Livraria da Folha

 
16/10/2009 - 22h24

"O Advogado do Diabo" investiga fraudes na santificação; leia trecho

da Livraria da Folha

Os bastidores de grupos religiosos inspiram o lançamento de livros, como "O Símbolo Perdido", de Dan Brown, e "Caim", de José Saramago. Entre os escritores que exploraram o tema no passado, está o australiano Morris West, autor do clássico "O Advogado do Diabo", que deu origem a uma adaptação no cinema.

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Obra sobre os dilemas durante um processo de canonização na Itália
Obra sobre os dilemas durante um processo de canonização na Itália

Em "O Advogado do Diabo", o autor apresenta a política por trás da santificação, quando interesses maiores da Igreja Católica ou de terceiros podem pressionar a mudança dos fatos históricos.

Durante um processo de canonização, um investigador do Vaticano visita um vilarejo miserável do sul da Itália nos primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial. O suposto santo é Giacomo Nerone, um homem que foi morto por comunistas nos últimos dias do conflito e que foi proclamado santo pelos habitantes locais após a sua morte.

O "advogado do diabo" é o padre Braise Meredith, que recebe o diagnóstico de que tem poucos meses de vida e como último trabalho para a igreja precisa separar milagres reais das superstições dos camponeses. Ao longo de sua investigação ele entrevista diversos personagens locais e suas relações com Nerone, e encontra problemas que poderiam impedir a canonização.

Aí está o grande conflito interno do padre Meredith. Seria justo mentir sobre alguns dados ao Vaticano tendo em vista o bem que a canonização traria a todas aquelas pessoas do povoado?

O livro foi adaptado para o cinema, em uma produção alemã de 1977 dirigida por Guy Green e com o nome "Des Teufels Advokat". Em 1997, Hollywood se aproveitou do nome do livro para lançar um filme homônimo com Keanu Reeves no papel principal de um advogado competente e ambicioso que, incapaz de pensar em perder um caso, não hesita em defender professores que abusam de alunas em Nova York, retratada como uma "cidade do diabo".

*

Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentaram.
Apocalipse 6:9

Sua profissão era preparar os outros para a morte; chocava-o, no entanto, o fato de estar tão pouco preparado para a sua própria.

Era um homem sensato, e a razão dizia-lhe que a sentença de morte de um homem já está escrita na palma de sua mão no dia de seu nascimento; era um homem frio, que a paixão pouco inquietava e que de modo algum se molestava com a disciplina. Não obstante, seu primeiro impulso foi o de agarrar-se cegamente à ilusão da imortalidade.

Fazia parte da decência da Morte surgir sem se fazer anunciar, o rosto coberto e as mãos ocultas, num momento em que era menos esperada. Vinha lenta e suavemente, como o seu irmão, o Sono -- ou, então, rápida e violentamente, como a consumação do ato do amor, de modo que o momento da rendição fosse uma quietude e uma saciedade, em vez da dilacerante separação do espírito e da carne.

A decência da Morte. Era a coisa que os homens esperavam, vagamente, a coisa pela qual rezavam, se estavam dispostos a rezar, ou que lamentavam amargamente, ao saber que isso lhes era negado. Blaise Meredith lamentava-o agora, sentado sob o tênue sol de primavera, observando os cisnes lentos, processionais, sobre o Serpentine, os casais em idílio sobre a relva, os poodles, ajoujados em suas trelas, caminhando entediados pelas alamedas junto às saias esvoaçantes de suas donas.

Em meio a toda aquela vida --a relva germinando, as árvores estuantes de seiva nova, os açafrões e os narcisos inclinando-se nos ramos, o lânguido namoro dos jovens, o vigor dos passeantes mais velhos-- somente ele, parecia, tinha sido assinalado para morrer.

Não havia dúvida quanto à urgência ou à finalidade do mandato. Fora escrito, para que todos o lessem, não na palma de sua mão, mas no retângulo de uma chapa fotográfica, onde uma pequena mancha cinzenta enunciava a sentença a que ele estava condenado.

- Carcinoma.

O dedo insensível do cirurgião deteve-se um instante no centro da mancha cinzenta e, em seguida, moveu-se para fora, traçando a difusão do tumor:

- De desenvolvimento lento, mas bem nítido. Vi muitos deles, para que me engane com este.

