da Folha Online
Um dos lançamentos mais elogiados no ano de sua publicação original, nos Estados Unidos, "O Resto É Ruído: Escutando o Século 20" (Companhia das Letras, 2009) chegou ao Brasil já com status de clássico indispensável para se entender a música erudita do período. Tanto que a obra rendeu ao seu autor, o renomado crítico de música Alex Ross, prêmios importantes como o National Book Critics Circle Award de 2007 e o Guardian First Book Award de 2008, além de uma indicação ao Pulitzer.
David Michalek/Reprodução |
Crítico musical e escritor norte-americano, Alex Ross participará da 7ª edição da Flip |
É com estas credenciais que o escritor, que já assinou colunas no jornal "The New York Times" e atualmente o faz pela revista "The New Yorker", chega à Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) para a mesa "O Dissonante Século 20" (dia 4, às 10 horas), onde deve entrar em detalhes sobre sua premiada obra e, claro, sobre a música erudita do período.
Em uma narrativa permeada por referências históricas e intertextualidades literárias, o autor se propõe a investigar de que maneira acontecimentos como as duas guerras mundiais e a Revolução Russa ajudaram a forjar aquilo que hoje conhecemos por música contemporânea. O autor acompanha de perto, por exemplo, figuras emblemáticas deste tempo e desta arte, como os compositores Mahler, Stravinsky e Strauss, e os personagens históricos Hitler e Stálin.
Talvez pelo pouco distanciamento que o tempo proporciona, talvez pela própria fragmentação de conceitos e estilos que caracteriza a época, o período que se sucede à Segunda Guerra Mundial -- e mais especificamente, após os anos 1970 -- é tratado de forma menos categórica e mais genérica.
O livro não deixa de refletir um pouco da confusão e das incertezas que vivemos atualmente: é uma obra que mistura arte, política e história, personagens fictícios e reais, que foi escrita por um crítico musical, divulgada em um blog e que recebeu uma indicação ao Pulitzer.
Leia abaixo um trecho extraído de "O Resto É Ruído: Escutando o Século 20" :
Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro.
*
Divulgação |
"O Resto é Ruído", de Alex Ross, que recebeu indicação ao Pulitzer |
Quando Richard Strauss regeu sua ópera Salome em 16 de maio de 1906, na cidade austríaca de Graz, várias cabeças coroadas da música europeia se reuniram para testemunhar o evento. A première acontecera em Dresden cinco meses antes, e corria a história de que Strauss passara dos limites com essa criação - um espetáculo bíblico ultradissonante, baseado numa peça de um degenerado irlandês cujo nome não se mencionava em sociedade, uma obra que inspirava tamanho horror ao retratar a lascívia adolescente que os censores imperiais a baniram da Ópera da Corte de Viena.
Giacomo Puccini, o criador de La bohème e da Tosca, rumou para o norte a fim de ouvir a "cacofonia terrível" urdida pelo rival alemão. Gustav Mahler, o diretor da ópera de Viena, compareceu acompanhado da mulher, a bela e controversa Alma. O jovem e audaz compositor Arnold Schoenberg chegou de Viena trazendo o cunhado Alexander Zemlinsky e não menos que seis de seus discípulos. Um deles, Alban Berg, viajava com um amigo mais velho que, mais tarde, se lembraria da "impaciência febril e do entusiasmo sem limite" sentidos por todos à medida que se aproximava a hora da apresentação. A viúva de Johann Strauss II, compositor de O Danúbio azul, representava a velha Viena.
Havia também uma multidão de pessoas comuns, entusiastas da música - "jovens vienenses, que traziam apenas a partitura de canto como bagagem de mão", observou Richard Strauss. Entre eles poderia estar Adolf Hitler, de dezessete anos, que acabara de ver Tristão e Isolda regida por Mahler em Viena. Mais tarde, Hitler contaria ao filho de Strauss que pedira dinheiro emprestado a parentes para a viagem. Estava presente até mesmo um personagem fictício - Adrian Leverkühn, o herói de Doutor Fausto de Thomas Mann, a história de um compositor que fez um pacto com o diabo.
Os jornais de Graz traziam notícias da Croácia, onde o movimento servo-croata se fortalecia, e da Rússia, onde o tsar travava uma batalha com o primeiro Parlamento nacional. Ambas as histórias pressagiavam um futuro de caos - o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em 1914 e a Revolução Russa de 1917. Por ora, no entanto, a fachada da civilização europeia continuava preservada. O ministro britânico da Guerra, Richard Haldane, era conhecido por declarar seu amor à literatura alemã e gostava de recitar trechos do Fausto de Goethe.
