Livraria da Folha

 
01/01/2010 - 09h30

"Beethoven Era 1/16 Negro" retrata busca dos sul-africanos por identidade

da Livraria da Folha

Em ano de Copa do Mundo na África do Sul, nada melhor do que entender um pouco melhor o que acontece no país. No livro "Beethoven Era 1/16 Negro", a autora Nadine Gordimer apresenta 13 contos que exploram a busca dos sul-africanos por uma identidade após a queda do apartheid, o regime racista que segregava brancos e negros.

Quase duas décadas depois da queda deste sistema, no entanto, as feridas ainda estão cicatrizando e uma nova ordem social está gradualmente se consolidando. Incidentes raciais ainda ocorrem eventualmente, como o caso dos estudantes brancos que fizeram um vídeo considerado racista em 2008 (leia aqui), conforme Fábio Zanini relata em "Pé na África". Apesar da existência de casos isolados como este, o governo e a população se empenham em acabar com a desigualdade e a discriminação, e a realização da Copa no país não deixa de ser um reconhecimento internacional pelos esforços neste sentido.

Na narrativa que dá título à obra, um professor universitário londrino resolve viajar a uma pequena cidade sul-africana em busca de eventuais parentes. Durante cinco anos, seu bisavô explorou minas de diamante da cidade de Kimberley e seu descendente acredita na possibilidade de encontrar algum primo distante e incógnito na região.

Ressaltando o simbolismo dessa busca inusitada, a narradora comenta que "outrora havia negros, pobres diabos, querendo ser brancos. Agora há um branco, pobre diabo, querendo se dizer negro. O segredo é o mesmo". Leia a seguir a íntegra deste texto.

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Beethoven era 1/16 negro

Divulgação
Beethoven Era 1/16 Negro
13 contos relatam a procura dos sul-africanos por uma identidade

Beethoven era 1/16 negro

anuncia o apresentador de rádio de um programa de música clássica, juntamente com o nome dos músicos que serão ouvidos nos Quartetos para Cordas no 13, op. 130, e no 16, op. 135.

O apresentador declara isso como reparação a Beethoven? Sua voz e cadência o entregam como irremediavelmente branco. Será que 1/16 é o tácito desejo dele mesmo.

Houve tempo em que tinha negro querendo ser branco.

Agora tem branco querendo ser negro.

O segredo é o mesmo.

Frederick Morris (claro que esse não é o nome dele, logo você vai perceber que escrevo sobre mim, um homem com as mesmas iniciais) é um acadêmico que dá aula de biologia e que na época do apartheid era ativista e entre outras embromações um cartunista amador de certo talento, que desenhava cartazes retratando os líderes do regime como os assassinos impiedosos que eram de fato e, mais intrépido ainda, se juntava a outras pessoas para colar os cartazes nos muros da cidade. Na universidade, na era do novo milênio, não é um dos que o corpo estudantil (uma alta nas matrículas robustamente negras, que ele aprova) aponta como especialmente censurável durante os protestos contra a velha turma de brancos que inibe a transformação de um clube de campo intelectual em uma instituição não racial com maioria negra (fala politicamente correta). Os estudantes também não dão muito valor ao apoio de brancos como ele, dissidente do que é tido como o outro, o corpo embecado. Não se pode apoiar o outro. É esse o raciocínio? A história nunca acaba; assim como a biologia que funciona em cada ser.

Um dezesseis avos. Esse pingo por acaso parece suficiente para ser afirmado fora de contexto? O que importa uma distante linhagem de sangue na gênese de um gênio? Depois tem Púchkin, se quiser; sua afirmação é substancial, olhe para o frisado do cabelo - não é nenhum branco ou branca na moda, com um halo afro na cabeça, e veio, diz-se, da Etiópia.