Enquanto observava a pequena tela translúcida e o dedo espatulado que se movia sobre ela, Blaise Meredith foi assaltado pela ironia da situação. Passara toda a sua vida fazendo com que os outros se defrontassem com a verdade acerca de si próprios, as culpas que os atormentavam, as concupiscências que os degradavam, as loucuras que os diminuíam. Agora, olhava suas próprias entranhas, onde um pequeno tumor maligno se desenvolvia como uma raiz de mandrágora, estendendo-se na direção do dia em que o destruiria.

Perguntou, bastante calmo:

- É operável?

O cirurgião apagou a luz atrás do quadro de exames e a pequena morte cinzenta se extinguiu, opaca; depois se sentou, ajustando a lâmpada de mesa, de modo a que o seu próprio rosto ficasse na sombra e o de seu paciente, iluminado, como uma cabeça de mármore num museu.

Blaise Meredith notou o pequeno ardil e compreendeu. Eram ambos profissionais. Cada qual, em sua própria profissão, lidava com animais humanos. Cada qual devia conservar um certo desprendimento clínico, para que não gastasse muito de si mesmo e não ficasse tão fraco e medroso como os seus pacientes.

O cirurgião recostou-se em sua cadeira, apanhou um cortapapel e segurou-o no ar tão delicadamente como se fosse um bisturi. Esperou um momento, reunindo as palavras, escolhendo esta, descartando aquela, e juntando-as, depois, numa forma verbal meticulosamente exata.

- Posso operar, sem dúvida. Se eu o fizer, o senhor estará morto dentro de três meses.

- E se não o fizer?

- Viverá um pouco mais e morrerá de maneira um pouco mais dolorosa.

- E quanto tempo mais terei de vida?

- Seis meses. Talvez um ano, no máximo.

- É uma escolha sombria.

- Que o senhor mesmo terá de fazer.

- Compreendo perfeitamente.

O cirurgião sentou-se mais à vontade em sua cadeira. O pior tinha passado. Não se enganara com respeito àquele homem. Era inteligente, ascético, senhor de si mesmo. Sobreviveria ao choque e procuraria conformar-se diante do inevitável. Quando chegasse a agonia, iria suportá-la com certa dignidade. Sua Igreja atenderia às suas necessidades e o sepultaria com honra quando morresse --e, se não houvesse ninguém para chorar por ele, isso também poderia ser contado como uma recompensa final do celibato: sair furtivamente da vida, sem lamentar seus prazeres nem temer as obrigações não cumpridas.

A voz calma, seca, de Blaise Meredith interrompeu-lhe o pensamento.

- Pensarei no que o senhor me disse. Caso eu decida não ser operado... e voltar ao meu trabalho... o senhor me faria a fineza de escrever um relatório ao meu médico? Um prognóstico completo ou, talvez, uma prescrição.

- Com prazer, monsenhor Meredith. O senhor trabalha em Roma, não é? Infelizmente, não sei escrever em italiano.
Blaise Meredith permitiu-se esboçar um sorriso gélido:

- Eu próprio o traduzirei. Será um exercício interessante.

- Admiro sua coragem, monsenhor. Não pertenço à fé católica ou, na verdade, a qualquer outra fé, mas imagino que o senhor possa encontrar nela, numa ocasião como esta, um grande consolo.

- Espero que possa, doutor --respondeu, com simplicidade, Blaise Meredith--, mas sou sacerdote há muito tempo para
alimentar tal esperança.

Agora estava sentado ao sol num banco de jardim, com o ar pleno de primavera e o futuro apenas uma breve e vazia perspectiva a derramar-se na eternidade. Certa vez, em seus dias de estudante, ouvira um velho missionário pregar acerca da ressurreição de Lázaro: como Cristo se detivera diante do sepulcro selado e ordenara que este fosse aberto para que o cheiro da podridão se desfizesse no ar parado e seco do verão; como Lázaro, atendendo ao chamado, saíra, tropeçando na mortalha, e ficara de pé, piscando sob o sol. Que sentira ele naquele momento, indagara o velho? Que preço ele havia pago por aquela volta ao mundo dos vivos? Acaso depois continuara para sempre estropiado, de modo que cada rosa lhe cheirasse a podridão e cada jovem dourada lhe parecesse um esqueleto desengonçado? Ou caminhara cheio de deslumbramento diante da novidade das coisas, o coração terno de piedade e amor pela família humana?

