Livraria da Folha

 
01/12/2009 - 21h52

Conquista do Polo Sul foi "a mais bela poesia da aventura humana"; leia trecho

da Livraria da Folha

Há quase um século, o explorador norueguês Roald Amundsen e sua equipe eram os primeiros a pisar no Polo Sul, sendo seguidos alguns dias depois por uma expedição rival. A conquista é considerada por muitos especialistas como uma verdadeira proeza, dada a infraestrutura de que se dispunha à época --não é à toa que os homens do segundo grupo morreram congelados na viagem de volta.

Feitos como este contribuíram enormemente para a exploração do continente gelado, o que só foi de fato regulamentado há exatos 50 anos, quando 12 países assinaram o Tratado Antártico. O documento estabeleceu as bases para a cooperação internacional que rege as pesquisas científicas, proibindo enfaticamente a militarização da região e o uso do território para testes nucleares e depósito de resíduos tóxicos. O Brasil só aderiu ao tratado em 1975, inaugurando em 1980 a Estação Antártica Comandante Ferraz.

Atualmente, a facilidade de acesso ao continente aumentou bastante e há inclusive roteiros turísticos que incluem viagens por suas águas.

Apaixonado pelo continente, o navegador brasileiro Amyr Klink já esteve diversas vezes por lá, chegando ao ponto de passar um inverno (que dura aproximadamente seis meses nesta parte do globo) em uma baía congelada. Em seu livro "Paratii", ele narra esta sua grande aventura, além de contar a "briga" pela conquista do Polo Sul, protagonizada por Amundsen e pelo inglês Robert F. Scott.

Leia abaixo um trecho da obra:

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Reprodução
Paratii - Amyr Klink
Um emocionante relato da viagem de Amyr Klink no navio Paratii

Amundsen, ao pé das escadarias de Polhogda, ouviu a resposta seca que mudaria a vida de dois homens: "You shall have Fram". Nansen, ministro de Estado, embaixador e prêmio Nobel da Paz em 1922, nunca mais retomaria aos gelos do grande Norte, que seu navio conhecia tão bem.

Dois acontecimentos no mesmo mês de setembro de 1909 mudariam a vida de Amundsen e a história das explorações polares: os jornais de todo o mundo anunciavam o retomo de seu amigo e companheiro de invernagem antártica no Belgica, o dr. Frederic Cook, após alcançar o pólo norte em 21 de abril de 1908. Menos de uma semana depois, o New York Times estampava a manchete: "Robert Peary alcançou o pólo norte em 6 de abril de 1909", iniciando uma polêmica que acabaria com a injusta condenação e prisão de Cook por falta de provas de navegação de que realmente alcançara a latitude 90° Norte. O sonho de Nansen, agora de Amundsen, duplamente evaporado. O jovem norueguês não alterou seus pianos e continuou, pública e oficialmente, preparando-se para ir ao pólo norte. Mas, em total sigilo, começou a planejar uma radical alteração em seu piano.

Uma vez mais em setembro, no dia 13, o Times, de Londres, anunciava o projeto de Robert F. Scott de tentar, no ano seguinte, o pólo sul. Poucos meses antes da partida de ambos, ninguém que uma corrida entre dois homens e duas nações havia começado na cabeça de um norueguês que, secretamente, inverteu o sonho de sua vida em cento e oitenta graus e, com uma ousadia napoleônica, mudou seu objetivo do pólo norte para o pólo sul. A última notícia que o mundo recebeu do Fram, durante os dois anos seguintes, foi um enigmático telegrama dirigido a Scott - "l'm going south. Amundsen".

A diferença entre a expedição inglesa e a norueguesa é a mesma que há entre gramática e poesia, pois não há outra forma de definir as linhas da viagem dos homens do Fram.

Amundsen partiu à meia-noite, no início de 7 de junho de 1910, descendo o fiorde de Cristiania, futura Oslo, em silêncio. Sem despedidas. Seus homens julgando se dirigirem rumo ao Pacífico Norte e Ártico, via cabo Horn. Não havia multidões acenando para o Fram, comemorações ou discursos enaltecendo a glória, coragem e bravura daqueles homens. O pequeno navio de três mastros, que inaugurou a era diesel na propulsão naval, partiu discreto e seguro como o espírito de quem o comandava, ou o espírito norueguês traduzido por Ibsen: "Whatever you are be out and out. Not divided or in doubt".

