Livraria da Folha

 
06/05/2010 - 22h39

Garoto de 11 anos foi o único sobrevivente de acidente aéreo; leia trecho

da Livraria da Folha

Desde pequeno, Norman Ollestad foi criado para viver grandes aventuras. Seu próprio pai o incentivava, acordando de madrugada para levá-lo aos treinos de hóquei, acompanhando-o a torneios de esqui e levando-o em viagens para surfar em praias desertas. Por causa deste treinamento radical que teve até os 11 anos, ele acredita, é que conseguiu ser o único sobrevivente da queda do pequeno avião em que viajava com seu pai e a mulher dele.

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Em visita ao lugar do acidente, Ollestad mostra destroços do avião
Em visita ao lugar do acidente, Ollestad mostra destroços do avião

Em "Loucos por Tempestade", um dos lançamentos mais elogiados do último verão norte-americano, Ollestad trata destes dois aspectos fundamentais de sua vida: a relação com o pai e a tragédia que o matou.

"Meu pai me condicionou a ficar a vontade em uma tempestade. Foi por isso que desci sozinho da montanha, por causa dele, pelo que ele me ensinou", disse ele em entrevista de divulgação da obra.

Intercalando momentos que marcaram a intensa relação de ambos e explicações sobre como conseguiu descer os cerca de 2,6 mil metros da montanha nevada, o livro é mais do que apenas um relato de memórias ou das aventuras que viveu. Ela é, também, uma narrativa sobre superação de limites e amadurecimento.

Ollestad conta como, enquanto lutava por sua própria vida, precisou lidar com a possível morte do próprio pai. "Ele estava coberto de neve --uma escultura de gelo. Minha adrenalina parou de correr e se esvaiu do meu corpo, deixando-me vazio. Fechei os olhos. Afastei tudo. Engula isso. Foco na próxima etapa. Não se preocupe com o que já aconteceu", escreve ele.

Mas a tragédia e o frio é apenas um dos lados da narrativa. No outro, é revelada a Califórnia efervescente dos anos 70, quando os jovens começavam a desfrutar da liberdade conquistada recentemente --estavam em uma época de sexo, drogas, rock e, pelo menos no ensolarado estado, muita adrenalina.

Se você quer conhecer um pouco mais das emocionantes aventuras de Norman Ollestad, confira a seguir os dois primeiros capítulos de "Loucos por Tempestade" :

*

Capítulo 1

19 de fevereiro de 1979. Às sete horas daquela manhã, meu pai, sua namorada Sandra e eu partimos do aeroporto de Santa Monica rumo às montanhas Big Bear. Eu vencera na véspera o Campeonato de Esqui Slalom da Califórnia do Sul e, de tarde, voltamos a Santa Monica para o meu jogo de hóquei. Para evitar outra viagem de ida e volta de carro, meu pai fretou um avião para retornarmos a Big Bear, pois assim eu poderia receber meu troféu e treinar com a equipe de esqui. Meu pai tinha 43 anos. Sandra, 30. Eu tinha 11.

O avião Cessna 172 decolou e sobrevoou Venice Beach, a praia depois de um aglomerado de prédios em Westwood e rumou para o leste. Eu estava sentado na frente, com fones de ouvido e tudo, ao lado do piloto, Rob Arnold. Rob apertava os botões do painel de instrumentos que se curvavam na direção do teto da cabine. Manipulava ao mesmo tempo um grande dial vertical ao lado de seu joelho e o volante que controla o equilíbrio longitudinal do avião, que balançava como uma gangorra antes de se estabilizar.
Do outro lado do para-brisa, perdendo-se na distância, uma redoma de nuvens cinzentas cobria as montanhas San Bernardino, deixando só os picos de fora. Havia um deserto monótono em volta do aglomerado de picos, que se projetavam a uma altura de até 3 mil metros.

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O autor faz um emocionante relato sobre o acidente que matou seu pai
O autor faz um emocionante relato sobre o acidente que matou seu pai

Eu estava me sentindo particularmente ousado depois de ganhar o campeonato de esqui slalom e pensava nas grandes rampas escavadas naqueles picos - declives côncavos que começavam no topo das montanhas e marcavam as encostas como rugas profundas. Eu me perguntava se eram esquiáveis.

Meu pai estava sentado atrás de Rob. Lia a seção de esportes e assobiava uma música de Willie Nelson que eu o ouvira tocar no violão muitas e muitas vezes. Virei o pescoço para olhar para trás. Sandra estava escovando os sedosos cabelos castanho-escuros. Ela estava bem-vestida, eu achei.

- Quanto tempo, pai? - perguntei.

Ele espiou por cima do jornal.

- Uns 30 minutos, Menino Maravilha - disse ele. - Talvez a gente veja a pista do campeonato quando chegarmos perto do monte Baldy.

Enfiou uma maçã na boca e dobrou o jornal num retângulo. Ele dobrava o formulário da corrida do mesmo jeito, com melancia escorrendo-lhe pelo queixo, num daqueles dias de fim de agosto na trilha Del Mar, onde o surfe se encontra com o turfe. Saíramos de Malibu de manhã bem cedo e viajamos mais de 95 quilômetros em direção ao sul para pegar umas ondas ao largo do point do Swami, que recebeu esse nome por causa da comunidade ashram estabelecida na península. Quando havia uma longa calmaria, meu pai dobrava as pernas em cima da prancha e sentava-se em posição de lótus, fingindo meditar e me constrangendo na frente dos outros surfistas. Por volta do meio-dia, fomos para Solana Beach, a praia que ficava do outro lado da Coast Highway para quem estava na trilha. Escondemos nossas pranchas embaixo de uma pontezinha de madeira, porque elas não cabiam dentro do Porsche 56 do meu pai, atravessamos a rodovia e fomos ver os cavalos serem selados. Quando eles entraram na pista, meu pai me pôs nos ombros e me deu um punhado de amendoins como almoço.