Essa especulação interessara a Meredith durante anos. Chegara, mesmo, em certa ocasião, a alimentar a idéia de escrever uma novela a respeito. Agora, finalmente, ele tinha a resposta. Nada era tão doce ao homem como a vida; nada mais precioso do que o tempo; nada mais tranqüilizador do que o toque da terra e da relva, o sussurro da brisa, o som das vozes, do trânsito e dos pássaros.

Eis aí o que o perturbava. Havia vinte anos era sacerdote, voltado à afirmação de que a vida era uma imperfeição passageira; a Terra, um pálido símbolo de seu criador; a alma, uma coisa imortal na argila mortal a debater-se fatigada em busca de libertação nos braços acolhedores do Todo-Poderoso. Agora que sua própria libertação lhe era prometida, com data marcada, por que não podia aceitá-la, se não com alegria, pelo menos com confiança?

A que se aferrava ele que já não tivesse, havia muito, rejeitado? Uma mulher? Um filho? Uma família? Não havia criatura viva alguma que lhe pertencesse. Bens terrenos? Estes eram bem poucos: um pequeno apartamento próximo da Porta Angélica, alguns objetos de adorno, uma sala cheia de livros, um modesto estipêndio da Congregação de Ritos, uma renda anual que a mãe lhe deixara. Nada que pudesse tentar um homem que se encontrava no limiar da grande revelação. Carreira? Talvez houvesse algo aí...auditor da Sagrada Congregação de Ritos, assistente pessoal do próprio prefeito, o cardeal Eugênio Marotta. Era uma posição de influência, de lisonjeira confiança. A gente sentava-se à sombra do pontífice. Observava o funcionamento complexo, sutil, de uma grande teocracia. Vivia-se com simplicidade, mas confortavelmente. Tinha-se tempo para estudar, liberdade para agir sem peias dentro dos limites da prudência e da discrição. Talvez houvesse algo aí... mas não o bastante: nem a metade do que seria necessário a um homem que ansiasse pela União Perfeita que pregava.

Talvez estivesse aí a essência da coisa. Ele jamais ansiara por coisa alguma. Sempre tivera tudo o que desejara e jamais desejara nada além do que estava ao seu alcance. Aceitara a disciplina da Igreja, e a Igreja dera-lhe segurança, conforto e escopo para o exercício de suas aptidões naturais. Conseguira maiores satisfações em sua vida do que a maioria dos homens-- e, se não pedira jamais a felicidade, foi porque nunca tinha sido infeliz. Isso, até então... até aquele desolado momento ali, ao sol, o primeiro sol da primavera, a última primavera que Blaise Meredith teria.

A última primavera, o último verão. O troco final da vida, mastigado e chupado até ficar seco como um bastão de açúcar-candeque despois se lança ao lixo. Havia ali amargura, o gosto azedo do fracasso e da desilusão.

Que mérito ele poderia computar e levar consigo para o Juízo Final? O que deixaria atrás de si para que os homens pudessem lembrar-se dele?

Jamais gerara um filho, plantara uma árvore ou colocara pedra sobre pedra na construção de uma casa ou de um monumento. Não tivera ódios, mas também não dispensara caridade. Seu trabalho se desfaria em pó nos arquivos do Vaticano. Qualquer virtude que acaso tivesse florescido em seu ministério era sacramental, e não individual. Os pobres não o abençoariam pelo seu pão, nem os enfermos pelo consolo de suas palavras, nem os pecadores pela salvação de suas almas. Fizera o que dele haviam exigido; não obstante, morreria vazio e, dentro de um mês, seu nome seria um pouco de pó soprado sobre o deserto dos séculos.

Súbito, sentiu-se aterrorizado. Um suor frio inundou-lhe o corpo. Suas mãos começaram a tremer, e um grupo de crianças que brincavam com uma bola junto a um banco próximo afastou-se do macilento clérigo que ali estava sentado, fitando, com olhos que não viam, as águas tremeluzentes do lago.

Os calafrios passaram lentamente. O terror cessou, e ele se sentiu calmo de novo. A razão apoderou-se dele, e pôs-se a pensar de que modo deveria organizar sua vida durante o tempo que lhe restava.

