Livraria da Folha

 
26/01/2009 - 21h59

LIVRARIA: Livro conta história real de jovem que sobreviveu ao genocídio de Ruanda; leia trecho

da Folha Online

Immaculée Ilibagiza era uma jovem ruandesa feliz e esperançosa. Adorava seu país, tinha uma família unida e respeitada e gostava de estudar. Praticamente não sabia dos conflitos étnicos ancestrais entre os tútsis e os hútus, principais etnias de Ruanda.

Divulgação
Immaculée Ilibagiza que ficou confinada para fugir dos conflitos de seu país
Immaculée ficou meses confinada para fugir dos conflitos de seu país

Em 1994, sua vida mudou completamente. Com a morte do então presidente Juvenal Habyarimana, a tensão entre tútsis e hútus descambou para um conflito generalizado, que provocou um dos eventos mais horrendos da história de Ruanda. Naquele ano, em apenas cem dias, mais de um milhão de ruandeses foram barbaramente assassinados. Os jovens hútus, que antes eram vizinhos, colegas de turma e até amigos de Immaculée Ilibagiza, tomaram o poder e se transformaram em caçadores, treinados para matar os inimigos "como baratas", violar mulheres, esquartejar crianças e torturar todos os rivais que encontrassem pela frente.

O livro "Sobrevivi Para Contar", da editora Fontanar, relata os horrores destes conflitos, além de trazer uma história de fé e esperança. Neste título, a jovem africana Immaculée Ilibagiza revela em uma narrativa dramática como sobreviveu ao massacre e conta como foram os três meses em que passou escondida em um banheiro da casa de um pastor com mais sete mulheres ouvindo as vozes dos homens que queriam matá-la e os gritos das vítimas.

Neste período em que ficou confinada, Imaculée viveu em condições extremamente precárias: não podia falar em voz alta, recebia pouca comida (emagreceu cerca de 10 kg), não podia tomar banho, adoeceu duas vezes e não tinha remédios. As notícias que recebia também não eram nada agradáveis. Volta e meia ela ouvia relatos impressionantes de crueldade, violência e abuso contra homens, mulheres, adolescentes e até crianças, como este:

"Eles agarraram uma mãe e todos se aproveitaram dela. Ela implorava que tirassem seus filhos dali, mas eles seguraram o marido e seus três filhinhos, ameaçando-os com facões encostados à garganta. Obrigaram todos eles a assistirem enquanto oito ou nove deles estupraram a mulher. No final, mataram toda a família".

Para superar as dificuldades, em todos os momentos, Imaculée rezou. Com uma Bíblia em mãos, ela orava por seus parentes, amigos e pelo seu povo, depositando toda a sua fé em Deus. E em muitos momentos do livro ela credita sua sobrevivência a Deus.

Immaculée Ilibagiza conseguiu emigrar para os Estados Unidos e obter um emprego na ONU. Com a ajuda do premiado jornalista e escritor Steve Erwin, ela escreveu "Sobrevivi Para Contar". Atualmente ela mantém uma instituição de caridade que ajuda as crianças da África.

Leia abaixo um trecho do primeiro capítulo do livro.

*

A Eterna Primavera

Nasci no paraíso.

Pelo menos era assim que me sentia a respeito da minha terra natal durante meus primeiros anos de vida.

Ruanda é um país pequenino, engastado como uma jóia na África Central. Sua beleza é tanta que é impossível não ver a mão de Deus no ondular de suas luxuriantes colinas, montanhas envoltas em névoa, vales verdejantes e lagos que cintilam. A brisa suave que desce das montanhas, por entre florestas de pinheiros e cedros, traz consigo o doce perfume dos lírios e dos crisântemos. E o clima é tão ameno o ano todo que os alemães, chegados no final da década de 1830, chamavam-na "terra da eterna primavera".

Durante a infância, jamais me falaram sobre a existência das correntes do mal que um dia dariam origem ao holocausto que inundou meu país num banho de sangue. A menina que eu era só conhecia do mundo a encantadora paisagem ao seu redor, a gentileza dos vizinhos e o amor profundo de meus pais e irmãos. Em nossa casa, racismo e preconceito eram totalmente desconhecidos. Eu não tinha consciência de que as pessoas pertenciam a tribos e raças diferentes e, até entrar para a escola, jamais havia escutado palavras como tútsi ou hútu.

