Livraria da Folha

 
12/01/2010 - 11h01

Escritor fala sobre história alternativa e ficção científica tupiniquim

GUILHERME SOLARI
colaboração para a Livraria da Folha

"Imagine que as caravelas de Bartolomeu Dias houvessem naufragado em vez de dobrarem com êxito o Cabo da Boa Esperança em 1488. Com o desaparecimento de Dias, João II resolve contrariar seu conselho de Estado e apostar umas poucas caravelas em Colombo. Em resultado, o genovês acaba descobrindo a América sob a bandeira de Portugal".

Divulgação
Obra de imagina a América descoberta por portugueses
Obra de imagina a América descoberta por portugueses

Essa afirmação, que faria muitos professores de história ficarem de cabelo em pé, é a proposta por trás do romance "Xochiquetzal: Uma Princesa Asteca entre os Incas", que reimagina a história do continente americano sendo colonizado pelos portugueses. Os lusitanos adotam uma estratégia semelhante à que utilizaram na África, forçando a vassalagem dos povos locais ao invés da sua aniquilação, diferente da conquista direta pelos espanhóis.

Apesar de se tratar da primeiro romance do autor, Gerson Lodi-Ribeiro é conhecido entre os amantes da ficção científica e história alternativa desde os anos 80, com a publicação de contos em fanzines e por diversas histórias curtas publicados tanto no Brasil quanto no exterior. O escritor também é um dos criadores da história por trás do jogo espacial Taikodom, game brasileiro do gênero multiplayer online no qual os jogadores se enfrentam em um mundo persistente na internet.

A história de como o "Xochiquetzal: Uma Princesa Asteca entre os Incas" foi criado é digna de uma narrativa à parte. Primeiramente na forma de um conto de uma antologia fantástica escrito Carla Cristina Pereira no final da década de 1990, o lançamento do livro revelou que Carla era o próprio Lodi Ribeiro. Justo ela que, conforme lembra o autor, já criticou seus romances em resenhas "de forma severa e, por vezes, algo depreciativa".

Gerson Lodi-Ribeiro conversou com a Livraria da folha sobre seu novo livro, pseudônimos de vontade própria e personalidade forte, sua colaboração com o Taikodom e como é escrever histórias fantásticas em um país com uma tradição literária realista como o Brasil.

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Livraria da Folha - O argumento por trás de "Xochiquetzal: Uma Princesa Asteca entre os Incas" nasceu a partir de um conto escrito há alguns anos. Como foi esse processo de ampliação e adaptação do argumento?

Em meados de 2006, fundi dois trabalhos e ampliei o resultado, grosso modo dobrando-lhe o tamanho, de modo a produzir este romance. Com a intenção precípua de produzir um romance curto (em torno de 40.000 palavras), as duas principais técnicas que empreguei foram: a criação de novas cenas, inexistentes no conto e na noveleta originais; e a ampliação e o detalhamento das cenas já presentes naqueles trabalhos.

Livraria da Folha - Os diálogos possuem expressões portuguesas quinhentistas e termos incas. Como foi sua pesquisa e o desenvolvimento dos diálogos?

Gerson Lodi-Ribeiro - Algumas das expressões portuguesas vieram de autores daquela época, como Camões, João de Barros e Fernão Mendes Pinto. A maioria dos termos astecas e incas proveio da leitura de livros sobre a história dessas civilizações. Em prol da elaboração desse português quinhentista "fake", gerúndios e neologismos foram banidos. À medida do possível, evitei empregar palavras que não existiam à época em que o romance se passa. Em diversos trechos, primeiro escrevi os diálogos e cenas, para depois então reescrevê-los na versão pseudoquinhentista. Sim, porque o português genuíno daquela época é incompatível com a proposta de um trabalho de literatura de gênero, um texto cujo objetivo principal é entreter o leitor.

Livraria da Folha - Você escreveu muitas obras com o pseudônimo Carla Cristina Pereira para poder se incluir em antologias que permitiam apenas um conto por autor, mas ela acabou ganhando uma personalidade própria, até mesmo criticando algumas de suas obras. Como é a dinâmica dessa curiosa relação?