Strauss e Mahler, os titãs da música austro-germânica, passaram a tarde nas colinas próximas à cidade, como conta Alma Mahler em suas memórias. Um fotógrafo registrou os compositores diante do teatro, preparando-se para a expedição - Strauss sorria de chapéu de palha, Mahler apertava os olhos sob o sol. A trupe foi até uma cachoeira e almoçou numa taberna, onde se sentaram numa mesa simples de madeira. Os dois compositores deviam formar um estranho par. Strauss, esguio e desengonçado, testa protuberante, queixo delicado, olhos fortes embora fundos; Mahler, uma cabeça mais baixo, robusto como um falcão. Quando o sol começou a se pôr, Mahler ficou nervoso com o horário e sugeriu que o grupo retornasse ao Hotel Elefant, onde estavam hospedados, a fim de se preparar para a apresentação. "Não podem começar sem mim", disse Strauss. "Deixe-os esperar." Mahler retrucou: "Se você não for, eu vou - para reger no seu lugar".
Mahler tinha 45 anos. Strauss, 41. Eram, em quase todos os aspectos, diametralmente opostos. Mahler parecia um caleidoscópio de humores - infantil, tempestuoso, despótico, desesperado. Em Viena, quando caminhava a passos largos de seu apartamento perto da Schwartzenbergplatz até a ópera na Ringstrasse, os motoristas de táxi cochichavam para seus passageiros: "Der Mahler!". Strauss era ríspido, convencido, um tanto sarcástico, um enigma para a maioria dos observadores.
A soprano Gemma Bellincioni, que sentou ao seu lado num banquete depois da apresentação em Graz, o descreveu como "um alemão em estado puro, sem afetação, sem discursos prolixos, fofocas ou inclinação para falar de si mesmo e de sua obra. Um olhar férreo, uma expressão indecifrável". Strauss era de Munique, lugar atrasado aos olhos de vienenses sofisticados como Gustav e sua mulher. Em suas memórias, Alma ressaltou essa impressão, reproduzindo a fala de Strauss num dialeto bávaro carregado.
Não surpreende que o relacionamento entre os dois compositores padecesse com mal-entendidos frequentes. Mahler recuava diante de descortesias involuntárias; Strauss ficava perplexo com os silêncios repentinos. Cerca de quatro décadas mais tarde, quando leu e anotou o livro de Alma, Strauss ainda tentava entender o antigo colega. "Nada disso é verdade", escreveu, ao lado da descrição de seu comportamento em Graz.
"Strauss e eu cavamos um túnel a partir de lados opostos da montanha", disse Mahler. "Um dia nos encontraremos". Ambos viam a música como um lugar de conflitos, um campo de batalha entre extremos. Deleitavam-se com os sons formidáveis que uma orquestra de cem instrumentos era capaz de produzir.
Todavia, também liberavam energias de fragmentação e colapso. As narrativas heroicas do romantismo oitocentista, das sinfonias de Beethoven aos dramas musicais de Wagner, terminavam invariavelmente num arrebatamento de transcendência, de superação espiritual. As histórias contadas por Mahler e Strauss tinham feições mais tortuosas, muitas vezes questionando a possibilidade de um verdadeiro final feliz.
Um não abria mão de defender a música do outro. Em 1901, Strauss tornou- -se presidente da Allgemeiner deutscher Musikverein, ou Associação Geral Alemã de Música, e seu primeiro ato importante foi programar a Terceira Sinfonia de Mahler para o festival do ano seguinte. Nas temporadas subsequentes, as obras de Mahler figuravam com tanta frequência nos programas da entidade que alguns críticos passaram a chamar a organização de Allgemeiner deutscher Mahlerverein. Outros a apelidaram de Carnaval Alemão Anual da Cacofonia. Mahler, de sua parte, ficou maravilhado com Salome. No ano anterior, Strauss cantara e tocara a partitura para ele, numa loja de pianos em Strasbourg, enquanto os passantes se comprimiam contra a vitrine tentando escutar. Salome prometia ser um dos pontos altos do período vienense de Mahler, mas os censores se recusaram a aceitar uma ópera na qual figuras bíblicas realizavam atos inomináveis. Furioso, Mahler começou a insinuar que seus dias em Viena estavam contados. Em março de 1906, escreveu a Strauss: "Você não imagina quanto esse assunto me aborrece ou (cá entre nós) que consequências isso pode ter para mim".
Assim, Salome chegou a Graz, uma cidade elegante de aproximadamente 150 mil moradores, capital da província agrícola da Styria. O Stadt-Theater apresentou a ópera por sugestão do crítico Ernst Decsey, ligado a Mahler, que garantiu à direção da casa que o espetáculo seria um sucesso escandaloso.
*
"O Resto É Ruído: Escutando o Século 20"
Autora: Alex Ross
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 688
Quanto: R$ 64,00
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha.
Leia mais
suerly gonçalves veloso
sugonl@uol.com.br
avalie fechar
Taí a Ivete Sangalo, pagodes e sertanejos para agradarem esses coitados.
Fiquem com eles e eu com o Chico
avalie fechar
AI, OLHA AÍ, OLHA AÍ
OLHA, AÍ
É O MEU GURI
Além de excelente compositor, também o é escritor.
avalie fechar