Livraria da Folha

 
06/01/2010 - 21h30

Deus sairia da Europa para fazer milagre no Brasil? Leia trecho de "Padre Cícero"

da Livraria da Folha

A beata Maria de Araújo é protagonista de um fenômeno misterioso do catolicismo. Na sua boca, a hóstia se transformava em sangue, algo que se repetiu várias vezes. O padre Cícero (1844-1934) orientou a beata a orar e indagar a Deus sobre o significado disso. Maria de Araújo disse que o sangue era uma manifestação de Cristo. A cúpula da Igreja Católica desconfiou do caso e mandou investigar. Mas como se descobre no livro "Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão", do jornalista Lira Neto, o eurocentrismo prejudicava o trabalho de se desvendar aquele enigma.

Um sacerdote francês reagiu, com ceticismo, à história. Pierre-Auguste Chevalier foi reitor do Seminário da Prainha, no Ceará, onde padre Cícero estudou. Mesmo com os relatos de supostas aparições da Virgem Maria na cidade francesa de Lourdes e outros milagres narrados no velho continente, Chevalier não concebia algo semelhante no Nordeste: "Nosso Senhor não iria deixar a Europa para fazer milagres no Brasil."

Divulgação/Companhia das Letras

Leia trecho do livro:

"Na lógica da Igreja cada vez mais hierarquizada e centralizada pelas resoluções de Roma, era difícil aceitar a ocorrência de um milagre na periferia do mundo, admitir uma manifestação de Deus nascida em meio ao catolicismo popular dos sertões. Para o bispo, zeloso no trabalho de combater o sincretismo da diocese, só haveria mesmo uma palavra para definir o que estava acontecendo em Juazeiro: fanatismo, o casamento da devoção mais sincera com a mais perigosa ignorância.

A esse respeito, uma sentença historicamente atribuída a Pierre-Auguste Chevalier, o ex-reitor do Seminário da Prainha, resumiria toda a questão. O velho sacerdote francês, destituído do cargo desde a revolta dos seminaristas, ainda acumularia as disciplinas de moral, liturgia e direito canônico. Já praticamente cego, achacado pelo reumatismo e por outros males da idade, Chevalier era uma espécie de conselheiro informal da diocese. Para ele, sobre aquele assunto de hóstias que sangravam e se transformavam em carne em pleno Cariri, só uma coisa podia ser dada como certa:

"Nosso Senhor não iria deixar a Europa para fazer milagres no Brasil."

Dezenas de léguas distante dali, em Juazeiro, arregimentava-se um intenso movimento em defesa de Cícero. Um abaixo-assinado com o nome de nove sacerdotes e 28 cidadãos residentes no povoado e no Crato protestava contra as ordens de dom Joaquim. O documento, que ficou conhecido como "Petição de Apelação", solicitava o cancelamento de todas as decisões diocesanas relativas ao caso, sob o argumento de que elas feriam de morte, e de forma injusta, a causa do Juazeiro, pois as punições haviam sido desferidas antes do tempo necessário para que fosse elaborada a necessária defesa. Ao afirmar, sem nenhuma averiguação prévia, que o sangue nas hóstias não poderia ser o sangue de Cristo, o bispo teria atropelado o andamento normal das investigações e feito um prejulgamento. Na linguagem do povo, posto a carroça adiante da parelha de bois.

Os que assinavam a petição, incluindo no topo da lista o próprio Cícero, diziam pretender realizar uma série de consultas a diversas autoridades religiosas, teólogos de reconhecida competência no Brasil e, se possível, no estrangeiro. Queriam ouvir fontes gabaritadas a respeito da possibilidade de que o tipo de fenômeno registrado em Juazeiro, após uma exaustiva verificação, pudesse vir a ser autenticado como milagre. O abaixo-assinado citava o próprio Concílio de Trento para justificar uma possível apelação ao Vaticano, baseada no direito de que o processo deveria seguir as formalidades legais exigidas pela lei canônica: quem era acusado de heresia e de conspurcar a fé cristã haveria de merecer a mínima oportunidade de defesa. Se necessário, os juazeirenses se diziam dispostos a recorrer à última e mais sagrada instância sobre a Terra: Sua Santidade, o papa."

Divulgação/Companhia das Letras

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"Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão"
Autor: Lira Neto
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 544
Quanto: R$ 49
Onde comprar: 0800-140090 ou na Livraria da Folha

Divulgação/Companhia das Letras
 
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