Gerson Lodi-Ribeiro - A Carla não escrevia apenas ficção, com participação assídua nas antologias de contos da segunda metade da década passada, mas também textos não ficcionais, como ensaios, críticas e resenhas. Não pareceria natural se ela criticasse trabalhos de terceiros, mas não os meus. Então, persuadi meu alter ego feminino a criticar alguns dos meus trabalhos de forma severa e, por vezes, algo depreciativa. A escritora Carla Cristina Pereira possuía um biolog detalhado, endereço, documentos (cujos números foram tomados emprestados aos documentos da minha esposa), uma caixa postal alugada em Cabo Frio e por aí vai. Ao longo dos anos, Carla trocou correspondência com diversos autores e críticos da comunidade fantástica luso-brasileira e também com estrangeiros, primeiro por via postal e mais tarde por e-mail.

Livraria da Folha - A literatura brasileira tem uma tradição muito ligada ao realismo. O que lhe atrai a escrever em gêneros como a ficção científica e história especulativa?

Gerson Lodi-Ribeiro - O realismo é limitado, com suas amarras em geral presas à Terra e ao presente. Ou, quando muito, à história como aprendemos na escola. Ao contrário, a ficção científica e a história alternativa não sofrem limitações desse tipo: o autor pode situar seu conto ou romance em qualquer época ou lugar, real ou imaginário, desde que tome os cuidados devidos em termos de plausibilidade e autoconsistência. A maioria das críticas feitas à literatura fantástica pelos cultores do dito realismo é feita sem conhecimento de causa, por indivíduos que, pelo fato de só terem entrado em contato com a vertente infantojuvenil da literatura fantástica, consideram a totalidade dos trabalhos dos gêneros que a compõem como "coisa de criança".

Livraria da Folha - Você colabora há alguns anos com o jogo brasileiro multiplayer Taikodom, sendo um dos criadores do universo por trás do game e criando romances e contos que o expandem. Como foi e está sendo esse processo de construção de mundo?

Gerson Lodi-Ribeiro - Escrever para o projeto de um universo multimídia é bem diferente de escrever num universo ficcional eminentemente literário. No caso do Taikodom, um game online jogado simultaneamente por milhares de jogadores no mundo inteiro, o nosso universo ficcional tem que funcionar de determinadas maneiras pela própria necessidade do game ser estimulante para o jogador. Empreender viagens interplanetárias quase instantâneas é parâmetro obrigatório, para não entediar o jogador. Da mesma forma, no jogo a imortalidade é um fato da vida, pois o jogador morrerá diversas vezes e ressuscitará sem perda de conhecimento, habilidade ou memória.

Livraria da Folha - Como você considera esse intercâmbio entre a literatura e uma mídia interativa como os games? Como cada mídia pode se beneficiar da outra?

Gerson Lodi-Ribeiro - Sabemos que a mídia audiovisual sofreu grande influência da literatura e, por outro lado, também influenciou tremendamente a literatura, haja vista a evolução das técnicas narrativas literárias após o advento do cinema. Em meados do século 19, até mesmo os melhores autores se podiam dar ao luxo de interromper a ação narrativa para descrever a ambientação de seu romance ou para apresentar um ou outro personagem. Hoje em dia essa técnica de parar o veículo para trocar o pneu, por assim dizer, não é mais aceitável. De forma análoga, há um intercâmbio dinâmico entre as mídias interativas e a literatura. O universo ficcional literário contextualiza essa experiência, enriquecendo-a, ao transmitir para o jogador a sensação de que o universo em que ele vivencia suas aventuras é quase tão rico e talvez ainda mais interessante do que o universo em que reside quando não está conectado. Creio que, num futuro não muito distante, a forma predominante de narrativa ficcional será a multimídia interativa. De todo modo, a história não será mais contada ao espectador. A rigor, talvez nem sequer exista mais espectador, mas apenas observador e personagem. Num certo sentido, os primórdios desse futuro já se exibem nos games multiplayer jogados na internet.

 
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