Livraria da Folha

 
04/12/2009 - 12h20

"Há espaço para todo o tipo de vampiros", diz autor de "Anno Dracula"

FERNANDA CORREIA
Colaboração para a Livraria da Folha

De naves espaciais a história alternativa, a ficção científica é um dos tipos de literatura mais abrangentes. Nela é possível encontrar humanos convivendo com robôs ou replicantes, como em "Eu, Robô" ou "O Caçador de Andróides"; ou até mesmo imaginar como teria ficado a ordem mundial caso Adolph Hitler ganhasse a Segunda Guerra, tema de "O Homem do Castelo Alto".

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Para Newman, vampiros fascinam por serem os monstros mais sexys
Para Newman, vampiros fascinam por serem os monstros mais sexys

Um campo tão vasto permite até que se concebam finais alternativos para grandes clássicos. E é exatamente isso que Kim Newman faz em "Anno Dracula", publicado pela primeira vez em 1992 e que somente agora chega ao Brasil. Nele, imagina-se o que teria acontecido se Van Helsing e seus companheiros não tivessem conseguido derrotar o Conde Drácula e salvar Mina Harker. O Príncipe das Trevas estabelece-se na Inglaterra, desposa a rainha Vitória e dá início a um reinado de terror, no qual o mundo conhece a existência dos vampiros e grande parte dos ingleses está sendo transformado.

O sucesso desta história, que coloca os seres das trevas em uma posição completamente diferente --controlando o poder e enfrentando algumas dificuldades humanas, resultou em duas continuações chamadas "The Bloody red Baron" e "Dracula Cha Cha Cha".

Newman segue em seu texto a estética steampunk, ramo da ficção científica que foca especialmente a era Vitoriana e que retrata a tecnologia mecânica a vapor altamente evoluída, misturando diversas referências. Jornalista e crítico de cinema, escreveu seu primeiro livro em 1985, em parceria com o quadrinista e escritor Neil Gaiman, de quem é amigo.

Em entrevista à Livraria da Folha, o escritor revela como resolveu continuar a história de Bram Stoker, comenta a febre dos vampiros teens que vêm surgindo e a fascinação exercida por essas criaturas, além de falar sobre Zé do Caixão e sua parceria e amizade com Neil Gaiman.

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Drácula venceu Van Helsing e tornou-se rei da Inglaterra em livro
Drácula venceu Van Helsing e tornou-se rei da Inglaterra em livro

Livraria da Folha - Por que continuar Drácula? E de uma forma tão inesperada, já que modifica todo o final do original de Bram Stoker?

Kim Newman - Foi assim que "Anno Dracula" evoluiu. Na Universidade, em 1978, eu fiz um curso chamado "Revolução Vitoriana Tardia", ministrado pelo poeta Laurence Lerner e Normam Mackenzie (biógrafo de H. G. Wells), para o qual eu escrevi a tese ("O Apocalipse Secular: O Fim do Mundo Através das Ficções do Século") que mais tarde surgiu como trabalho do protagonista de meu terceiro romance, Jago. Para a tese, eu li narrativas sobre a invasão ("The Battle of Dorking", de George Chesney; "The War in the Air", de Wells; "When William Came", de Saki), com fantasia inglesa inundada por seus inimigos (normalmente os alemães). Eu já tinha interesse por história alternativa de ficção científica, e reconheci nestas histórias, na maioria das vezes esquecidas, as precursoras de muitas histórias do século 20 que imaginam um final alternativo para a Segunda Guerra Mundial com a ocupação do Reino Unido pelos nazistas (como "SS/GB", de Len Deighton e "It Happened Here", filme de Kevin Brownlow). Em uma nota de rodapé de meu capítulo sobre invasões, eu descrevo a campanha de conquista de Drácula no romance de Stoker, de 1897, como "uma invasão de um homem só".