Em minha aldeia, crianças caminhavam mais de 12 quilômetros, por trechos desertos de estrada, para ir e voltar da escola, mas seus pais não se preocupavam com a possibilidade de serem raptadas ou de alguma forma maltratadas. Meu maior medo nessa época era o de ficar sozinha no escuro - a não ser por isso, eu era uma menininha muito feliz, em uma família feliz, habitante do que me parecia ser uma aldeia feliz, onde as pessoas se respeitavam e eram amigas umas das outras.

Nasci em Kibuye, uma província de Ruanda Ocidental, na aldeia de Mataba. Nossa casa se erguia sobre o topo de uma colina, com vista para o lago Kivu, que parecia estender- se até o infinito diante de nós. Em manhãs claras eu podia avistar as montanhas na outra margem do lago, no vizinho Zaire, hoje República Democrática do Congo. Entre as cenas indelevelmente gravadas em minha memória está a arriscada descida da encosta íngreme que ia da nossa casa até o lago. Assim que os raios do sol dissipavam os derradeiros vestígios da neblina da madrugada, eu ia nadar com meu pai e irmãos. A temperatura da água era cálida, o ar que tocava nossa pele era fresco, e avistar nossa casa, muito acima da margem do lago, sempre me emocionava.

O caminho de volta era uma verdadeira aventura, porque a colina era muito íngreme, e a terra sob nossos pés, instável e traiçoeira. Eu muitas vezes escorregava e sentia medo de rolar ladeira abaixo até cair no lago. Meu pai sempre percebia quando eu estava com medo e me carregava em seus braços até em casa. Era um homem grande e forte, e, aconchegada naqueles braços vigorosos, eu me sentia amada e protegida. Causava-me grande emoção ser levada assim, de forma tão carinhosa, já que meu pai era antiquadamente reservado e raramente demonstrava emoção ou falava de seu amor por mim ou por meus irmãos - embora tivéssemos certeza desse amor.

Ao chegarmos da natação, encontrávamos minha linda mãe ocupada na cozinha, preparando o prato quente de arroz com feijão que costumava nos servir diariamente antes de nos despachar para a escola. Sua energia jamais cessava de me surpreender. Mamãe era sempre a primeira a acordar e a última a se deitar - levantava-se muito antes de todos para conferir se a casa estava em ordem, nossas roupas estendidas, nossos livros e lições separados, e os papéis do trabalho de papai organizados. Confeccionava todas as nossas roupas, cortava nossos cabelos e enfeitava a casa com objetos feitos à mão por ela mesma.

Os feijões servidos em nosso desjejum eram cultivados em nossas terras, que mamãe supervisionava todas as manhãs enquanto ainda estávamos dormindo. Inspecionava a lavoura, distribuía as ferramentas aos trabalhadores temporários e verificava se nossas vacas e demais animais estavam alimentados e com os bebedouros cheios. Então, findas as tarefas matinais e tendo nos mandado para a escola, se encaminhava para a escola primária local onde trabalhava como professora em tempo integral.

Meus pais eram ambos professores e acreditavam firmemente em uma boa educação como única defesa contra a pobreza e a fome. Apesar de ser um dos menores países da África, Ruanda - que tem aproximadamente a mesma extensão que o estado brasileiro de Alagoas - é um dos mais densamente povoados do continente e um dos mais pobres do mundo. Papai e mamãe foram os primeiros de suas famílias a obter um diploma de segundo grau e estavam decididos a fazer com que seus filhos fossem mais além. Papai ensinava pelo exemplo, trabalhou duro e estudou muito a vida toda. Recebeu muitas honrarias e promoções em sua carreira e ascendeu continuamente os degraus que o levaram de professor primário até o posto de diretor da escola secundária e, por fim, administrador-chefe de todas as escolas católicas em nosso distrito.

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"Sobrevivi Para Contar"
Autores: Immaculée Ilibagiza com Steve Erwin
Editora: Fontanar
Páginas: 224
Quanto: R$ 33,90
Onde comprar: Nas principais livrarias, pelo telefone 0800-140090 e na Livraria da Folha

 
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