Muito diferente, a partida do Terra Nova. As festas de despedida da imponente expedição antártica britânica começaram quinze dias antes de sua efetiva e derradeira partida de Cardiff, em 15 de junho do mesmo ano. O Terra Nova ganhou o direito de ostentar a White Ensing, mesmo não sendo um barco do Almirantado. Pintado em imaculado preto e enfeitado com bandeiras de tope, dos mastros ao convés, a cada escala da partida, descendo o Tâmisa, multidões ovacionando, discursos e manchetes enaltecendo a grandeza do Império britânico, a glória, bravura e espírito heróico da raça que governava as ondas do mar.

Era o fim do breve período eduardiano. Eduardo VII falecera no mês anterior, a dez dias da passagem do cometa Haley, e pairava sobre as três últimas décadas do Império um visível clima de decadência, após os gloriosos anos do reinado vitoriano. A publicação de The descent of man, de Charles Darwin. em 1871, a morte de Dickens e a explosão da guerra franco-prussiana, que transferiu a primazia no continente europeu para a Alemanha, marcaram o início desse declínio. Ou, uma citação de Tennyson, em "Ulisses", bem ao gosto do Império, e não por acaso usada por Nansen, agora o primeiro embaixador norueguês em Londres. ao se referir ao feito de seu compatriota, Amundsen, a bordo do Gjoa: "We are not now that strength which in old days/ moved earth and heaven; that which we are, we are,/ an equal temper of heroic hearts/ made weak by time and fate, but strong in will/ to strive, to seek, to find, and not to yield".

O trágico resultado da corrida que se iniciou - Scott não sabia ainda das intenções de Amundsen (ele só receberia o telegrama "I'm going south. Amundsen" na Austrália) - em tudo poderia ser previsto. Não havia dúvida sobre a utilização de esquis e cachorros no então desconhecido continente. Desde o século anterior, os noruegueses, exímios esquiadores, sabiam disso. Nansen, o próprio Shackleton e mesmo Peary, dias antes da partida de Scott, insistiram nisso. A arrogância da superioridade britânica e a incapacidade de estudar detalhes e aprender com os outros foram a razão do trágico fracasso de Scott. Está escrito em seu próprio diário e nos de seus homens. Por isso, e por algumas centenas de pequenos cuidados, a viagem de Amundsen no Fram e a conquista final do pólo sul foram muito mais do que uma obra-prima de talento, humildade e planejamento. Foram a mais bela poesia da aventura humana que conheço.

Pela milésima vez eu andava folheando os relatos dessas expedições. Tinha acabado de ler um belo livro de um dos membros sobreviventes da expedição de Scott, Apsley Cherry Garrard, The worst journey in the world, e estava cada vez mais convencido da inutilidade de lutar por glórias ou bandeiras. Da importância de se trabalhar sério para pura e simplesmente viajar.

Havia ainda uma diferença que a história por vezes esquece. A expedição norueguesa foi uma empresa de um homem, não de um império. Amundsen endividou-se até o pescoço para organizá-la, era absoluto senhor do que fazia; navegador e explorador por paixão antes de mais nada. Como o grande Yann, do Pêcheur d 'Islande, de Pierre Loti, que pescava não pelo que conseguia, mas pelo puro prazer de estar no mar. Acusado de amador, construiu uma legenda de extremo profissionalismo em tudo que acabou fazendo.

Scott, por outro lado, capitaneava uma expedição que, embora tivesse propósitos científicos, foi patrocinada pela Royal Geographical Society e pelo governo britânico com a intenção de recuperar a glória e grandeza de um império marítimo visivelmente em declínio. Ele não comandava seu próprio empreendimento. Cometeu erros inadmissíveis de planejamento, logística e comando. Oficial da Royal Navy, impôs, de modo inseguro, uma disciplina e hierarquia militares sobre uma tripulação mista de sessenta e cinco homens e tirou-lhes o motor mais importante do ser humano: a motivação. O Terra Nova, apresentando problemas técnicos o tempo todo e tripulado por pessoas que não estavam seguras de suas funções, não era um happy ship.

Este trecho mantém a grafia original e não foi atualizado segundo as regras do novo Acordo Ortográfico.

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"Paratii"
Autor: Amyr Klink
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 264
Quanto: R$ 43,50
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 e no site da Livraria da Folha

 
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