Ao ficar doente em Roma, quando os médicos italianos haviam feito, em caráter experimental, os primeiros diagnósticos, sua decisão instintiva fora voltar para Londres. Se tinha de ser condenado, preferia que fosse em sua própria língua. Se o tempo de vida de que dispunha tinha de ser reduzido, então desejava passar o que lhe restava dela em meio à suave atmosfera da Inglaterra, caminhando pelas chapadas gredosas, pelos bosques de faias, ouvindo o canto elegíaco dos rouxinóis à sombra de velhas igrejas, onde a Morte era mais familiar e mais afável, pois que os ingleses haviam passado séculos a ensinar-lhe boas maneiras.

Na Itália, a morte era rude, dramática - um final de grande ópera, com coros de carpideiras, penachos ao vento e negros ataúdes barrocos rolando diante de palácios de estuque rumo às criptas de mármore do Campo Santo. Ali, na Inglaterra, ela tinha um aspecto mais gentil: a cerimônia religiosa era murmurada discretamente numa nave normanda, a sepultura aberta em grama ceifada entre túmulos batidos pelas intempéries, as libações na taberna de vigas de carvalho, situada logo do lado oposto ao portão coberto de musgo.

Também isso, agora, provava ser uma ilusão, uma falácia patética, não constituindo, de modo algum, uma couraça contra o cinzento inimigo entrincheirado em suas próprias entranhas. Não podia escapar dele, como tampouco podia fugir à convicção de seu próprio fracasso como sacerdote e como homem.

Que fazer, então? Submeter-se ao bisturi? Abreviar a agonia, truncar o medo e a solidão até um limite exeqüível? Não seria aquilo um novo fracasso, uma espécie de suicídio que os moralistas talvez justificassem, mas que a consciência não poderia jamais perdoar?

Já tinha muitos débitos para levar ao seu ajuste de contas final; esse último poderia conduzi-lo inteiramente à falência.
Voltar ao trabalho? Sentar-se à velha mesa, sob o teto decorado do Palácio das Congregações, em Roma. Abrir os enormes in-fólios, onde as vidas, as obras e os escritos dos candidatos à canonização, mortos havia muito, eram registrados pela mão de milhares de copistas. Examiná-los, dissecá-los, analisá-los e fazer suas anotações.

Questionar quanto às suas virtudes e lançar dúvidas quanto às maravilhas que lhes eram atribuídas. Fazer novas anotações em novos manuscritos. E isso com que fim? Para que um novo candidato às honras canônicas talvez viesse a ser rejeitado por ter sido, em vida, menos do que heróico, ou menos do que sábio, em suas virtudes; ou para que daqui a um século, ou talvez dois, um novo papa pudesse vir a proclamar, em São Pedro, que um novo santo havia sido incluído no calendário.

Acaso se importavam, aqueles mortos, com o que ele escrevia a respeito deles? Acaso se importavam que se permitisse a uma nova estátua o uso de uma auréola, ou que os impressores pusessem em circulação um milhão de pequenos cartões com seus rostos na frente e uma lista de suas virtudes no verso? Ririam de seus brandos biógrafos ou franziriam a testa diante de seus detratores oficiais? Tinham morrido e sido julgados havia muito, como ele deveria morrer e ser julgado. O resto era tudo adenda, post scriptum e dispensável. Um novo culto, uma nova peregrinação, uma nova missa na liturgia não os comoveriam de modo algum. Blaise Meredith, sacerdote, filósofo, canonista, poderia trabalhar doze meses ou doze anos em seus registros sem que acrescentasse um til à felicidade deles ou um único sofrimento à condenação de suas almas.

Não obstante, aquele era o seu trabalho, e ele devia realizá-lo, pois que estava entregue às suas mãos -- e porque ele estava demasiado cansado e demasiado doente para começar qualquer outro.

Diria missa todos os dias, cumpriria diariamente sua tarefa no Palácio das Congregações, pregaria ocasionalmente na Igreja Inglesa, ouviria em confissão seus colegas em férias, voltaria todas as noites ao seu apartamento na Porta Angélica, leria um pouco, faria suas preces e, depois, se debateria nas noites inquietas, até a áspera manhã. Durante doze meses. Depois, estaria morto. Por um período de uma semana, diriam seu nome nas missas... "o nosso irmão Blaise Meredith"; depois, se uniria aos anônimos e aos esquecidos na lembrança de todos... "todos os fiéis que partiram".

