Livraria da Folha

 
30/10/2010 - 18h01

Pedofilia e corrupção deflagram decadência social em ficção de Paul Bowles

da Livraria da Folha

Siga a Livraria da Folha no Twitter
Siga a Livraria da Folha no Twitter
Divulgação
Romance de Paul Bowles marca transição social no Tanger
Romance de Paul Bowles marca transição social no Tanger

Escritor americano radicado no Marrocos, Paul Bowles (1910-1999) explora a conversão de Tanger --até então uma Zona Internacional-- em uma cidade completamente marroquina, junto aos choques sociais e culturais trazidos por essa transição, no romance "Que Venha a Tempestade" (Alfaguara, 2010).

O volume conta a história de um americano que foi à região trabalhar na agência de turismo de um amigo. Lá, ele topa com uma aristocracia decadente, transações financeiras suspeitas e uma rede crimes.

Em suas tentativas de decifrar a cultura local, não sabe definir a hora de parar. Termina por entrar em contato pleno com ela e se envolver, aos poucos, em um submundo de drogas, prostituição infantil, violência e turistas que pagam o que precisarem para terem seus momentos de prazer ilícito.

O título do livro foi tirado de uma fala da peça Macbeth, de Shakespeare. Um pouco antes de ser assassinado, o personagem Banquo diz "Vai ser uma noite chuvosa" e o primeiro assassino responde "Deixe ela vir" (em livre tradução). O nome original do romance reproduz a frase exata, "Let it come down".

Além de escritor e poeta, Bowles foi um viajante inveterado e compositor musical. Sua obra mais famosa, "O Céu que nos Protege", foi adaptada às grandes telas pelo cineasta italiano Bernardo Bertolucci.

Monte sua estante com livros de Paul Bowles

Leia trecho de "Que venha a Tempestade".

*

Tinha um mordomo suíço e um lacaio italiano, mas quando havia convidados americanos para jantar ela deixava o velho Ali servir a mesa, porque ele possuía um magnífico figurino mourisco; embora ele não fosse muito competente, ela achava que sua aparência impressionava mais que o serviço superior que os dois europeus eram capazes de fornecer. A dificuldade era que ambos, mordomo e lacaio, reprovavam tão severamente esse arranjo que, a menos que ela entrasse na cozinha no último minuto e repetisse suas ordens, eles sempre achavam algum pretexto para impedir que o velho Ali servisse a mesa, de forma que quando ela levantava os olhos do prato esperando ver os brocados brilhantes e a faixa dourada do palácio do sultão Moulay Hafid, via-se olhando, em vez disso, para o apagado uniforme preto de Hugo ou de Mario. O rosto deles estaria impassível; ela nunca sabia o que tinha acontecido. Havia uma chance de isso ocorrer esta noite, a menos que ela descesse agora e deixasse claro que Ali devia servir a mesa. Ela se levantou, enfiou uma pulseira pesada na mão esquerda e atravessou o minúsculo corredor que ligava seu quarto ao restante da casa. Alguém havia deixado uma janela aberta no extremo do salão superior e várias velas à frente da grande tapeçaria haviam se apagado. Ela não suportava o anacronismo de ter eletricidade em salas onde havia tapeçarias penduradas.

Tocou uma campainha e esperou até uma camareira ofegante aparecer, então apontou a janela e as velas com um dedo rígido. - Mire - disse, reprovadora, e desceu a escada. Naquele momento, veio de fora um ruído de motor. Ela desceu depressa o resto da escada, atravessou o hall praticamente correndo, desapareceu na cozinha e, quando saiu, Hugo estava recolhendo os casacos dos convidados. Caminhou para os dois homens como uma rainha.

- Jack, querido. Que bondade sua ter vindo. E com esse tempo horrível.

- Gentileza sua nos receber, Daisy, este é o senhor Dyar. A marquesa de Valverde.

Dyar olhou para ela e viu uma mulher de quarenta anos bem-conservada, com uma cabeleira de cachos negros, olhos de cor azul-royal e um vestido preto decotado, dentro do qual devia ter sido um pouco doloroso se espremer.

- Que bom conhecê-lo, senhor Dyar. Acho que temos uma lareira acesa na saleta. Só Deus sabe. Vamos entrar e ver.

Estão molhados? - Ela tocou a manga de Dyar. - Não? Ótimo.

Venha comigo. Jack, seja o barman. Quero o drinque mais poderoso que você souber preparar.