Talvez porque esteja ficando mais velho - Morris não sabe que ainda é jovem o bastante para pensar que cinquenta e dois é velho -, ocasionalmente reflete sobre o que viveu em sua linha de vida anterior. Divorciado pela segunda vez; isso é igualmente passado, ainda que mais imediato. Seu pai também não fora um grande sucesso como homem de família. Família: o bisavô, morto muito antes do nascimento do garoto - lá está ele, um belo homem, alguém numa foto numa moldura oval, traços fortes que ninguém herdou. Há histórias sobre esse ancestral, provavelmente narradas em reuniões familiares que um garoto impaciente para deixar a mesa dos adultos mal ouvia. Anedotas que não constam do livro de história que se tem de aprender de cor. O que se poderia chamar de reconhecimento divertido de aventuras, circunstâncias encaradas de frente, bons tempos, numa época que outros teriam chamado de muito ruim, personagens - não se faz mais ninguém assim hoje em dia - sob a forma de inimigos aprontando tramoias, ou de forças com quem nos unimos como companhias de verdade. Nada de fatos que tenham saído de um livro de história: relatos de quem cuida dos próprios negócios em meio aos efeitos colaterais da história. Ele foi uma espécie de homem fronteiriço, não na mixórdia militar-colonial, e sim na dos caça-fortunas.

Descendente da linha masculina, Frederick Morris traz o mesmo sobrenome, claro. Walter Benjamin Morris pelo visto sempre foi chamado de Ben, quem sabe porque tenha sido de fato o Benjamin da ninhada de irmãos que não emigraram, como ele, para a África. Ninguém pelo visto sabe por que ele o fez; apenas um desejo de aventura, ou quem sabe a ambição de ficar rico que não parecia alcançável em outro lugar qualquer que não fosse Alhures. Ele podia ter optado por Yukon. Em Londres, estava preparado para herdar a delicatéssen de Hampstead, para vê-la forrada de presuntos e picles, enquanto gerenciava uma outra, de um páter famílias, nome esquecido. Era casado havia apenas um ano quando partiu. Deve ter convencido a jovem mulher de que o futuro deles dependia de sua partida em busca dos recém-descobertos diamantes num lugar longínquo chamado Kimberley, de onde voltaria rico em breve. Como uma espécie de adeus garantindo o amor entre ambos, deixou dentro dela o filho que iria nascer.

Frederick surpreende a mãe perguntando se ela por acaso tinha guardado uma pasta executiva - na verdade uma valise preta surrada - onde uma vez o pai tinha lhe dito que havia coisas sobre a família que eles deviam rever qualquer dia; ambos se esqueceram do encontro, o pai morreu antes que esse dia viesse. Frederick não tinha muita esperança de que a mãe houvesse guardado a pasta ao se mudar do que era seu lar de casada e se desfazer de objetos para os quais não havia espaço, nenhum lugar na vida que iria levar num trecho ajardinado de bangalôs elegantes desenhados por arquitetos contemporâneos. Havia algumas coisas num depósito comunitário a que todos os moradores tinham acesso. Ali, encontrou a pasta e, agachado entre os detritos do passado, soprou as traças das cartas e anotações esparsas e copiou os fatos mencionados acima. Há também fotografias montadas em madeira muito dura para seja qual for o nome que tem o maxilar das traças, e essas levou consigo, não achou que a mãe se interessaria o suficiente para ter de informá la. Há um retrato numa moldura elaborada.

O bisavô tem a mesma postura em todas as fotos, esteja ele sozinho com o fotógrafo, ao lado de uma palmeira de estúdio ou entre montes de terra mágica, as peneiras que iriam peneirar da terra as pedras brutas que são os diamantes em sua forma primitiva, negros impassíveis e mestiços encostados nas pás. Garimpeiros de Londres, Paris e Berlim - de qualquer lugar onde não há diamantes - não se apressavam em reivindicar concessões quando o juiz da largada disparava seu revólver, os homens contratados pertencentes à terra que eles controlavam eram mais rápidos que qualquer branco, faziam a reivindicação em nome dos estrangeiros e empunhavam pás e picaretas nas concessões de mineração marcadas a céu aberto. Até quando Ben Morris é fotografado num bar improvisado e lotado, seu corpo, os tendões do pescoço, a cabeça erguida bem no alto, como se tivesse parado tão imovelmente confiante - do quê? (As anotações revelam que ele escavou apenas umas poucas pedras. Quilates desprezíveis.) De virilidade. Isso é inegável, isso não foi tocado pelos caprichos do destino. Outros na foto foram subjugados e dilapidados pela falta de sorte. A aura de virilidade sexual na atitude calma, os olhos escuros, brilhantes, sempre atentos, convidativos: um chamado ao outro sexo, bem como aos diamantes fugidios. As mulheres devem tê-lo escutado e lido de um jeito que os outros homens não podiam e não conseguiam. As datas nos papéis delicadamente rendados por insetos mostram que ele não voltou de pronto, que ele garimpou com fé obstinada em sua busca e em si mesmo por mais cinco anos.

