Livraria da Folha

 
15/12/2009 - 15h26

Niemeyer fala sobre o projeto do Memorial da América Latina; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Livro de memórias de Niemeyer, ilustrado com caderno de fotos
Livro de memórias de Niemeyer, ilustrado com caderno de fotos

Nascido em 15 de dezembro de 1907, Oscar Niemeyer é um arquiteto brasileiro, considerado um dos nomes mais influentes na Arquitetura Moderna internacional. Uma das maiores personalidades deste século, Niemeyer é também um versátil contador de histórias. Qualidade revelada no livro "As Curvas do Tempo", onde reúne algumas de suas memórias.

Nele, Niemeyer faz uma seleção de textos de caráter afetivo, quando um dos temas é a família, ou a arquitetura e as artes que a integram. Comenta sobre livros e os autores que sente prazer em ler. O Brasil e o Rio de Janeiro (em especial a vista para o mar das janelas de seu escritório) que ele sempre sente saudades quando passa muito tempo fora. É um diário pouco datado que oferece para o leitor uma visão de Niemeyer enquanto arquiteto, artista, escritor, criador, cidadão e amigo. Uma síntese autobiográfica.

Leia trecho do livro abaixo.

*

Sábados e domingos são os dias em que mais trabalho no meu escritório da Avenida Atlântica. Sozinho, a folhear alguns livros, escrever um texto qualquer, desenhar, pensar na vida ou simplesmente olhar o belo mar de Copacabana.

Dizem que Descartes ficava na cama até 11 horas da manhã a sonhar suas teorias, e isso é o que procuro fazer, nesses dias em que a maioria vai para a praia ou resolve assistir ao futebol.
E, nessa pausa aparente me examino melhor, numa espécie de autocrítica que me faz muito bem.

Hoje, sábado, num desses momentos de ócio, lembrei que poderia escrever um livro contando minha vida e meus problemas de arquiteto, nesse curto passeio que o destino oferece. Um livro que definisse minhas atitudes e marcasse as razões e os sentimentos mais íntimos que influenciaram minha existência tão pouco importante de ser humano. O meu apego aos problemas da vida, deste universo fantástico em que vivemos sem para isso termos sido convidados. Um livro que mostrasse ter eu sempre encontrado tempo para pensar maior, sentir como a vida é injusta, como nossos irmãos mais pobres são explorados e esquecidos.

Nele contaria minhas origens, defeitos e qualidades, minha descrença diante deste mundo absurdo e minha determinação de juntar-me aos mais bravos e com eles tentar melhorá-lo um pouco. E falaria também desse ser oculto que a informação genética inventou e dentro de nós existe, responsável em parte pelas nossas ações e atitudes. Contar com ele é lúbrico e cheio de imaginação, levando-me pelos caminhos do sexo, da invenção arquitetural e da fantasia.

Certa vez, Rodrigo M. F. de Andrade, querido amigo, me aconselhou: "vai escrevendo, corrige depois". É o que vou fazer, caro leitor, preocupado em ser simples, espontâneo, em manter uma linguagem corrida e não ocupá-lo demasiadamente.

Começarei lembrando de onde venho. Meu nome deveria ser Oscar Ribeiro Soares ou Oscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares, mas prevaleceu o nome estrangeiro e acabei conhecido como Oscar Niemeyer.

Minhas origens são muitas, o que me agrada particularmente: Ribeiro e Soares, portugueses; Almeida, árabe; e Niemeyer, alemão. E isso sem levar em conta algum negro ou índio que, sem o sabermos, também faça parte da nossa família.

(...)

Quando surgiu a idéia de se construir o Memorial da América Latina, em São Paulo, e me convidaram para projetá-lo, senti logo como seria importante para mim colaborar numa obra dessa natureza. Um apelo, uma mensagem de fé e solidariedade a todos os povos latino-americanos, convocando-os para que juntos, solitários, trocando experiências, lutassem melhor pelas reivindicações deste continente tão esquecido e ameaçado.

E lá está o Memorial já construído, todo branco, todo feito de técnica e fantasia, com suas vigas de 90 e 70 metros, suas finas e curvas placas de concreto, belo e monumental como exige a grandeza dessa iniciativa tão bem concebida por Orestes Quércia.

Durante meses acompanhei atento sua construção. A obra me emocionava. Dera-lhe toda a minha dedicação, mas alguma coisa ainda faltava, alguma coisa que me integrasse no sentido político do memorial, para mim mais importante do que sua arquitetura.

E desenhei aquela grande mão de concreto, espalmada, com os dedos abertos em desespero, representando a América Latina, com o sangue a escorrer até o punho. Para explicar minha escultura escrevi: "Suor, sangue e pobreza marcaram a história desta América latina tão desarticulada e oprimida. Agora urge reajustá-la, uni-la, transformá-la num monobloco intocável, capaz de fazê-la independente e feliz".

E a mão foi construída com seus sete metros de altura. Não representa uma provocação, mas uma denúncia e uma advertência. Lembra um passado de sombras e um futuro coberto de dúvidas e esperanças. E estas agora transformadas em sangue e revolta, com os Estados Unidos a invadirem o panamá. Uma nação pequena e desprotegida, um crime que deve provocar protesto de todos os países que se dizem democracias, de todos os homens que se dizem democratas, defensores dos povos oprimidos, da justiça e da liberdade.

Por outro lado, as razões apresentadas pelo governo dos Estados Unidos - defesa da democracia - tornaram-se ridículas ao lembrarmos como deliberadamente, a esqueceram, ao apoiarem, durante anos, as ditaduras de América Latina.

Cumpre reagir. Cumpre protestar. Cumpre não aceitar essa intervenção criminosa na nossa América latina explorada e ofendida.

E a grande mão de concreto, que é o meu protesto antecipado, assume outra dimensão. Já não é uma simples escultura, mas um apelo para os que visitam o Memorial sentirem o drama que vivem nossos irmãos deste continente, ainda pobres, ainda subdesenvolvidos, mas já conscientes dos seus direitos, das suas angústias e esperanças. (...)

"As Curvas do Tempo"
Autor: Oscar Niemeyer
Editora: Editora Revan
Páginas: 320
Quanto: R$ 45,00
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
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