto até uma editora e me dei conta de que ganhava muito mais tempo tendo um roteiro pronto. Pensei que ia escrevê-lo em duas semanas e demorei seis meses. Aprendi fazendo. Minha história tem duzentas e poucas páginas. Desde o momento em que tive a ideia de fazer o livro, até ele ficar pronto, demoraram quatro anos e meio. No começo, sabia o que teria até o meio do livro, mas não o que aconteceria daquele momento pra frente.

Livraria da Folha: Na introdução do livro você diz que sua mãe não concordou com alguns dos pontos de vista que você colocou nele. Pode dizer em qual momento teve uma discordância mais forte?
Caeto: Algumas das histórias do livro são como eu as imagino a partir do que me contaram. O que fica na cabeça de um e de outro é uma coisa diferente. Tem partes em que me refiro às coisas que meu pai falava. Digo o que meu pai me contou e como imagino isso, sem dar a versão da minha mãe. Daí, para ela bateu. Ela me falou "olha, não foi bem assim", mas também não me pediu para mudar o livro.

Livraria da Folha: Quais são suas referências na criação do Memória de Elefante? Há algo de Harvey Pekar e Robert Crumb?
Caeto: Tudo o que leio vira referência. Dá para aproveitar muita coisa do que já foi feito, de como contar, de como usar uma cena. E quando você consegue contar alguma coisa nova, que ninguém tenha feito, fica feliz. Conto minha história usando as ferramentas que tenho, que aprendi lendo outros caras e fazendo quadrinhos. A gente aprende vendo os outros. Tudo é referência, o Harvey Pekar, o Crumb, mas não me identifico muito com os dois no geral. Eles fazem histórias mais curtas, é diferente. Cada história que está no meu livro poderia até ser uma história curta, mas eu transformo tudo em uma sequência só.

Eles fizeram mais quadrinho para revista, em uma época em que tinham mais delas. Quis fazer quadrinhos para sair em revista, que era a forma que me imaginava fazendo HQs quando comecei, mas vi que não tinha como publicar em revista. Fui fazer essa história mais longa porque vi que o mercado só estava publicando assim, todas as editoras queriam isso. E no final das contas, gostei de fazer. Funciono fazendo histórias mais compridas. Pretendo fazer mais delas, mas não sei se eu quero fazer isso a vida inteira, dá muito trabalho, demora muito tempo.

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Livraria da Folha: E você já tem projeto?
Caeto: Tenho duas ideias pra fazer em livro. Uma é autobiográfica e a outra não. A que está mais madura é a autobiográfica, já sei como fazer, já vivi tudo o que penso em colocar. Como fiz o primeiro, imagino que vai ser mais fácil. Agora tenho experiência, sei onde posso ganhar velocidade. Quando comecei, tinha muita coisa para aprender, até no desenho. Nos quatro anos enquanto fiz esse livro, minha cabeça mudou muito.

Livraria da Folha: A ideia é seguir o mesmo ritmo do "Memória de Elefante" ?
Caeto: Uso bastante texto no meu livro atual. Talvez no próximo tente fazer mais sequências só com desenhos, para testar isso e misturar os dois.

Livraria da Folha: Você chegou a comentar a migração do quadrinho brasileiro para as livrarias. O que acha disso?
Caeto: Acho bom. Gostaria que tivessem revistas em bancas também, mas por enquanto não é hora. Talvez quando uma galera que vem aí, como eu e o Rafa [Coutinho], conseguir conquistar leitores, dê para voltar para as bancas. Mas por enquanto está bom. Trabalhar com histórias grandes é um desafio para todo mundo que está fazendo, porque é muito trabalhoso. Você tem que parar sua vida, não é todo mundo que consegue trampos toda hora para se manter. É uma batalha, mas vale a pena.

Livraria da Folha: No livro, a questão de pagar o aluguel está sempre latente. Com o livro publicado e as exposições que tem feito, você tem tido menos preocupação?
Caeto: O livro acabou de chegar nas livrarias, mas ter feito tem me ajudado a ganhar mais trabalhos. Enquanto estive fazendo ele, trabalhei muito com o Sesc. Eles nem sabiam que eu estava fazendo o livro. Meu trabalho tem sido fazer ilustrações, painéis e oficinas. Dou, há um ano e pouco, uma oficina de ilustração em imã de geladeira no projeto da prefeitura "Ônibus-biblioteca", que circula pelas periferias de São Paulo.

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"Memória de Elefante"
Autor: Caeto
Editora: Quadrinhos na Cia.
Páginas: 232
Quanto: R$ 30 (em promoção, por tempo limitado)
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

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Exposição Cinemagnético
Quando: 23 de julho a 31 de dezembro. Segunda a domingo, das 14h às 21h.
Onde: Cinesesc - Rua Augusta, 2075. Cerqueira César. (Próximo à avenida Paulista.)
Informações: www.sescsp.org.br
Ingresso: Grátis.

 
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