Não voltou para Londres, para a jovem mulher, viu o filho apenas uma vez, numa única visita, quando engravidou a jovem e voltou a partir. Não fez fortuna; mas deve ter aos poucos acumulado algum lucro com as pequenas pedras que os negros desenterraram da terra para ele, porque depois de cinco anos tudo indica que voltou a Londres e usou seu conhecimento recém-adquirido das pedras brutas para se estabelecer no negócio de gemas, com ligações em Amsterdã.

O bisavô nunca voltou à África. A mãe de Frederick pôde ao menos confirmar isso, tendo em vista o interesse do filho. Os membros tardios da família do velho - sua fertilidade produziu mais filhos e Frederick descende de um deles - vieram por outros motivos, vieram como médicos e advogados, empresários, malandros e animadores, e entraram no nível social que os lucros retirados da terra por rápidos prospectores de diamante e ouro proporcionavam a quem viera de além mar, um outro tipo de Alhures.

E essa é outra história. Você não é responsável pelos seus ancestrais, certo?

Mas se é assim, por que marchar debaixo de faixas cheias de slogans, ser espancado pela polícia, ser detido algumas vezes; colar cartazes subversivos nos muros. Isso também é passado. O passado só é válido se o presente o reconhece.

Como foi que aquele homem bonito, de olhar convidativo, um leve adejar característico das narinas, como se atrás de algum aroma tentador (em todas as fotos), as mãos fortes preenchidas com uma montoeira de anéis (nunca pôs a mão numa pá) esparramadas sobre as coxas vestidas com calça justa, viveu sem sua bonita companheira de Londres por tantas noites de garimpo? E nas manhãs de domingo, quando você acorda sozinho e não precisa levantar para educar as alunas nos fatos biológicos da vida por trás de traquinagens encamisadas - até mesmo um garimpeiro de diamantes deve ter ficado mais um tempo na cama de campanha, aos domingos, consciente das ondas de desejo e mulher nenhuma a quem recorrer. Cinco anos. Impossível que um homem tão obviamente saudável quanto ele passasse cinco anos sem fazer amor, descontada a rápida passagem pela cama conjugal. Pouco importa a implicação física; é muito triste. Mas é claro que não foi assim. Claro que ele não precisou escrever à jovem mulher para confessar que estava tendo um caso - isso é passado, não o protocolo sofisticado da liberdade sexual reinante nos subúrbios chiques, inimaginavelmente improvisado, bruto como os diamantes. Havia aquelas moças negras que vinham buscar as roupas dos garimpeiros para lavar (duas como pano de fundo de uma foto onde, de peito nu, um homem de punhos cerrados, curvado, trava uma falsa luta com um companheiro de barriga mole, no dormitório), e ambas (duas de café, uma de leite, era a descrição da época para as mestiças) junto ao rapaz da barraca bar, fotografado sorrindo, carregando bem no alto duas bandejas de copos. Será que foram muitas, as moças como essas, durante os anos de noites e dias de privação. Ou haveria uma especial, várias especiais, não há circunstâncias cruas, o próprio Frederick sabe disso, onde não exista a possibilidade de a ternura entrar sem ser convidada na simples necessidade de foder. E as moças. O que acontecia com as moças se na precisão do homem houvesse a concepção. Os estrangeiros que apareciam atrás dos diamantes iam e vinham, a vida real deles com as mulheres estava Alhures, intacta bem lá longe. O que acontecia? Existem filhos de filhos dessas concepções paralelas engendradas por um belo garimpeiro que voltou para sua mulher, seus filhos e seu negócio com gemas em Londres ou Amsterdã - acaso essa descendência não poderia estar morando onde ele a disseminou?

Frederick sabe, como todos num país de muitas raças, que de incidentes longínquos sempre sobrevive prova de apropriação, aqui e lá, do nome, que foi tudo o que o progenitor deixou e que foi adotado sem o conhecimento ou o consentimento dele por - sentimento, ressentimento, alguma coisa devida? Mais efeitos colaterais históricos. Não se lembrou disso por uns tempos, assim como não se lembrou do encontro com o que havia dentro da pasta preta, tão esquecida como o pai. Houve um período de renovados distúrbios na universidade, destruição de equipamentos dentro dos prédios, por trás das colunas neoclássicas; felizmente não no Departamento de Biologia.