Não tenho certeza de quando fiz todas as conexões, mas em algum momento perto dos anos 1980 me ocorreu que esta poderia ser uma história potencial em um desfecho alternativo em que Drácula derrota seus inimigos e realiza sua intenção declarada de conquistar o Reino Unido. Isto ainda me parece algum desapontamento com o vilão de Stoker, depois de todo o seu meticuloso planejamento e com 500 anos para tramar monstruosidades sob o seu disfarce não tenha chegado mais cedo ao Reino Unido, feito suas trapaças e espalhado as sementes de sua eventual destruição por conta da perseguição desafortunada da esposa de um advogado provinciano. Van Helsing descreve o projeto de Drácula no Reino Unido para se tornar "o pai ou o promotor de uma nova ordem de seres, cujo caminho de conduzir através da Morte, não da Vida". No entanto, Stoker alegoriza o ataque de Drácula ao Reino Unido como um todo a partir da investida contra a família Vitoriana, um emblema de todas as coisas que ele preza e vê como frágeis. Isto me tocou verdadeiramente como um interessante longo caminho para explorar o tipo de Inglaterra e de mundo que poderíamos ter como resultado se Van Helsing e sua família de destemidos caçadores de vampiro fossem derrotados, e Drácula fosse permitido dar origem e promover sua nova ordem.

Livraria da Folha - Escreveria a mesma história nos dias de hoje? Se não, quais alterações faria?

Newman - Esta é uma pergunta difícil, e provavelmente uma que eu não deveria pensar muito para evitar me tornar autoconsciente. Eu escrevi continuações -- "The Bloody Red Baron", "Dracula Cha Cha Cha" e uma série de histórias que devem, eventualmente, tornar-se um quarto, Johnny Alucard -- e eu tive naturalmente que revisitar e revisar situações e personagens de "Anno Dracula" nestes. Logo depois que o livro saiu, eu fiz um projeto de roteiro - cujas características têm mudado por anos, mas sempre parecem muito caras para serem feitas - e tive a oportunidade de adaptar alguns pontos da história e dos personagens. Na verdade, esse processo começou ainda mais cedo: antes do romance, eu escrevi uma versão em tamanho de novela (como "Red Reign") publicada no "The Mammoth Book of Vampires", de Stephen Jones; e fiz algumas mudanças significantes (incluindo a morte de um personagem principal, que estava vivo no livro) entre o que ficou na história. Muitas das alterações no roteiro foram impostas por produtores, mas poderiam muito bem fazer sentido: minha concepção inicial do herói, Charles Beauregard, era que ele era o tipo de detetive que aparece na cena do crime e faz as perguntas corretas para obter as pistas ou conseguir informações importantes; no roteiro, ele tornou-se alguém que sabe todas as respostas, simplesmente para o protagonista poder falar com os outros sobre as coisas ao invés de ouvir e balançar a cabeça. Isto pode ter mais a ver com as diferenças entre filme e livro como mídia do que com algo específico para "Anno Dracula". Há um par de coisas no roteiro que eu queria ter pensado quando escrevi o livro - mas eu resisti à tentação de fazer qualquer mudança nas edições subsequentes, embora não descarte usar algo desse material em outras coisas.

Livraria da Folha - Quais as suas inspirações na hora de escrever?

Newman - Eu normalmente entro em sincronia com meus personagens e gosto de estar com eles. Eu também gosto de inventar as coisas. Surpreendendo-me com a narrativa ou com os cenários, deixando a prosa de lado (como muitos escritores, para mim o melhor de tudo é reescrever - com alguns de meus livros, eu poderia felizmente ainda escrevê-los por anos), imaginando o que aconteceria depois (eu normalmente sei como terminá-los, mas não exatamente como chegar lá).

Livraria da Folha - Por que os vampiros atraem tanto o imaginário do público?

Newman - De todos os grandes monstros, vampiros são os mais interessantes, porque eles são realmente terríveis, criaturas assustadoras, mas também inteligentes o bastante para você manter uma conversa e serem ícones de algum tipo de estilo. Eles podem ser colocados em situações diferentes - mais do que, digamos, lobisomens e múmias. Parte da diversão de "Anno Dracula" para mim foi descobrir quais dessas muitas situações eu poderia colocá-los, de monstros diabólicos a simpáticos superhumanos, em um único universo. Eu penso que persistência do tema de vampiros não cabe em uma única interpretação, mas no fato de que há muitas possibilidades de expressão do mito. Vampiros são, sem dúvida, os mais sexys dos grandes monstros, o que certamente ajuda.