Agora fazia frio no parque. Os namorados limpavam a relva de seus paletós e as moças alisavam as saias. As crianças eram arrastadas, indiferentes, pelas alamedas, atrás de pais que as repreendiam.

Os cisnes voltavam, arrepiados, para as ilhotas, na hora máxima do zunzunar do tráfego de Londres.

Era hora de ir embora. Hora de monsenhor Blaise Meredith enfardar seus angustiantes pensamentos e recompor seu magro rosto, pondo nele um sorriso cortês para o chá do administrador, em Westminster. Os ingleses eram um povo civilizado e tolerante. Esperavam que um homem cuidasse recatadamente de sua salvação ou se condenasse com discrição às penas eternas, que soubesse beber como um cavalheiro e guardasse consigo mesmo seus problemas. Desconfiavam dos santos, não viam os místicos com simpatia e quase acreditavam que o Deus Todo-Poderoso sentia da mesma maneira. Mesmo na hora de seu Getsêmani privado, Meredith alegrava-se com aquela convenção social que o obrigaria a esquecer-se de si mesmo e atentar no que tagarelavam seus colegas.

Levantou-se entorpecidamente do banco, ficou um longo momento parado, como se não estivesse seguro de habitar o próprio corpo, e depois desceu com passos firmes em direção de Brompton Road.

O Dr. Aldo Meyer tinha suas próprias preocupações naquela suave noite mediterrânea. Estava procurando embriagar-se --da maneira mais rápida e indolor possível.

Tudo estava contra ele. O lugar onde bebia era uma taberna 15 de paredes de pedra, teto baixo e chão de terra batida que cheirava a vinho azedo. As pessoas que lhe faziam companhia eram o proprietário, um camponês bronco, e uma volumosa e sólida jovem de pescoço e ancas de boi, com os seios de melão forçando o vestido negro e ensebado. A bebida era uma causticante grappa que, segundo se garantia, afogaria mesmo a mais obstinada tristeza.

Mas Aldo Meyer era demasiadamente comedido e inteligente para que pudesse apreciá-la. Estava sentado, encurvado, diante da mesa rústica, tendo ao lado uma vela gotejante, e fitava seu copo, traçando desenhos monótonos na bebida derramada que fluía lentamente atrás de seu dedo. O padrone achava-se recostado ao balcão, palitando os dentes com um raminho seco e chupando, ruidosamente, através dos vãos, o resto do jantar. A moça, sentada na sombra, esperava o
momento de encher o copo, logo que o médico o esvaziasse. A princípio bebera rapidamente, a grandes sorvos; depois, mais devagar, à medida que o álcool tomava conta dele. Nos últimos dez minutos, não tocara no copo. Era como se estivesse aguardando que algo acontecesse antes da rendição final ao esquecimento.

Tinha quarenta e nove anos, mas parecia um velho. Seus cabelos eram brancos e a pele de seu belo rosto judaico estendia-se vincada sobre os ossos. Possuía mãos longas e ágeis, mas calejadas como as de um trabalhador. Usava uma roupa citadina fora de moda, punhos puídos e lapela brilhante, mas seus sapatos estavam engraxados e a camisa limpa, salvo quanto às manchas nos lugares onde haviam caído pingos de grappa. Havia nele um ar de passada distinção que se adaptava estranhamente à rudeza do ambiente e à grosseira vitalidade da jovem e do padrone.

Gemello Minore achava-se situada muito longe de Roma e mais longe ainda de Londres. A miserável taberna não se assemelhava em nada ao Palácio das Congregações. Não obstante, o Dr. Aldo Meyer, como Blaise Meredith, estava preocupado com a morte e, embora cético como era, via-se envolvido com a beatitude.

Ao cair da tarde, fora chamado à casa de Pietro Rossi, cuja esposa estava em trabalho de parto havia dez horas. A parteira mostrava-se desesperada e o quarto achava-se cheio de mulheres que tagarelavam como galinhas, enquanto Maria Rossi gemia e se contorcia em espasmos, mergulhando, depois, em fraco queixume, quando a deixaram. Fora da choupana, as mulheres permaneciam reunidas, falando em voz baixa e passando uma garrafa de vinho de mão em mão.

Quando ele se aproximara, calaram-se, observando-o de soslaio, com olhos especulativos, enquanto Pietro Rossi o fazia entrar. Vivia entre eles havia vinte anos; não obstante, ainda era um estranho. Naqueles momentos de sua vida tribal ele talvez lhes fosse necessário, mas jamais o recebiam de bom grado.