O retrato do bisavô, em sua moldura oval com vidro convexo, que sobrevivera tanto tempo sem quebrar, continuou pendurado no lugar, em cima da escrivaninha transposta para seu novo apartamento, quando ele e sua ex-mulher dividiram as posses. As fotos fornecem menos significados que retratos pintados. Abrem menos espaço de contemplação. Mas ele está ali, ele é - uma afirmação.

Um dezesseis avos negro.

Na lista telefônica da que é agora a cidade onde os diamantes foram escavados, haverá uma lista de gente chamada Morris. Claro que sim, não é incomum e portanto não tem relevância.

Como se tivesse pedido para comprar entradas de cinema com seu cartão de crédito, ele pede à secretária que consiga a lista telefônica de determinada região. Existem Morrises e Morrisons. Em seu apartamento, digita o nome na internet, tarde da noite, sozinho. Tem um Morris diretor de teatro morando em Los Angeles e um Morris campeão de bridge na Cidade do Cabo. Ninguém, segundo essa fonte infalível, digno de nota em Kimberley.

Uma vez ou outra, ele e sobreviventes negros de passeatas de rua nas quais no passado negros e brancos protestavam se reúnem para tomar um drinque. "Sobreviventes", porque alguns dos camaradas negros (camarada porque essa forma de tratamento não era exclusiva dos comunistas) tinham ocupado postos bem mais altos nos ministérios e gabinetes. A conversa girou em torno da reforma do sistema educacional e da ação estudantil para concretizá-la. Exceto por Frederick, poucos nesse grupo de sobreviventes, todos em seus setenta ou oitenta anos, tiveram a oportunidade de uma educação superior. Não se sentiam impedidos de fazer críticas ao novo regime que eles e gente como eles estabeleceram, ou de reagir a promessas não cumpridas. - Arrebentar o campus não vai acabar com as mensalidades de alunos pobres demais para pagar. Berrar e toyi toyiar* canções de liberdade e protesto na porta da sala do reitor, isso não vai chegar às grandes orelhas do Ministério da Educação. Cara! Não existem outras táticas hoje em dia? Eles supostamente são inteligentes, estão sendo educados, mas nem tanto, e tudo em que conseguem pensar é em usar o que tínhamos, jogar pedras, arrebentar com tudo - embora os prédios, as bibliotecas, os laboratórios e sabe se lá o que mais sejam deles agora, não só dos brancos -, querem jogar fora aquilo por que lutamos, aquilo que obtivemos para eles.

Alguém pergunta, seu departamento está em ordem, nenhum dano?

Outro interfere, rindo. - Eles não botariam a mão em você, de jeito nenhum.

Frederick não sabe como pôr as coisas em ordem, os estudantes não conhecem o que ele fez no passado, e, se conhecem, não ligam, aliás por que deveriam, não sabem quem ele era, a reivindicação modesta de ser chamado de camarada. Mas isso traria todo outro debate, focalizado nele mesmo.

Quando chegou em casa, um tanto tarde, foi pego por outro ângulo, pelo visto o dos olhos do avô no retrato. Ou seria a mistura, primeiro cerveja, depois uísque, ingeridos esporadicamente.

As férias da Páscoa significam liberdade tanto do trabalho como daquele tipo de obrigação familiar que existe enquanto existe o casamento. Frederick tinha filhos com a segunda mulher, mas não era sua vez, nas condições legais de acesso, de ter o menino e a menina com ele para os feriados escolares. Houve convites de colegas da universidade e de uma atraente italiana que tinha levado para jantar e ver um filme, recentemente, mas ele disse que queria viajar para descansar. Para o litoral? Montanhas? Kimberley.

Por que diabos alguém iria querer descansar em Kimberley. Se perguntavam, ele dizia, vou ver o Grande Buraco, e quando as pessoas esqueciam o que era, tinha de lembrá-las de que era a grande boca que haviam escancarado à força na entrada da rocha vulcânica.

