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18/01/2009 - 18h55

Agência americana cooptou intelectuais na Guerra Fria; leia trecho

da Folha Online

Na batalha por corações e mentes durante a chamada "Guerra Fria da Cultura", nos anos 40, 50 e 60, a CIA (agência de inteligência americana) cortejou a intelligentsia comunista e colocou alguns dos maiores expoentes do mundo ocidental (assim como importantes publicações) na sua folha de pagamentos.

Fez isso através do "Congresso pela Liberdade Cultural", órgão que financiava artistas e intelectuais com o objetivo de mantê-los distantes da ideologia comunista e aproximá-los do "american way of life".

O livro "Quem Pagou a Conta? - A CIA na Guerra Fria da Cultura" (Record) revela as ações subterrâneas da CIA para cooptação de artistas e intelectuais em vários pontos do mundo, oferecendo ao leitor uma nova visão sobre como o poderio econômico pode influenciar a produção cultural.

Leia abaixo breve trecho do livro que descreve sinteticamente o esquema de cooptação dos artistas e narra o episódio da visita -- patrocinada pela CIA-- do poeta americano Robert Lowell ao Brasil. Ele foi um dos muitos artistas e intelectuais cooptados pela CIA. Um dos "presentes" que ganhou foi uma viagem ao Brasil para visitar sua amiga Elizabeth Bishop, que morava no Rio de Janeiro.

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Trecho do capítulo "César na Argentina", do livro "Quem Pagou a Conta? - A CIA na Guerra Fria da Cultura"

Em 11 de maio de 1962, Robert Lowell tornou a ser convidado à Casa Branca, dessa feita para um jantar em homenagem a André Malraux, na época ministro da Cultura da França. Na recepção, Kennedy fez uma brincadeira, dizendo que a Casa Branca vinha-se tornando "quase um café para intelectuais". Mas Lowell era cético e, depois do jantar na Casa Branca, escreveu: "E aí, na manhã seguinte, lemos que a Sétima Frota fora mandada para algum lugar na Ásia, e tivemos a curiosa sensação de que o artista era realmente sem importância, de que aquilo fora uma espécie de decoração de vitrine, e de que o governo de verdade estava noutro lugar, e de que algo muito mais próximo do Pentágono é que realmente dirigia o país (...). Sinto que nós, os intelectuais, desempenhamos um papel muito pomposo e frívolo - deveríamos ser vitrines, não a decoração das vitrines."

Divulgação
Quem Pagou a Conta? A CIA na Guerra Fria da Cultura Frances Stonor Saunders
CIA comprou artistas e intelectuais

Embora raras vezes se expressasse em termos francos, havia uma tendência crescente, entre alguns intelectuais, a ver com desconfiança a filantropia do governo. Mas a questão da corrupção não preocupava indevidamente a CIA, sob cujos auspícios era distribuída grande parte dessas doações. "Há momentos em que é como se a gente fosse seduzida", disse Donald Jameson.

"Acho que quase todos os que ocupavam uma posição de destaque no Congresso [pela Liberdade Cultural] tinham consciência de que, de um modo ou de outro, o dinheiro vinha de algum lugar, e, se a gente olhasse em volta, só havia uma escolha lógica, em última instância. E o sujeito tomava uma decisão. Na verdade, a principal preocupação, para a maioria dos estudiosos e escritores, era como ser pago para fazer o que queria fazer. Creio que, de modo geral, eles aceitariam dinheiro de qualquer fonte em que pudessem obtê-lo. E era por isso que o Congresso e outras organizações similares - no leste e no oeste - eram vistos como uma espécie de grandes tetas em que qualquer um poderia mamar, se precisasse, e depois ir cuidar de suas coisas. Essa foi realmente uma das grandes razões, penso eu, do sucesso do Congresso: ele permitia que o sujeito fosse um intelectual sensível e tivesse o que comer. E as únicas outras pessoas que faziam isso eram, realmente, os comunistas."

