Livraria da Folha

 
22/12/2009 - 18h50

Para Adorno, nenhuma filosofia pode ser solidária com um fato negativo; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Cada colaborador faz um balanço de como os pensadores foram lidos
Cada colaborador faz um balanço de como os pensadores foram lidos

Max Weber, Sigmund Freud, Martin Heidegger, Walter Benjamin e Theodor Adorno comentados respectivamente por Gabriel Cohn, Renato Mezan, Zejlko Loparic, Jeanne Marie-Gagnebin e Vladimir Safatle. Em "Pensamento Alemão no Século XX (Vol. 1)" (Cosac Naify, 2009) há esse encontro filosófico e atemporal.

Resultado de um ciclo de conferências --realizado entre setembro e novembro de 2007, no Goethe-Institut--, o livro reúne 12 ensaios de especialistas brasileiros na obra de grandes pensadores alemães do século 20, que marcaram profundamente a história do pensamento universal. Cada colaborador faz um balanço de como esses pensadores foram lidos no Brasil, influenciando distintas áreas do conhecimento.

No trecho do capítulo "Theodor Adorno: a unidade de uma experiência filosófica plural", reproduzido abaixo, Vladimir Safatle --autor de "Folha Explica: Lacan" -- destaca que a filosofia de Adorno é marcada por Auschwitz. O professor do Departamento de Filosofia da USP também ressalta a importância da estética na formação do pensamento adorniano, entre outros temas relacionados.

*

Theodor Adorno: a unidade de uma experiência filosófica plural

(...)

Um acontecimento gerador

Se a questão que fornece a consistência da filosofia adorniana diz respeito à possibilidade de pensar um sujeito que não seja mais a entificação dos princípios de identidade, unidade e autodeterminação, questão essa que recebe sua forma canônica por meio do imperativo de, com a força do sujeito, quebrar a ilusão da subjetividade constitutiva, então devemos ainda nos perguntar: qual acontecimento gera essa questão? Qual é o acontecimento histórico a respeito do qual a filosofia de Adorno será sempre fiel e a partir do qual ela medirá seu desenvolvimento?

A pergunta é importante, uma vez que costuma ser respondida de maneira equivocada. Não são poucos aqueles que dirão que a filosofia de Adorno é marcada, sobretudo, por Auschwitz, a ponto de estabelecer, como imperativo categórico para a contemporaneidade, "tudo fazer para que Auschwitz nunca mais ocorra". Um dos pensadores mais recentes a insistir nesse ponto foi Alain Badiou, para quem, em Adorno:

Trata-se de saber quais são as redes e condições de possibilidade de um pensamento após Auschwitz, ou seja, de um pensamento que, em vista do que foi Auschwitz, não seja um pensamento obsceno, mas antes um pensamento cuja dignidade seria preservada devido à razão de ele ser um pensamento após Auschwitz.14

Assim, Auschwitz é o nome de uma certa "catástrofe do pensamento identitário".

De fato, Adorno não cansa de insistir que "nos campos de concentração não era o indivíduo que morria, mas o exemplar", pois a indiferença em relação ao sofrimento presente na transformação do assassinato em operação industrial e desafetada seria o resultado direto de um modo de pensar, de uma forma de vida que perdeu toda capacidade de se deixar tocar pela irredutibilidade singular do sensível. Por isso, uma afirmação como:

O que os sádicos diziam às suas vítimas nos campos de concentração: - Amanhã, você partirá por esta chaminé como fumaça em direção ao céu; indica esta indiferença em relação à vida de cada singular (Einzelnen) para a qual a história caminha. Em sua liberdade formal, o singular já é tão intercambiável como sob as botas dos que irão liquidá-lo. 15

Ou seja, a catástrofe histórica representada por Auschwitz não seria outra coisa que a figura mais bem acabada de uma forma de vida, como a nossa, que seria incapaz de viver com o que não se submete à forma de identidade, com o que rompe com um princípio de unidade cuja maior entificação seria a própria função do eu moderno. Contra isso, teríamos uma filosofia assombrada pelo caráter totalitário do uno, pela exigência de pautar a política pela necessidade de evitar o sofrimento e de sustentar respeito a alteridade (um pouco como se Adorno não passasse de um Lévinas precoce). Posições que, hoje em dia, poderiam ser aceitas sem maiores dificuldades por todos os que compreendem que a função fundamental do pensamento é a tarefa negativa e reativa de simplesmente "evitar a catástrofe". Posição de quem se desespera a respeito da força geradora e revolucionária da práxis.

É verdade que Adorno formulará um critério moral que pode ser enunciado da seguinte forma: o verdadeiro ato moral é aquele capaz de deixar-se guiar pelo afastamento do sofrimento. No entanto, uma proposição desta natureza é temerária por permitir, inicialmente, várias interpretações. É possível compreender esse afastamento do sofrimento como um imperativo utilitarista (nossos atos são guiados pelo cálculo do prazer e pelo afastamento do desprazer) ou ainda como um imperativo ligado a formas de política da vitimização (os sujeitos da ação devem ser vistos inicialmente como vítimas em potencial).