Nunca tinha estado em Kimberley e não conhecia ninguém lá. Ninguém, essa era a questão, a negativa. O homem cujos olhos e energia vistosa permanecem expostos sob o vidro há gerações, desde quando vivera cinco anos na África, reivindicou seus direitos. Um dezesseis avos. Certamente há homens, mulheres e filhos com parentesco mais denso que esse na corrente sanguínea de seu descendente. A lista telefônica não deu muitas pistas de onde primos, colaterais, poderiam ser encontrados na terra dos diamantes; presumindo se que os endereços dados com o número do telefone fossem de bairros bons, de brancos, em vez de indicar áreas designadas sob a velha segregação que, por toda a parte, mantém o tipo de eufemismo floreado em nomes que disfarçam a verdade e onde a maior parte dos negros e pardos, por todas as cidades, ainda vive. E essa presunção? Aquela antiga, de cor e de classe, de que o nível de gente de quem vieram as moças que o avô usava ainda devia estar na beira da periferia da nova sociedade? Por que não poderia "Morris, Walter J. S.", de "Golf Course Place", ser um mestiço que se tornara um grande negociante, proprietário da casa onde antes não tinha permissão de entrar, jogando num clube que antes não podia frequentar?

Arranhe um branco, Frederick Morris, e vai encontrar vestígios de linfa de superioridade induzida; a história nunca acaba. Mas enquanto dava uma boa olhada em si mesmo, o raciocínio pragmático o fez deixar o hotel de rede cuja atmosfera confirmava a sensação do anonimato de sua presença e pegar estradas que iam dar nas velhas townships da segregação. Feriado nacional, de modo que as ruas, algumas asfaltadas e calçadas, outras de terra, poças de água, latas de cerveja e plásticos boiando, eram alegres pistas de carros, táxis e ônibus desviando de crianças, homens e mulheres que tomavam a si o direito e o momento de atravessar onde quisessem.

Ninguém prestou muita atenção nele. Seu carro, num salário de acadêmico, não era um modelo nem mais novo nem mais caro que as outras marcas na rua e, como os demais, era empurrado de uma pista a outra por algum Mercedes ocasional, com insufilme nas janelas, cujo dono certamente deveria ter se mudado, agora, para um Golf Course Place qualquer da vida. E, como um homem que escalava todo fim de semana e nadava na piscina da universidade todas as manhãs bem cedo, desde o divórcio, ele estava moreno de sol, não muito mais claro que alguns dos homens que o encararam por alguns momentos, ao passar, em ruas que ele percorreu durante um tempo como se tivesse um destino. As escolas estavam fechadas por causa do feriado, como também estava a dos filhos; viu se de repente num parque infantil. Os meninos escalavam a estrutura do escorregador, em vez de subir pela escada, e gritavam triunfantes quando chegavam ao topo na frente dos usuários convencionais; um perdeu o apoio do dedo do pé e caiu, aos berros, enquanto os outros riam. Mas quem podia dizer quem seria esse ou aquele, um matiz a mais ou a menos, seu filho; há simplesmente a semelhança que todo garoto possui nas caretas de emoção, nas façanhas ousadas, no corpo ágil. As meninas nas balanças, segurando irmãos mais novos, até mesmo bebês; quase todas bonitas, mas não são todas elas bonitas, as meninas com a idade de sua filha, ainda que seja impossível pensar nela cuidando de um bebê do jeito como as mães sentadas placidamente em volta permitiam. As mães. As que tinham sorte (favoritas dos garimpeiros?) eram cor de mel, as outras encardidas, entre o negro e o branco, como se determinadas por uma fotografia subexposta. Gene, o agente de fomento. Qual dessas crianças poderia ter sangue Morris, uma irmã prima longínqua, ou o que seja, vivinha da silva, e nós aqui, juntos, no presente. Você se importa de dar um fio do seu cabelo (o dele é fino e liso, mas isso não prova nada, depois das misturas do sangue caucasiano entre tantos progenitores seguintes) para ser comparado com um pedaço da minha unha do pé ou um fiapo da minha pele, nos testes de dna. Imagine a reação, quando eu entregar isso ao laboratório da universidade. Risos acadêmicos para esconder o constrangimento, a curiosidade. O Fred anda se comportando de um jeito estranho nos últimos tempos.