Sentaram-se diante de um fogo devorador. Daisy quis que Wilcox preparasse sidecars. No primeiro gole, Dyar se deu conta de como estava com fome; deu uma olhada clandestina no relógio. Eram nove e quarenta. Observando Daisy, pensou que ela era a mulher mais frívola que já conhecera. Mas ficou impressionado com a casa. Hugo entrou. "Agora o jantar", Dyar pensou. Era um telefonema para madame la Marquise. - Me sirva mais um, querido, e deixe eu levar comigo como consolação - ela disse a Wilcox.

Quando a marquesa saiu, Wilcox virou-se para Dyar.

- É uma garota e tanto - ele disse, sacudindo a cabeça.

- É, sim - Dyar respondeu, sem convicção, e acrescentou:

- Não é um pouquinho passada para você?

Wilcox olhou para ele indignado e baixou a voz. - Do que você está falando, rapaz? O marido dela está aqui na casa.

Eu disse que ela é uma companhia divertida. O que foi que você pensou? - A chegada de Mario para colocar mais lenha na fogueira interrompeu qualquer coisa que fosse acontecer em seguida.

- Escute esse vento - disse Wilcox, reclinando com seu drinque.

Dyar sabia que ele tinha ficado chateado e perguntou-se por quê. "Está ficando muito melindroso com a idade", disse para si mesmo, olhando em torno da vasta sala. Mario saiu. Wilcox inclinou-se para ele outra vez e, ainda em voz baixa, disse:

- Daisy e Luis são praticamente meus melhores amigos aqui.

- Ouviram-se vozes no hall. Daisy entrou com um homem moreno e elegante que parecia ter úlcera de estômago. - Luis!

- gritou Wilcox, pondo-se de pé num pulo. Dyar foi apresentado, e os quatro se sentaram, Daisy ao lado de Dyar. "Isto não pode demorar", pensou. "São quase dez horas." Sentia o estômago completamente côncavo.

Tomaram mais uma rodada de drinques. Wilcox e o marquês começaram a discutir as transações de um banqueiro local que tinha se metido em dificuldades e partira de repente para

Lisboa, para não mais voltar. Dyar ouviu por um momento.

- Desculpe, não ouvi - ele disse a Daisy; ela estava falando com ele.

- Eu disse: gostou da nossa pequena Zona

Internacional?

- Bom, ainda não vi nada. Mas... - ele olhou em torno da sala, apreciando - daqui parece bem. - E sorriu, pouco à vontade.

A voz dela assumiu um tom ligeiramente maternal.

- Claro. Acabou de chegar hoje, não foi? Meu caro, tem tanta coisa pela frente! Tanta coisa pela frente! Nem imagina. Mas vai adorar, garanto. É uma loucura, claro. Uma completa, absoluta loucura. Só peço a Deus que continue assim.

- A senhora gosta muito daqui? - Ele estava começando a sentir os drinques.

- Adoro - disse ela, curvando-se para ele. - Adoro loucamente este lugar.

Ele pousou cuidadosamente o copo vazio na mesa, ao lado da coqueteleira.

Da porta, Hugo anunciou o jantar.

- Jack, mais uma gotinha para todos. - Ela estendeu o copo e recebeu o que restava. - Você deu tudo para mim, seu monstro. Eu não queria tudo. - Levantou-se e, levando o copo com ela, conduziu os homens para a sala de jantar, onde Mario estava abrindo uma garrafa de champanhe.

"Vou ficar bêbado", Dyar pensou, de repente apavorado de, por algum lapso de sua etiqueta à mesa, chamar atenção para si.

Lentamente, avançaram por uma refeição que prometia ser interminável.

Embutido na parede diante dele, um retângulo verde nos lambris escuros era um aquário; as luzes ocultas iluminavam pedras, conchas e complexas plantas marinhas. Dyar se viu observando enquanto comia. Daisy falava sem parar. A certo ponto, quando ela parou, ele disse: - Não vejo nenhum peixe ali.

- Sibas - disse o marquês. - Só temos sibas. - E, como Dyar parecia não entender: - Sabe: pequenos polvos.

Está vendo? Tem uma ali à esquerda, presa na pedra. - Ele apontou. Dyar viu então as pálidas projeções carnosas que eram seus tentáculos.

- São bem mais bonitinhos que peixes dourados - disse Daisy, mas de um jeito que Dyar suspeitou que os abominava.

Ele nunca havia conhecido ninguém como ela; dava a impressão de se manter sem envolvimento com qualquer coisa que dissesse ou fizesse. Era como se estivessem num jogo complicado, cujas regras ela própria tivesse inventado.

*

"Que venha a Tempestade"
Autores: Paul Bowles
Editora: Alfaguara
Páginas: 304
Quanto: R$ 36,90 (preço promocional, por tempo limitado)
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
Voltar ao topo da página