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30/06/2009 - 10h22

Com uma indicação ao Pulitzer, obra de Alex Ross discute música erudita

da Folha Online

Um dos lançamentos mais elogiados no ano de sua publicação original, nos Estados Unidos, "O Resto É Ruído: Escutando o Século 20" (Companhia das Letras, 2009) chegou ao Brasil já com status de clássico indispensável para se entender a música erudita do período. Tanto que a obra rendeu ao seu autor, o renomado crítico de música Alex Ross, prêmios importantes como o National Book Critics Circle Award de 2007 e o Guardian First Book Award de 2008, além de uma indicação ao Pulitzer.

David Michalek/Reprodução
Crítico musical e escritor norte-americano, Alex Ross participará da 7ª edição da Flip
Crítico musical e escritor norte-americano, Alex Ross participará da 7ª edição da Flip

É com estas credenciais que o escritor, que já assinou colunas no jornal "The New York Times" e atualmente o faz pela revista "The New Yorker", chega à Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) para a mesa "O Dissonante Século 20" (dia 4, às 10 horas), onde deve entrar em detalhes sobre sua premiada obra e, claro, sobre a música erudita do período.

Em uma narrativa permeada por referências históricas e intertextualidades literárias, o autor se propõe a investigar de que maneira acontecimentos como as duas guerras mundiais e a Revolução Russa ajudaram a forjar aquilo que hoje conhecemos por música contemporânea. O autor acompanha de perto, por exemplo, figuras emblemáticas deste tempo e desta arte, como os compositores Mahler, Stravinsky e Strauss, e os personagens históricos Hitler e Stálin.

Talvez pelo pouco distanciamento que o tempo proporciona, talvez pela própria fragmentação de conceitos e estilos que caracteriza a época, o período que se sucede à Segunda Guerra Mundial -- e mais especificamente, após os anos 1970 -- é tratado de forma menos categórica e mais genérica.

O livro não deixa de refletir um pouco da confusão e das incertezas que vivemos atualmente: é uma obra que mistura arte, política e história, personagens fictícios e reais, que foi escrita por um crítico musical, divulgada em um blog e que recebeu uma indicação ao Pulitzer.

Leia abaixo um trecho extraído de "O Resto É Ruído: Escutando o Século 20" :

Atenção: o texto reproduzido abaixo mantém a ortografia original do livro.

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Divulgação
"O Resto é Ruído", de Alex Ross
"O Resto é Ruído", de Alex Ross, que recebeu indicação ao Pulitzer

Quando Richard Strauss regeu sua ópera Salome em 16 de maio de 1906, na cidade austríaca de Graz, várias cabeças coroadas da música europeia se reuniram para testemunhar o evento. A première acontecera em Dresden cinco meses antes, e corria a história de que Strauss passara dos limites com essa criação - um espetáculo bíblico ultradissonante, baseado numa peça de um degenerado irlandês cujo nome não se mencionava em sociedade, uma obra que inspirava tamanho horror ao retratar a lascívia adolescente que os censores imperiais a baniram da Ópera da Corte de Viena.

Giacomo Puccini, o criador de La bohème e da Tosca, rumou para o norte a fim de ouvir a "cacofonia terrível" urdida pelo rival alemão. Gustav Mahler, o diretor da ópera de Viena, compareceu acompanhado da mulher, a bela e controversa Alma. O jovem e audaz compositor Arnold Schoenberg chegou de Viena trazendo o cunhado Alexander Zemlinsky e não menos que seis de seus discípulos. Um deles, Alban Berg, viajava com um amigo mais velho que, mais tarde, se lembraria da "impaciência febril e do entusiasmo sem limite" sentidos por todos à medida que se aproximava a hora da apresentação. A viúva de Johann Strauss II, compositor de O Danúbio azul, representava a velha Viena.

Havia também uma multidão de pessoas comuns, entusiastas da música - "jovens vienenses, que traziam apenas a partitura de canto como bagagem de mão", observou Richard Strauss. Entre eles poderia estar Adolf Hitler, de dezessete anos, que acabara de ver Tristão e Isolda regida por Mahler em Viena. Mais tarde, Hitler contaria ao filho de Strauss que pedira dinheiro emprestado a parentes para a viagem. Estava presente até mesmo um personagem fictício - Adrian Leverkühn, o herói de Doutor Fausto de Thomas Mann, a história de um compositor que fez um pacto com o diabo.

Os jornais de Graz traziam notícias da Croácia, onde o movimento servo-croata se fortalecia, e da Rússia, onde o tsar travava uma batalha com o primeiro Parlamento nacional. Ambas as histórias pressagiavam um futuro de caos - o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em 1914 e a Revolução Russa de 1917. Por ora, no entanto, a fachada da civilização europeia continuava preservada. O ministro britânico da Guerra, Richard Haldane, era conhecido por declarar seu amor à literatura alemã e gostava de recitar trechos do Fausto de Goethe.

Strauss e Mahler, os titãs da música austro-germânica, passaram a tarde nas colinas próximas à cidade, como conta Alma Mahler em suas memórias. Um fotógrafo registrou os compositores diante do teatro, preparando-se para a expedição - Strauss sorria de chapéu de palha, Mahler apertava os olhos sob o sol. A trupe foi até uma cachoeira e almoçou numa taberna, onde se sentaram numa mesa simples de madeira. Os dois compositores deviam formar um estranho par. Strauss, esguio e desengonçado, testa protuberante, queixo delicado, olhos fortes embora fundos; Mahler, uma cabeça mais baixo, robusto como um falcão. Quando o sol começou a se pôr, Mahler ficou nervoso com o horário e sugeriu que o grupo retornasse ao Hotel Elefant, onde estavam hospedados, a fim de se preparar para a apresentação. "Não podem começar sem mim", disse Strauss. "Deixe-os esperar." Mahler retrucou: "Se você não for, eu vou - para reger no seu lugar".

