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04/01/2010 - 17h45

Verissimo conta história de editor que recebe cartas anônimas de uma suicida

da Folha Online

Divulgação
Uma mulher promete contar sua história e depois se suicidar
Uma mulher promete contar sua história e depois se suicidar

Em seu novo livro "Os Espiões", Luis Fernando Verissimo conta a história de um funcionário de uma pequena editora que recebe um envelope branco, endereçado com letras de mãos trêmulas. Dentro, as primeiras páginas de um livro de confissões escrito por uma certa Ariadne, que promete contar sua história com um amante secreto e depois se suicidar.

Atormentado por sonhos românticos, esse boêmio frustrado com seu casamento, e infeliz no trabalho, decide tomar uma atitude: descobrir quem é Ariadne e, se possível, salvá-la da morte anunciada.

A obra mescla mitologia, humor e mistério, remetendo à história de Ariadne, a filha do rei de Creta que ajuda Teseu, um lendário herói grego, a sair do labirinto e derrotar o Minotauro. No livro, Verissimo cria uma Ariadne ao contrário, que vai enfeitiçando o protagonista e seus amigos de bar.

Veja abaixo trecho do primeiro capítulo do livro.

*

Formei-me em Letras e na bebida busco esquecer. Mas só bebo nos fins de semana. De segunda a sexta trabalho numa editora, onde uma das minhas funções é examinar os originais que chegam pelo correio, entram pelas janelas, caem do teto, brotam do chão ou são atirados na minha mesa pelo Marcito, dono da editora, com a frase "Vê se isso presta". A enxurrada de autores querendo ser publicados começou depois que um livrinho nosso chamado Astrologia e Amor -Um Guia Sideral para Namorados fez tanto sucesso que permitiu ao Marcito comprar duas motos novas para sua coleção. De repente nos descobriram, e os originais não param mais de chegar. Eu os examino e decido seu futuro. Nas segundas-feiras estou sempre de ressaca, e os originais que chegam vão direto das minhas mãos trêmulas para o lixo. E nas segundas-feiras minhas cartas de rejeição são ferozes. Recomendo ao autor que não apenas nunca mais nos mande originais como nunca mais escreva uma linha, uma palavra, um recibo. Se Guerra e Paz caísse na minha mesa numa segunda-feira, eu mandaria seu autor plantar cebolas. Cervantes? Desista, hombre. Flaubert? Proust? Não me façam rir. Graham Greene? Tente farmácia. Nem le Carré escaparia. Certa vez recomendei a uma mulher chamada Corina que se ocupasse de afazeres domésticos e poupasse o mundo da sua óbvia demência, a de pensar que era poeta. Um dia ela entrou na minha sala brandindo o livro rejeitado que publicara por outra editora e o atirou na minha cabeça. Quando me perguntam a origem da pequena cicatriz que tenho sobre o olho esquerdo, respondo:

- Poesia.

Corina já publicou vários livros de poemas e pensamentos com grande sucesso. Sempre me manda o convite para seus lançamentos e sessões de autógrafos. Soube que sua última obra é uma compilação de toda a sua poesia e prosa, com quatrocentas páginas. Capa dura. Vivo aterrorizado com a ideia de que ainda levarei esse tijolo na cabeça.

Uma ameaça imediata vinha do Fulvio Edmar, autor do Astrologia e Amor, que nunca recebera os direitos autorais pela sua obra. Ele pagara pela primeira edição e achava que deveria receber os direitos integrais de todas as edições depois que o livro estourara. O Marcito não concordava. E eu é que tinha que responder as cobranças cada vez mais desaforadas de Fulvio Edmar. Há anos trocávamos insultos por cartas. Nunca nos encontráramos. Ele já descrevera com detalhes como faria para que meus testículos substituíssem minhas amídalas, quando isso acontecesse. Eu já o avisara que carregava sempre uma soqueira no bolso.

Mesmo as minhas cartas de rejeição mais violentas, minhas diatribes de segunda-feira, terminam com um P.S. amável. Instrução do Marcito. Se a pessoa estiver disposta a pagar pela edição do seu livro, a editora terá enorme prazer em rever sua avaliação etc. etc. Conheci o Marcito na escola. Os dois com 15 perebentos anos. Ele sabia que as minhas redações eram as melhores da turma e me convidou para escrever histórias de sacanagem, que reunia num caderno grampeado, intitulado O Punheteiro, e alugava para quem quisesse levá-lo para casa, com a condição de devolver no dia seguinte sem manchas. Depois da escola passamos anos sem nos ver até que descobri que ele abrira uma editora e fui procurá-lo. Eu tinha escrito um romance e queria publicá-lo. Não, não era de sacanagem. Demos boas risadas lembrando os tempos de O Punheteiro, mas o Marcito disse que, a não ser que eu pagasse pela edição, não tinha como publicar meu romance, uma história de espionagem sobre um fictício programa nuclear brasileiro abortado pelos americanos. A editora estava recém-começando. Ele era sócio de um tio, fabricante de adubo, cujo único interesse na editora era a publicação de um almanaque mensal distribuído entre seus clientes no interior do estado. Mas Marcito me fazia uma proposta. Tinha planos para criar uma editora de verdade. Precisava de alguém que o ajudasse. Se eu fosse trabalhar com ele, eventualmente publicaria meu romance. Não podia prometer um grande salário, mas... Me lembrei que ele não dividia comigo o dinheiro do aluguel de O Punheteiro. Ia certamente me explorar de novo. Mas a ideia de trabalhar numa editora me seduzia. Afinal, eu me formara em Letras e na época era funcionário de uma loja de vídeos. Estava com 30 anos. Tinha recém me casado com a Julinha. O João (a Julinha não aceitou que ele se chamasse le Carré) estava para nascer. Topei. Isso foi há 12 anos. Minha primeira tarefa na editora foi copiar um texto sobre camaleões de uma enciclopédia, para incluir no almanaque. Escolha profética: o camaleão é um bicho que se adapta a qualquer circunstância e desaparece contra o fundo. Desde então é isso que eu faço. Leio originais. Escrevo cartas. Redijo quase todo o almanaque para ajudar a vender adubo. Me lamento e bebo. E, lentamente, desapareço contra o fundo.

"Os Espiões"
Autor: Luis Fernando Verissimo
Editora: Alfaguara
Páginas: 144
Quanto: R$ 31,90
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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