Livraria da Folha - O que acha da nova safra de romances de vampiros, uma vez que abandonaram quase completamente o campo do terror?

Newman - Eu estou um pouco atrasado na minha leitura de vampiros, ainda que me mantenha em dia com os filmes. Eu li "Crepúsculo", mas não as suas sequências. Eu não acredito que existam romances de vampiros que não sejam exatamente de horror. Independente de qualquer coisa, meus próprios livros de vampiro são apenas parcialmente de horror, com ficção científica steampunk, sátira, drama histórico, detetive, romance e política misturados. Eu acho que há espaço para todos os tipos de vampiro, até para o Count Duckula [animação britânica dos anos 1980 que trazia um pato vampiro como protagonista].

Livraria da Folha - Ao que você credita a demora para sua obra chegar ao Brasil? Gostaria que as continuações viessem?

Newman - Não tenho uma resposta real para isso. Ele foi traduzido em muitas línguas, e foi popular em muitos lugares -- especialmente na Alemanha e no Japão -- mas por alguma razão foi negligenciado no Brasil e em Portugal até agora. Eu estou muito feliz que ele está chegando e espero ser bem recebido. No terceiro romance, "Dracula Cha Cha Cha", eu coloquei um toque do personagem de terror brasileiro mais conhecido internacionalmente, o malvado agente funerário Zé do Caixão, de José Mojica Marins.

Livraria da Folha - Como iniciou a parceria com Neil Gaiman? Pensam em escrever algo juntos novamente?

Newman - Eu conheci Neil em um pub em 1984, e ele queria fazer um livro com citações de ficção científica, o qual nós acabamos por co-editar. A ideia era dele, mas levou meu título ("Ghastly Beyond Belief"), formatação de nosso adorável editor Faith Brooker. Então, junto com outras pessoas em uma organização livre chamada "The Peace and Love Corporation", escrevemos um monte de artigos divertidos para revistas e alguns outros esboços de projetos que vão desde um jogo de computador, o qual não era tão factível na época (mas pode ser antiquado agora), a um livro de humor chamado "How to Lose Friends and Irritate People" (alguém depois escreveu "Como Fazer Inimigos e Alienar Pessoas", e nós o odiamos por isso).

Neste momento, Neil e eu estávamos muito ocupados (e normalmente em países diferentes), mas ocasionalmente falamos sobre reunir textos para uma coletânea de humor. Um deles foi reimpresso em um livro sobre Neil, mas outros estão ficaram abandonados em nossas memórias ou em revistas de comédia. Deve ser bom desenterrá-los novamente e ver se algum ainda é engraçado. Eugene Byrne, outro cara com quem sempre estamos, sempre nos lembra que íamos escrever um livro juntos. A parte dele já está escrita. Então nós deveríamos, até certo ponto, terminá-lo. É um tipo de romance de ficção científica engraçado chamado "Neutrino Junction". Ele foi concebido na década de 1980, então ele pode soar bem anos 1980. É uma história sobre um cara que é um perdedor, em um futuro no qual tudo é horrível. Na verdade, é como o mundo que nós temos --eu acho que nosso vilão principal era uma versão do Ronald McDonald. Eu lembro de Neil escrevendo uma sinopse de um trecho, o qual seria mais pertinente agora, em que o herói tem que roubar o túmulo de Michael Jackson. É como ter um mundo de produtos genéricos e homogeneização. É muito, muito sombrio, mas nós procuramos fazer um futuro absurdamente engraçado, cyberpunk. A heroína é uma freira, que foi uma assassina. Eugene escreveu 50 páginas disso. Nós nunca fomos além.

"Anno Dracula"
Autor: Kim Newman
Editora: Aleph
Páginas: 376
Quanto: R$ 49,90
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou no site da Livraria da Folha

 
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