Gostassem ou não, soubessem ou não, dezenas de intelectuais do Ocidente ficaram então ligados à CIA pelo "cordão umbilical do ouro". Se Crossman pudera escrever, em sua introdução de O Deus que falhou, que, "Para o intelectual, o conforto material é relativamente sem importância, o que mais lhe importa é a liberdade espiritual", muitos intelectuais pareceram incapazes, nessa ocasião, de resistir a dar uma volta no trem da alegria.

Algumas conferências do Congresso "eram sobretudo um espetáculo, e às vezes, seus freqüentadores faziam lembrar as altas rodas que circulavam entre St. Tropez, no verão, e St. Moritz ou Gstaad, no inverno", escreveu o sovietólogo Walter Laqueur, também ele freqüentador habitual dessas conferências. "Havia um esnobismo, particularmente na Grã-Bretanha, uma aparência externa de refinamento, espirituosidade e sofisticação, combinada com a falta de substância - conversa de mesa do corpo docente e mexericos do Café Royal." "Essas excursões elegantes e dispendiosas deviam dar grande prazer às pessoas que as faziam à custa do governo. Porém havia mais do que prazer, porque elas sentiam o gosto do poder", disse Jason Epstein.

"Quando iam a Nova York, esses intelectuais visitantes eram convidados para grandes recepções, com comida caríssima por toda parte, criados e sabe-se lá mais o quê, muito mais do que eles mesmos tinham recursos para se proporcionar. Quem não gostaria de estar numa situação dessas, na qual o sujeito é politicamente correto e, ao mesmo tempo, bem recompensado pela postura que adotou? E foi isso que deu ensejo à corrupção que se seguiu."

Os que não recebiam diárias de ajuda de custo em Nova York podiam tirar proveito da Villa Serbelloni, em Bellagio, no norte da Itália. Equilibrada sobre um promontório entre os lagos setentrionais de Lecco e Como, a mansão fora legada à Fundação Rockefeller pela Principessa della Torre e Tasso (née Ella Walker). A fundação colocou a residência à disposição do Congresso, como um retiro informal para seus membros mais ilustres - uma espécie de refeitório dos oficiais em que os que combatiam na linha de frente do Kulturkampf podiam recuperar as forças. Os escritores, pintores e músicos que ali passavam temporadas eram recebidos por um motorista particular de uniforme azul, que trazia na lapela a pequena insígnia "V.S.". Os hóspedes não recebiam uma "verba" como tal, mas a hospedagem era gratuita, assim como todas as despesas de viagem, as refeições e o uso da quadra de tênis e da piscina. Escrevendo no elegante papel timbrado da Villa, Hannah Arendt disse a Mary McCarthy: "A sensação é de estar subitamente hospedada numa espécie de Versalhes. O lugar tem 53 criados, incluindo os homens que cuidam dos jardins (...). Os funcionários são chefiados por uma espécie de maître que data dos tempos da 'principessa' e tem as feições e os modos de um fidalgo da Florença quatrocentista."

McCarthy respondeu ter descoberto que esse meio luxuoso não era propício ao trabalho árduo. A villa foi também o aprazível local do seminário do Congresso de junho de 1965, sobre o tema "As condições da ordem mundial", realizado em associação com a revista Daedalus e com a Academia Norte-Americana de Artes e Ciências.

Para uns poucos eleitos, havia também a possibilidade de desfrutar da companhia de Hansi Lambert (a amiga milionária do Congresso que também servia de anfitriã em sua residência de inverno em Gstaad) ou de Junkie Fleischmann, para cruzeiros no Mediterrâneo em seus iates. Os Spender foram hóspedes de ambos. Quando Stephen contou a Ernst Robert Curtius sobre seu cruzeiro de Corfu a Ischia, em agosto de 1955, o alemão disse, simplesmente: "Você era comunista, e agora passeia em iates no Mediterrâneo, ja, ja." Para os que preferiam a terra firme, o Congresso providenciava acomodações nos estabelecimentos mais prestigiados da Europa. Em Londres, havia o Connaught; em Roma, o Inghilterra; e em Cap Ferrat, o Grand Hotel.