Mahler tinha 45 anos. Strauss, 41. Eram, em quase todos os aspectos, diametralmente opostos. Mahler parecia um caleidoscópio de humores - infantil, tempestuoso, despótico, desesperado. Em Viena, quando caminhava a passos largos de seu apartamento perto da Schwartzenbergplatz até a ópera na Ringstrasse, os motoristas de táxi cochichavam para seus passageiros: "Der Mahler!". Strauss era ríspido, convencido, um tanto sarcástico, um enigma para a maioria dos observadores.

A soprano Gemma Bellincioni, que sentou ao seu lado num banquete depois da apresentação em Graz, o descreveu como "um alemão em estado puro, sem afetação, sem discursos prolixos, fofocas ou inclinação para falar de si mesmo e de sua obra. Um olhar férreo, uma expressão indecifrável". Strauss era de Munique, lugar atrasado aos olhos de vienenses sofisticados como Gustav e sua mulher. Em suas memórias, Alma ressaltou essa impressão, reproduzindo a fala de Strauss num dialeto bávaro carregado.

Não surpreende que o relacionamento entre os dois compositores padecesse com mal-entendidos frequentes. Mahler recuava diante de descortesias involuntárias; Strauss ficava perplexo com os silêncios repentinos. Cerca de quatro décadas mais tarde, quando leu e anotou o livro de Alma, Strauss ainda tentava entender o antigo colega. "Nada disso é verdade", escreveu, ao lado da descrição de seu comportamento em Graz.

"Strauss e eu cavamos um túnel a partir de lados opostos da montanha", disse Mahler. "Um dia nos encontraremos". Ambos viam a música como um lugar de conflitos, um campo de batalha entre extremos. Deleitavam-se com os sons formidáveis que uma orquestra de cem instrumentos era capaz de produzir.

Todavia, também liberavam energias de fragmentação e colapso. As narrativas heroicas do romantismo oitocentista, das sinfonias de Beethoven aos dramas musicais de Wagner, terminavam invariavelmente num arrebatamento de transcendência, de superação espiritual. As histórias contadas por Mahler e Strauss tinham feições mais tortuosas, muitas vezes questionando a possibilidade de um verdadeiro final feliz.

Um não abria mão de defender a música do outro. Em 1901, Strauss tornou- -se presidente da Allgemeiner deutscher Musikverein, ou Associação Geral Alemã de Música, e seu primeiro ato importante foi programar a Terceira Sinfonia de Mahler para o festival do ano seguinte. Nas temporadas subsequentes, as obras de Mahler figuravam com tanta frequência nos programas da entidade que alguns críticos passaram a chamar a organização de Allgemeiner deutscher Mahlerverein. Outros a apelidaram de Carnaval Alemão Anual da Cacofonia. Mahler, de sua parte, ficou maravilhado com Salome. No ano anterior, Strauss cantara e tocara a partitura para ele, numa loja de pianos em Strasbourg, enquanto os passantes se comprimiam contra a vitrine tentando escutar. Salome prometia ser um dos pontos altos do período vienense de Mahler, mas os censores se recusaram a aceitar uma ópera na qual figuras bíblicas realizavam atos inomináveis. Furioso, Mahler começou a insinuar que seus dias em Viena estavam contados. Em março de 1906, escreveu a Strauss: "Você não imagina quanto esse assunto me aborrece ou (cá entre nós) que consequências isso pode ter para mim".

Assim, Salome chegou a Graz, uma cidade elegante de aproximadamente 150 mil moradores, capital da província agrícola da Styria. O Stadt-Theater apresentou a ópera por sugestão do crítico Ernst Decsey, ligado a Mahler, que garantiu à direção da casa que o espetáculo seria um sucesso escandaloso.

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"O Resto É Ruído: Escutando o Século 20"
Autora: Alex Ross
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 688
Quanto: R$ 64,00
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha.

Comentários dos leitores
suerly gonçcalves (20) 05/07/2009 02h54
suerly gonçcalves (20) 05/07/2009 02h54
AA musa Cláudia Ohana jamais poderia ter sido barrada no acesso a tenda, ainda mais no encosto do casal de escritores. Isso não se faz. Algum problemático a barrou. Faltaram-lhe conhecimentos necessários da importante contribuição dela na sala, ou tratou-se de caso de birra? Se verificar o vídeo e câmeras de segurança, verão que outros personagens ingressaram, antes e após. A norma deve ser aplicada com bom senso. Não pode ser no pontapé. Nem um juiz está mais autorizado a punir sem fornecer as devidas explicações para o réu ou vítima. Isso é respeito à cidadania. Diante da norma de igualdade de todos, privilegie a contribuição importante. A aceitação é o primeiro passo. O sentido poderá vir depois. Seus...
suerly gonçalves veloso
sugonl@uol.com.br
sem opinião
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Paulo Pinto (14) 04/07/2009 20h58
Paulo Pinto (14) 04/07/2009 20h58
Chico é Deus..pena que pessoas de baixo nível não tenham acesso à sua cultura
Taí a Ivete Sangalo, pagodes e sertanejos para agradarem esses coitados.
Fiquem com eles e eu com o Chico
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Diocleciano Campos (138) 04/07/2009 17h56
Diocleciano Campos (138) 04/07/2009 17h56
OLHA AÍ
AI, OLHA AÍ, OLHA AÍ
OLHA, AÍ
É O MEU GURI
Além de excelente compositor, também o é escritor.
3 opiniões
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