Comeu um pão de linguiça boerewors numa barraca de rua, pediu na língua, africânder, que se ouvia a volta toda. A língua materna, era essa a que falavam as moças que visitavam o velho (na época não era velho não, toda a sua vitalidade circulava nas veias, exposta); será que ele aprendeu a falar com elas uma língua que esqueceu prontamente em Londres ou Amsterdã, como se esqueceu delas também, nunca mais voltou à África. Ele, o descendente, perambulou por ali até o final da tarde, mal sabendo por que ficar ou partir. Depois vieram os bares que se enchiam de gente por trás de homens conversando nas portas, ao som de música kwaito. Entrou em um e sentou numa banqueta quente do traseiro do homem que, com um giro do corpo, acabara de vagá-lo. Depois de uma cerveja, as vozes, as risadas e o ritmo da música o deixaram tranquilo nessa sua aventura que não tentou explicar para si e que começara diante do vidro convexo da fotografia de moldura oval. Quando seu vizinho, cujo cotovelo subia e descia em gestos dramáticos que acompanhavam as risadas e os berros de uma discussão, deu um tranco e espirrou a espuma da segunda cerveja, o intruso sorriu e garantiu que não se ofendera, e foi levado a uma conversa amigável com o vizinho e seu companheiro. A discussão era em torno da decisão de um juiz de futebol; ele tinha jogado futebol quando era estudante, e poderia contribuir com uma opinião geral sobre as habilidades, ou a falta delas, entre os juízes. No intervalo, enquanto os outros pediam mais uma rodada que o incluiu sem perguntas, Frederick teve oportunidade de indagar (lembrou se de repente) se alguém conhecia uma família de sobrenome Morris vivendo no bairro? Houve testas erguidas em autointerrogação, olhares mútuos: um deles mexeu a cabeça devagar de um lado para o outro, depois para baixo, para o que restava no copo; sugou o que havia, quando eu era garoto, tinha um garoto... o pessoal dele se mudou para outro setor, eles viviam aqui perto da igreja.

Townships alternativas foram sugeridas. Talvez houvesse gente com o mesmo sobrenome lá. Então conhecia o pessoal de algum lugar? Por que quer encontrá-los?

A resposta veio muito naturalmente. São parentes com quem perdemos contato. Pois é, as coisas agora estão nesse pé, gente indo pra tudo quanto é lado, você nunca sabe onde se enfiaram, é um tal de vamos tentar aqui, vamos tentar ali, você não sabe se estão vivos ou mortos, meus irmãos foram para a Cidade do Cabo e nem sabem mais quem eles são... então, de onde você é?

Da faculdade de ciências da universidade com colunas clássicas, descendente de homens e mulheres do setor liberal, gerações de privilégios que os fizeram seja lá o que for que são hoje. Eles não sabem o que poderiam ter sido.

Sobrenomes sem registro nas certidões de nascimento - se é que havia algo parecido em relação à questão do fruto da comodidade sexual passageira de um prospector estrangeiro - perdem se, não existem, quem sabe tenham sido abandonados como imprestáveis. Esses parceiros de bar, camaradas, amigos, algum deles poderia ser um dos homens que têm meu sobrenome incluído no deles?

E então eu venho de onde.

O que é mesmo tudo isso.

Ambiguidade. De que tipo de prevenção você precisa? O padrão dos privilégios muda a cada novo regime. Acaso seria um teste de privilégios. Será? Um ponto a mais rumo à classe dirigente, seja ela qual for. Um dezesseis avos. Um primo não sei quantas vezes distante da projeção de suas próprias necessidades masculinas sobre o jovem macho garboso preservado sob o vidro. Então o que foi que houve com a Luta (o genérico em caixa alta de algo que nunca acaba, em que pesem as vitórias dos livros de história) pelo reconhecimento, começando comigo, de que nossa espécie, a espécie humana, não precisa de nenhum mérito percentual de pigmentos de sangue. Isso já fodeu com muita coisa no passado. Outrora havia negros, pobres-diabos, querendo ser brancos. Agora há um branco, pobre-diabo, querendo se dizer negro. O segredo é o mesmo.

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Os colegas de trabalho, na sala do café da faculdade, falam dos prazeres que tiveram na Páscoa, montanhas escaladas, bichos vistos numa reserva animal, teatros, concertos - e um deles, irônico, confessa: o objetivo era não ficar para trás nas leituras para poder planejar um novo curso, abastecido com cerveja morna consumida debaixo do sol.

- Ah, e como foi o Grande Buraco?

- Fundo.

Todos riem da brevidade bem humorada do rosto impassível.

* No original, toyi toying. Toyi toyi é uma dança sul africana, originada no Zimbábue, e usada para protestar desde a época do apartheid. (N. T.)

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"Beethoven Era 1/16 Negro"
Autor: Nadine Gordimer
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 168
Quanto: R$ 41,00
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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