No quarto, com a mulher, a história foi a mesma: silêncio, desconfiança, hostilidade. Ao debruçar-se sobre a grande cama de ferro, para apalpar e examinar o intumescido corpo, a parteira e a mãe da moça ficaram bem perto dele, e quando veio um novo espasmo, houve um murmúrio de escândalo, como se ele o houvesse produzido.

Decorridos três minutos, ele já sabia que não havia esperança de parto normal. Tinha de ser feita uma cesariana. Tal perspectiva não o preocupou demais. Já as praticara antes, à luz de velas e lampiões, sobre mesas de cozinha e bancos de madeira. Com água fervente, anestésico e o vigoroso corpo das mulheres da montanha, as probabilidades de êxito pendiam a favor da paciente.

Esperava que houvesse protestos. Aquela gente era cabeçuda como uma mula e duas vezes mais assustadiça --mas ele não estava preparado para uma explosão como a que se verificou. Foi a mãe da moça quem começou tudo, uma megera corpulenta e musculosa de cabelos escorridos, com falhas de dentes e olhos negros de serpente. Cercou-o, gritando-lhe em carregado dialeto:

- Nada de facas na barriga de minha filha! Quero netos vivos, e não mortos! Os médicos são todos iguais. Quando não podem curar as pessoas, cortam e enterram a gente. Mas não minha filha! Mais um pouco de tempo, e essa criança saltará para fora como uma ervilha. Tive doze filhos. Devo saber o que estou dizendo.

Nem sempre a coisa foi fácil, mas eu tive eles sem precisar que nenhum açougueiro me cortasse a barriga!
Uma explosão de risos estridentes abafou os gemidos da parturiente. Aldo Meyer ficou a observá-la, sem dar importância às mulheres. Apenas disse:

- Se eu não operar, ali pela meia-noite ela estará morta.

Isso havia dado resultado em outras ocasiões --o frio pronunciamento profissional, o desprezo pela ignorância dos que o cercavam--, mas dessa vez falhou por completo. As mulheres riram na cara dele.

- Desta vez não, "seu" judeu! E sabe por quê? -- indagou, metendo a mão dentro do vestido e tirando um pequeno objeto envolto em pano vermelho e desbotado, que lhe agitou diante do nariz: --Sabe o que é isso? Claro que não sabe, sendo um infiel e um matador de Cristo. Temos agora um santo aqui conosco. Um santo de verdade! Estão arranjando para que ele seja canonizado em Roma a qualquer momento. Isto é um pedaço da sua camisa.

Uma verdadeira relíquia viva, manchada com o sangue dele. Ele vem fazendo milagres. Milagres de fato! E estão todos escritos.

Foram enviados ao papa. O senhor acha que pode fazer mais do que ele? Acha? Qual deles escolhemos, pessoal? O nosso São Giacomo Nerone ou este sujeito?

A moça gritou na cama, tomada de súbita agonia, e as mulheres calaram-se, enquanto a mãe se debruçava sobre o leito, proferindo breves ruídos de consolo e esfregando a encardida relíquia sobre o inchado ventre debaixo das cobertas. Aldo Meyer aguardou um momento, à procura das palavras exatas. Depois, quando a moça tornou a aquietar-se, disse-lhes, sobriamente:

- Mesmo um infiel sabe que esperar milagres, sem que procuremos ajudar-nos, é um pecado. Não podemos jogar fora os remédios e esperar que os santos nos curem. Além disso, Giacomo Nerone ainda não é santo. Demorará ainda muito tempo antes que comecem sequer a discutir o seu caso em Roma. Rezem para ele se quiserem, mas peçam-lhe que dê a mim uma mão firme e a esta moça um coração forte. Agora, deixem de ser tolas e tragam-me água quente e lençóis limpos. Não disponho de muito tempo.

Ninguém se mexeu. A mãe interceptou-lhe os passos, impedindo-o de aproximar-se da cama. As mulheres permaneciam enfileiradas em estreito semicírculo, dirigindo-o na direção da porta, onde se achava Pietro Rossi, pálido, a observar o drama.

