Livraria da Folha

 
09/01/2010 - 16h17

Escritor João Cabral de Melo Neto completaria 90 anos hoje

da Livraria da Folha

Quando menino, João Cabral gostava de olhar o rio como se fosse um filme. Capibaribe, a atração favorita do garoto, viria anos depois a ser protagonista e, por vezes, antagonista dos retirantes de seus livros, como em "Morte e Vida Severina". As águas que aliviavam a seca também afogavam as esperanças dos nordestinos.

Dulce Carneiro/Reprodução
O escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto dialogou com grandes nomes que o antecederam por meio de uma nova poética
O escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto dialogou com grandes nomes que o antecederam por meio de uma nova poética

João Cabral nasceu em 9 de janeiro de 1920, em Recife. Viveu dez anos em engenhos da família, depois mudou-se novamente para o Recife. Lá, ingressou no colégio dos Irmãos Maristas. Seu primeiro emprego foi ao lado do pai, em 1937, como secretário e encarregado de apuração industrial no Departamento de Estatística do Estado. À época, João Cabral já compunha versos.

Quatro anos depois, apresentaria no Congresso de Poesia do Recife seus primeiros versos reunidos em "Considerações sobre o Poeta Dormindo". Aos 22 anos, instala-se no Rio de Janeiro e publica o seu primeiro livro de poemas, "Pedra do Sono". A edição de 300 exemplares, que foi paga por seu pai, incluía 29 textos e uma ilustração de Vicente do Rego Monteiro.

Monte sua biblioteca com obras de João Cabral de Melo Neto

Os poemas desse primeiro livro eram caracterizados pela relação entre uma pesquisa dos estados oníricos e um sentido para a construção do próprio poema. Os versos apresentam traços surrealistas.

Em 1943, a "Revista do Brasil" publica "Os Três Mal-Amados". Nele, o escritor pernambucano dramatiza, em prosa, o poema "Quadrilha", de Carlos Drummond de Andrade. Cinco personagens drummondianos --Maria, Teresa, João, Raimundo e Joaquim-- foram utilizados como referências de algumas falas. Dois anos depois, João Cabral lança "O Engenheiro" e dedica o volume ao amigo Drummond.

Mais rios

Esse estreitamento e retomada de alguns traços modernistas se repetiria no poema "O Rio", de 1953, que recebeu o prêmio de poesia do IV Centenário de São Paulo. No ano de 1947, como vice-cônsul do Consulado Geral de Barcelona, finaliza "Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode" --o chamado "tríptico da negatividade", no qual recusa a própria poesia.

Ainda em Barcelona, publica "O Cão sem Plumas", em 1950, ano em que é transferido para o Consulado Geral de Londres. O poeta pernambucano seria acusado de subversão dois anos depois, e afastado do cargo entre 1952 e 1954. Convocado, ele profere a conferência "Poesia e Composição", na Biblioteca Municipal de São Paulo. Com "O Cão sem Plumas", o escritor se inicia na imersão da realidade circunstancial e humana, e se afirma na poesia brasileira contemporânea.

"Poemas Reunidos" (1954) e "Duas Águas" (1956) são publicados no Brasil mesmo João Cabral vivendo no exterior. "Duas Águas", reunia todos os seus livros já lançados mais os inéditos "Morte e Vida Severina", "Paisagens com Figuras" e "Uma Faca Só Lâmina". A coletânea estabelecia a riqueza poética e apresentava as tensões entre composição e expressão na obra do poeta.

Seguem como rios os volumes "Quaderna" (1960) --composto por 20 poemas dedicados a Murilo Mendes--, e "Dois Parlamentos" (1961) --dedicado a Yedda e Augusto Frederico Schmidt. "Terceira Feira", de 1961, reúne os dois livros e mais o inédito "Serial", com dedicatória para José Lins do Rego.

Mais poética, reconhecimento e Capibaribe

Eder Chiodetto/Folha Imagem
João Cabral de Melo Neto, em foto de 1997, no seu apartamento no bairro do Flamengo, zona sul do Rio; veja galeria de imagens do poeta
João Cabral de Melo Neto, em foto de 1997, no seu apartamento no Rio; veja imagens do poeta

No ano de 1966, o Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo encena "Morte e Vida Severina". A peça ganha o prêmio principal do Festival de Nancy, na França. No mesmo ano, João Cabral publica "A Educação pela Pedra". Constituído por 48 poemas separados em grupos de 12, o volume explora a liberdade de composição lúdica, tanto que é definido pelo próprio João Cabral como "antilira" na dedicatória a Manuel Bandeira.

Em 1968, o escritor é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Publica também, pela editora Sabiá, suas "Poesias Completas". "Museu de Tudo" (1975), "A Escola das Facas" (1980), "Poesia Crítica" (1982), "Auto do Frade" (1984) e "Agrestes" (1985) são lançados em sequência. Neste último livro, João Cabral se envereda pela poética metalinguística. A metalinguagem é utilizada por ele para descobrir ou recriar a forma das figuras, paisagens, objetos, dentre outras artes.

Após a morte de sua mulher, Stella Maria Barbosa de Oliveira, em 1986, o poeta publica "Crime na Calle Relator" (1987), "Museu de Tudo e Depois" (1988) e "Sevilha Andando" (1989). Em 1990, aposenta-se como embaixador e muda-se para o Rio de Janeiro. No mesmo ano, João Cabral recebe o prêmio Luís de Camões. Dois anos depois, ganha o prêmio Neustadt, da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. Em 1994, a editora Nova Fronteira publica sua "Obra Completa" em volume único.

Suas leituras do Capibaribe foram interrompidas em 1999. João Cabral de Melo Neto morreu em 9 de outubro daquele ano. Nos versos de "O Capibaribe e a Leitura", que faz parte de "Agrestes", o pernambucano deixa claro que o rio foi seu objeto de leitura, embora não o tenha ensinado a "saber ler", mas a dosar o ritmo de leitura "letra a letra". Leia o poema, extraído do livro "Folha Explica: João Cabral de Melo Neto", de João Alexandre Barbosa:

O Capibaribe no Recife
de todos é o jornal mais livre.

Tem várias edições por dia,
Tantas quanto a maré decida.

Na Jaqueira, o Capibaribe
tinha uma edição do Recife

e tinha outra do interior
(sempre quando a maré baixou).

Se não lhe devo saber ler,
devo-lhe fazer do ler ser,

o imóvel ser para a leitura
que nos faz mais enquanto dura,

esse dar-se que a paciência
de sua passada pachorrenta

impõe a quem lhe lê a gazeta
que ele dá a ler, letra a letra.

 
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