No entanto, é possível outra interpretação, substancialmente diferente, em relação ao pensamento adorniano. A esse respeito, tentemos tirar todas as consequências do fato de que, para Adorno, mesmo o paradigma do campo de concentração não é resultante da irracionalidade de um pretenso mal radical, mas da estrutura paranoica do eu moderno que projeta compulsivamente para fora de si sua própria infelicidade, sua própria impossibilidade de se reconhecer naquilo que não se conforma à imagem de si.16 Ou seja, ele é, de certa forma, o extremo de uma patologia vinculada à implementação social da metafísica da identidade. O que leva a perguntar sobre a existência, para Adorno, de um acontecimento capaz de levar o eu a se confrontar com o que parece lhe dissolver, um acontecimento gerador de novas formas para o pensar. É nesse ponto que se deve levar às últimas consequências a importância da estética para a constituição do programa filosófico adorniano. Pois nenhuma filosofia pode ser solidária com um acontecimento meramente negativo (evitar algo, impedir que algo aconteça novamente etc). Toda verdadeira filosofia traz consigo a exigência de pensar a partir de um acontecimento portador de promessas instauradoras.

De maneira esquemática, pode-se dizer que o verdadeiro acontecimento gerador da filosofia adorniana é o conjunto das possibilidades estéticas abertas pela chamada Segunda Escola de Viena, em especial nas figuras de Alban Berg e de Arnold Schoenberg. Não se deve ter medo de afirmar que toda sua filosofia é a elaboração contínua e rigorosa das potencialidades abertas pelas expectativas vanguardistas da estética musical. Mas para entender melhor este ponto, é necessário afinal de contas compreender melhor o que significa, para Adorno, pensar sobre a música, ou ainda, o que a experiência da música nos traz.

Ao escrever seu mais importante livro sobre música, Filosofia da nova música, de 1948, Adorno viu-se obrigado a iniciar desculpando-se:

Pode parecer cínico, depois do que aconteceu na Europa e de tudo o que ainda nos ameaça, dissipar tempo e energia intelectual decifrando problemas esotéricos da técnica moderna de composição.17

Essa frase no fundo pode ser traduzida da seguinte maneira: os problemas da racionalidade musical parecem tão autônomos em relação àquelas questões gerais postas pela efetividade ao pensamento filosófico que eles parecem ser desprovidos de relevância real, para além de um pequeno círculo de especialistas. Afinal, por que regras de harmonia, problemas de sintaxe musical e obsolescência de padrões de construção musical interessariam outros que não os músicos?

Para Adorno, a resposta adorniana seria: porque a história das formas musicais é um setor privilegiado, mas quase esquecido, da história da razão. É preciso lembrar desta antiga constatação platônica segundo a qual a música indica fundamentalmente critérios de organização, o que explica porque "nunca se abalam os gêneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade."18 Se os gêneros musicais têm o poder de abalar os alicerces da cidade, é porque as formas musicais se colocam como dispositivos que aspiram fornecer critérios de organização racional daquilo que aparece primeiramente como natureza (o som) e expressão das funções intencionais do sujeito.

Esse ponto merece maior atenção. A forma musical é produzida a partir de decisões sobre os protocolos de identidade e diferença entre elementos (consonância e dissonância), sobre os problemas de partilha entre o que é racional e o que é irracional (som e ruído), sobre o que é necessário e o que é contingente (desenvolvimento e acontecimento). Ela se produz ainda a partir de decisões sobre a relação entre razão e natureza (a música como mimese das leis naturais ou como plano autônomo do que se afirma contra toda ilusão de naturalidade) e sobre os regimes de intuição do espaço e do tempo. É esta gama de dispositivos que nos permite afirmar que a forma musical nasce de uma decisão sobre os critérios válidos de racionalidade. Nesse sentido, desde a juventude, Adorno acreditava que as experiências musicais da Segunda Escola de Viena haviam produzido as condições de possibilidade para pensarmos um conceito renovado de sujeito e de razão. O que o levou a afirmar, de maneira peremptória: "em relação à especificidade que o último Schoenberg foi capaz de realizar como compositor, há algo a ser ganho para o conhecimento filosófico."19

14. Alain Badiou, De la Dialectique negative par rapport à un certain bilan de Wagner, mimeo.
15. Theodor Adorno, Negative Dialektik, p. 355.
16. Lembremos do sentido decisivo de afirmações como: "O antissemitismo baseia-se numa falsa projeção. Ele é o reverso da mimese genuína, profundamente aparentada à mimese que foi recalcada, talvez o traço caracterial patológico em que esta se sedimenta. Só amimese se torna semelhante ao mundo ambiente, a fala - projeção torna o mundo ambiente semelhante a ela". T. Adorno e M. Horkheimer, op. cit., p. 174.
17. Theodor Adorno, Philosophie der neuen Musik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, pp. 10-11.
18. Platão, A república. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988, 424c.
19. Theodor Adorno, "Über das gegenwärtige Verhältnis von Philosophie und Musik", in Gesammelte Schriften xviii, Digitale Bibliotheke, pp. 166-167.

*

"Pensamento Alemão no Século XX (Vol. 1)"
Organizadores: Jorge de Almeida e Wolfgang Bader
Editora: Cosac Naify
Páginas: 312
Quanto: R$ 69
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
Voltar ao topo da página