Meyer voltou-se para ele, num desafio:

- Você aí, Pietro. Você quer um filho? Quer sua mulher? Então, pelo amor de Deus, ouça-me. A menos que eu a opere sem perda de tempo, ela morrerá e a criança morrerá com ela. Você sabe o que posso fazer... Há vinte pessoas na aldeia que podem dizer-lhe. Mas você não sabe o que esse tal Giacomo Nerone pode fazer... mesmo que seja um santo... do que duvido muito. Pietro Rossi abanou a cabeça, obstinado:

- Não é natural arrancar uma criança como se fossem as tripas de um carneiro. Ele é nosso. Ele nos pertence. Cuidará de nós. É melhor que o senhor vá embora, doutor.

- Se eu for, sua mulher não atravessará a noite.

A cara inexpressiva do camponês era vazia como uma parede.

Meyer voltou-se e lançou um olhar àquela gente, a gente morena e secreta do sul, e pensou, com desespero, quão pouco ele a conhecia, quão pequeno era o seu poder sobre ela. Encolheu os ombros num gesto de resignação, apanhou sua maleta e caminhou para a porta. Na soleira, deteve-se e voltou-se para elas: -Seria melhor que chamassem o padre Anselmo. Ela não dispõe de muito tempo.

A mãe cuspiu desdenhosamente no chão e, depois, tornou a curvar-se sobre a cama, para esfregar o pequeno trapo de seda sobre o ventre convulsivo da jovem, murmurando orações em dialeto. As outras mulheres o observavam, mudas, os rostos petrificados. Quando ele saiu e desceu pelo caminho coberto de pedras arredondadas, sentiu nas costas, como punhais, o olhar dos homens. Foi então que resolveu embriagar-se.

Para Aldo Meyer, o velho liberal, o homem que acreditava nos homens, aquele era o gesto final de derrota. Não havia esperança para aquela gente. Eram rapaces como falcões. Criaturas capazes de arrancar o coração a alguém e deixar-lhe o corpo a apodrecer numa fossa. Ele tinha sofrido por eles, lutado por eles, vivido em sua companhia e procurado educá-los, mas eles se aproveitaram de tudo e nada aprendiam. Zombavam dos conhecimentos mais elementares, embora se deliciassem com lendas e superstições tão avidamente como crianças.

Somente a Igreja podia dominá-los, embora não conseguisse torná-los melhores. Afligia-os com demônios, obcecava-os com santos, engabelava-os com chorosas madonnas e bambini de nádegas roliças. Podia arrancar-lhes o último níquel para a aquisição de um novo candelabro, mas não podia --ou não queria-- levá-los a uma clínica onde os vacinassem contra o tifo. As mães eram devastadas pela tuberculose e seus bambini tinham os braços inchados por crises intermitentes de malária. Contudo preferiam engolir o diabo a meter na boca uma pastilha de Atebrina, mesmo que o próprio médico a pagasse.

Viviam em choças onde um bom lavrador não alojaria o seu gado. Comiam azeitonas, farinha de pão molhada em azeite e, em dias de festa, carne de cabrito, quando podiam comprá-la. Suas colinas eram nuas de árvores e seus eirados, em socalcos, retinham apenas um solo avaro, do qual a parte nutriente escorria com as primeiras chuvas e perdia-se nas encostas pedregosas. Seu vinho era ralo e seu trigo magro, e caminhavam com o jeito indolente de gente que comia demasiado pouco e trabalhava demais. Seus senhorios os exploravam, mas eles se agarravam como crianças à aba de seus paletós. Seus sacerdotes não raro entregavam- se à bebida e ao concubinato, mas eles os alimentavam, apesar de sua pobreza, e os tratavam com tolerante desdém. Se o verão tardava a chegar ou o inverno era inclemente, a geada queimava os olivais e havia fome nas colinas. Não tinham escolas para seus filhos, e aquilo que o Estado não lhes fornecia eles não procuravam suprir por si próprios. Não sacrificariam, na construção de uma escola, as suas horas de ócio. Não podiam pagar um professor, mas lançavam mão de suas minguadas liras para financiar a canonização de um novo santo destinado a um calendário já sobrecarregado deles.

Aldo Meyer fitava a borra escura de sua grappa e lia nela apenas inutilidade, decepção e desespero. Ergueu o copo e engoliu de um trago o resto da bebida. Era acre, amargo e não continha calor algum.

*

"O Advogado do Diabo"
Autor: Morris West
Editora: Record
Páginas: 304
Quanto: R$ 42,90
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

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