Livraria da Folha

 
03/12/2009 - 17h30

Clarice Lispector era uma mulher insolúvel, dizia Paulo Francis; leia trecho de livro

da Livraria da Folha

"Clarice: Uma Vida que se Conta" chegou, nesta quinta-feira (3), às livrarias. São mais de 650 páginas destrinchando a vida e a obra da Clarice Lispector (1920-1977). A autora é Nadia Battella Gotlib, professora da USP (Universidade de São Paulo), que possui outras obras sobre a escritora.

Divulgação/Roberta Costa
Professora Nádia Battela Gotlib, autora de biografia de Lispector lançada pela Edusp
Professora Nádia Battela Gotlib, autora de biografia de Lispector lançada pela Edusp

A biografia chega em uma edição ampliada e revisada, já que foi publicada pela primeira vez em 1995 pela editora Ática. Na época, foram cinco edições, e o livro esgotou. Agora, a Edusp lança "Clarice: Uma Vida que se Conta" quase um mês após sair "Clarice," (Cosac Naify), do jornalista norte-americano Benjamin Moser.

A obra de Gotlib é mais didática e abrangente. Cada capítulo se dedica ao local para onde Lispector migrou e viveu. "Da Rússia a Maceió e Recife", "No Rio de Janeiro", "Notícias do Brasil na Europa", "Notícias do Brasil nos Estados Unidos", "De volta ao Brasil".

Além dos lançamentos da Cosac Naify e da Edusp, a editora Rocco também colocou no mercado o livro "Clarice na Cabeceira", em que 22 personalidades indicam e comentam contos de Lispector --cada um é acompanhado de um texto onde famosos revelam o quanto as palavras da escritora têm repercutido em suas vidas. Em seguida, há a íntegra do conto recomendado.

Leia trecho de "Clarice: Uma Vida que se Conta".

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Divulgação
"Clarice: Uma Vida que se Conta" chega às livrarias nesta semana
"Clarice: Uma Vida que se Conta" ganha edição ampliada e revista

Segundo o filho mais novo, Paulo, era vaidosa e mãe dedicada, que escrevia com a máquina ao colo para poder ficar perto dos filhos. E era uma pessoa muito sofrida, para a irmã Tania Kaufmann. De fato, é a marca do sofrimento um dos traços constantes de seus vários perfis, e foi ele enfaticamente reconhecido pelo crítico Tristão de Athayde, que registrou causas possíveis: "Marcada pela solidão. Marcada pelo grande amor de sua vida. Marcada pela luta constante contra a quase miséria material. Marcada pelas mãos maceradas pelo fogo, em defesa da vida de um filho. E pela sombra da insanidade rondando a vida do outro".

Já o grande amigo, o jornalista e escritor Otto Lara Resende, volta-se para causas mais longínquas. Ciente da sua origem russa e judaica, reconhece que na vida de Clarice deve ter havido "um choque", ou "um encontro e confronto de culturas", mas que "Clarice era uma pessoa diferente. Seu exílio era de outra natureza". Explica: "Escrevendo ou conversando, vivendo como dona-de-casa ou como expoente de nossas letras, ela se deixava conduzir por uma espécie de compulsiva intuição. Era o seu tanto adivinha". E conclui: "Clarice é uma aventura espiritual. Ninguém passa por ela impune. Ela liga e religa o mistério da vida. E o religioso silêncio da morte".

Nessa mesma linha, embora de outro ponto de vista, o amigo, escritor e psiquiatra Hélio Pellegrino reconhece nela "uma personalidade lisérgica". E esclarece: "Para ela se abriam as portas da percepção, de modo a transformar-se o mundo num espetáculo de vertiginosa complexidade, profundidade e vigor. Clarice via demais, e o sofrimento lhe brotava da crispação de suas retinas expostas às agulhas de luz que saltam do coração selvagem da vida. [...] Vidente e visionária, Clarice era fustigada crucificada pelo excesso de estímulos, conscientes e inconscientes, que tinha de domar".

No quadro de intensa experiência íntima, a literatura surge como fonte de equilíbrio salvador: "Nadadora exímia, manteve-se à tona através do seu gênio literário", afirma ainda Hélio Pellegrino. A literatura, no entanto, não consegue livrá-la de crises, quando tomava muitos calmantes e quando ela mesma, por causa desse vício, providenciava suas breves e sucessivas internações em hospitais, nos últimos anos de vida, como lembra seu amigo e compadre, o crítico Affonso Romano de Sant'Anna. Vivia, pois, mergulhada num sofrido mundo obscuro.

De fato, Clarice tinha uma "compulsão para se aprofundar na angústia", observa o diplomata Lauro Escorel. "Mas cultivava essa angústia, dramatizava", complementa Sara Escorel. Assim, vida e representação se embaralham e se misturam.

E talvez a visão mais radical tenha sido a do jornalista Paulo Francis, ao admitir que "Clarice era uma mulher insolúvel" e que ela "sabia disso". Quanto aos motivos, refere-se a "uma vida pessoal complicada". Menciona a solidão, a luta pela sobrevivência, o acidente em que queimou partes do corpo, a sua morte devido ao câncer, lembrando depoimento da própria escritora: "Ela me disse diversas vezes que terminaria tragicamente. Converteu-se na sua própria ficção. É o melhor epitáfio possível para Clarice".

Próxima. Distante. Vaidosa. Terna. Sofrida. Lisérgica. Vidente. Visionária. Intuitiva. Adivinha. Estrangeira. Enigmática. Simples. Angustiada. Dramática. Judia. Insolúvel. Esses são alguns dos traços que compõem os diferentes perfis de Clarice, diferentemente vistos pela empregada, pela vizinha, pelos parentes, amigos, jornalistas, críticos, escritores. Mas, ao passar por eles, é preciso considerá-las apenas como vestígios de uma identidade, traços de um "ser quase" Clarice, lembrando o que ela mesma certa vez contou a respeito de uma amiga sua: " [...] uma amiga minha foi tirar retrato de uma baiana, e ela não deixou: 'Minha alma você não tira'".

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"Clarice: Uma Vida que se Conta"
Autora: Nadia Battella Gotlib
Editora: Edusp
Páginas: 656
Quanto: R$ 62
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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