Em Paris, Irving Brown continuava a receber em sua residência fora de casa - a suíte presidencial do Hotel Baltimore. A despeito de suas reservas quanto a aceitar o patrocínio do governo, Robert Lowell conseguiu reprimi-las em favor de uma passagem de primeira classe para a América do Sul, oferecida pelo Congresso pela Liberdade Cultural em maio de 1962. Durante vários anos, sua grande amiga Elizabeth Bishop, que morava no Rio de Janeiro, havia insistido em que ele fosse visitá-la; nesse momento, a oferta da verba do Congresso levou-o à ação. Bishop ficou encantada. O pessoal do Departamento de Estado no Brasil "comporta-se de uma forma muito ESTÚPIDA e grosseira", escreveu ela, e "costuma mandar romancistas e professores muito insignificantes e chatos".9 A visita de Lowell prometia ser muito mais interessante.

Fazia anos que o Congresso vinha tentando ampliar sua influência na América do Sul. Sua revista na região era Cuadernos, editada por Julian Gorkin. Gorkin havia fundado o Partido Comunista de Valência em 1921 e trabalhara numa rede clandestina do Komintern, onde havia aprendido, entre outras coisas, a falsificar passaportes. Ao romper com Moscou em 1929, alegara que os soviéticos tinham tentado convencê-lo a se tornar assassino. Quase no fim da Guerra Civil espanhola, ele fugira para o México, pousada tradicional de bolcheviques foragidos, e ali tinha sobrevivido a cinco tentativas de homicídio, uma das quais lhe deixara um buraco no crânio. Como editor de Cuadernos, sua tarefa era tentar penetrar na "grande desconfiança" da América Latina, onde a única maneira de exercer um impacto significativo, brincava ele, era atacar constantemente os Estados Unidos e entoar louvores a Sartre ou Pablo Neruda.

Gorkin não tivera essa tarefa facilitada pelo golpe de Estado da Guatemala, respaldado pela CIA (1953), nem pela Revolução Cubana de 1958. Na esteira da intervenção norte-americana nessas áreas, esse fora um período de "euforia para os comunistas latino-americanos e seus aliados", mas Gorkin havia enfrentado as adversidades e dado ao Congresso um nicho importante num ambiente hostil. Lowell chegou ao Rio de Janeiro com sua mulher, Elizabeth Hardwick, e com a filhinha de cinco anos do casal, Harriet, na primeira semana de junho de 1962. Lá estava Nabokov para recebê-los no aeroporto, em companhia de Elizabeth Bishop. As coisas correram muito bem até a família de Lowell embarcar num navio com destino a Nova York, no dia 1º de setembro, enquanto ele permanecia para continuar sua viagem pelo sul, indo ao Paraguai e à Argentina. Quem o acompanhou foi Keith Botsford, o "representante ambulante permanente" do Congresso na América do Sul, que fora "infiltrado na viagem" por John Hunt, a fim de ficar de olho no poeta (no linguajar da CIA, Botsford era a "guia da coleira" de Lowell).

Foi em Buenos Aires que os problemas começaram. Lowell jogou fora os comprimidos receitados para sua psicose maníaco-depressiva, tomou uma série de martínis duplos numa recepção no palácio presidencial e anunciou que era "o César da Argentina", e que Botsford era seu "lugar-tenente". Depois de fazer um discurso sobre Hitler, no qual enalteceu o Führer e a ideologia do super-homem, Lowell tirou toda a roupa e montou numa estátua eqüestre numa das praças principais da cidade. Depois de prosseguir nessa linha por vários dias, ele acabou sendo dominado, por ordem de Botsford, enfiado numa camisa-de-força e levado para a Clínica Bethlehem, onde teve as pernas e braços atados com tiras de couro, enquanto lhe injetavam vastas doses de Torazina.

"Quem Pagou a Conta? - A CIA na Guerra Fria da Cultura"
Autor: Frances Stonor Saunders
Editora: Record
Páginas: 560
Quanto: R$ 68,00
Onde comprar: pelo telefone 0800 140090 ou no site da Livraria da Folha

 
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