- Escolha um cavalo, Menino Maravilha - disse ele.

Apostou no meu cavalo sem hesitar. Certa vez, um azarão chamado Scooby Doo ganhou por pequena diferença, e papai me deu uma nota de 100 dólares para eu gastar como bem entendesse.

Os topos das montanhas pareciam mais altos que o avião. Estiquei o pescoço para olhar por cima do painel, segurando os fones de ouvido, muito grandes para mim. Enquanto nos aproximávamos do sopé das montanhas, ouvi a torre de controle de Burbank passar nosso avião para a torre de controle de Pomona. O piloto Rob disse a Pomona que preferia não voar acima de 2.300 metros por causa do frio. E, então, um avião particular enviou-nos uma mensagem pelo rádio, avisando para não voarmos para a área do Big Bear sem os instrumentos indispensáveis.

- Recebeu essa mensagem? - perguntou a torre de controle.

- Recebi - disse o piloto Rob.

O nariz do avião penetrou na primeira camada da tempestade, cada vez mais próxima. Uma neblina cinza envolveu-nos. A cabine encheu-se de barulhos, balançando e dando guinadas. Rob pôs as duas mãos na direção, que tinha a forma de um W gigante. Não havia como enxergar a pista do campeonato no meio dessas nuvens, pensei. Nem mesmo as encostas de Baldy, as que meu pai e eu passamos alguns dias do ano anterior desbravando, cobertas com uma neve ainda fofa.

E então a seriedade do aviso do outro piloto interrompeu meu devaneio.

Virei para trás e olhei para o meu pai. Ele engoliu o centro da maçã, estalando os lábios de satisfação. Seus faiscantes olhos azuis e seu sorriso caloroso acalmaram minha ansiedade em relação ao aviso. Seu rosto brilhava de orgulho por mim. Ganhar aquele campeonato era prova de que todo aquele nosso trabalho árduo finalmente dera frutos, era prova de que tudo é possível, como meu pai sempre dizia.

Por cima do seu ombro, um galho torto apareceu pela janela. Uma árvore? Naquela altura? E então o mundo voltou a ser cinza. Foi apenas uma ilusão de ótica.

Meu pai me observava. Seu olhar parecia nos elevar como se não precisássemos do avião - dois homens alados cruzando o céu azul. Eu estava prestes a perguntar quanto tempo mais demoraria.

Galhos eriçados de pinheiro passaram pela janela atrás dele. Um choque de verde, abrindo a neblina com suas garras. Nevava. Um ramo cheio de espinhos bateu forte na janela. Algo horrendo que meu pai não havia percebido. Sugou toda a vida da cabine, queimando a cena como uma fotografia devorada pelo fogo. De repente, o rosto do meu pai estava deformado e coberto de manchas.

O tempo parecia desacelerar como se fosse sendo apagado por uma borracha gigante. A neblina cercava todas as janelas, e não havia como o avião se levantar ou se abaixar, como se estivesse parado, um brinquedo pendendo de uma corda. O piloto esticou uma das mãos e girou o controle do compensador, que ficava na altura do joelho. Eu queria que ele o girasse mais depressa - vamos subir mais depressa, para longe das árvores. Mas ele largou o controle e agarrou a direção gigante em forma de W com ambas as mãos, fazendo-nos dar solavancos de um lado para o outro. E aquela outra direção? Será que eu conseguiria manobrá-la por ele? Um ramo próximo da janela me chamou a atenção.

- Cuidado! - gritei, contraindo meu corpo de 1,45 metro e 34 quilos.

A asa prendeu-se numa árvore, dando um golpe na minha coluna, e o avião deu meia-volta. Batemos em mais duas árvores - metal se rasgando, o motor aumentando a rotação. Eu estava grudado na direção que mantinha o equilíbrio vertical. Tarde demais para girá-la agora...

Batemos no pico Ontário, a 2.650 metros de altura. O avião desmantelou-se, lançando montes de destroços pela escarpado lado norte e arremessando nossos corpos numa rampa gelada.

Ficamos estatelados no meio dos restos do avião. Nossos corpos balançavam em um declive de 45o, ameaçando nos lançar em queda livre num lugar desconhecido. Expostos à neve e ao vento congelantes, oscilávamos a cerca de 75 metros do topo - a distância entre a vida e a morte.

*

Capítulo 2

No verão antes da queda, a máquina de lavar roupas da minha avó quebrou. Vovó e vovô Ollestad tinham se aposentado e mudado para Puerto Vallarta, México, e os preços inflacionados dos eletrodomésticos de Guadalajara e da Cidade do México teriam estourado seu orçamento. Além disso, alugar um caminhão para transportar uma nova máquina seria uma verdadeira provação para eles naquela época. Então meu pai decidiu ir à Sears, comprar uma outra máquina e levá-la para Vallarta. Pediria emprestada a velha caminhonete preta do primo Denis, atravessaria a fronteira em San Diego e percorreria toda a rodovia da península Baja até La Paz. Tomaria a balsa para atravessar o mar de Cortez até Mazatlán, que ficava no México continental, e depois iria mais para o sul através das matas fechadas, visitando e curtindo o maior número possível das mais célebres áreas de surfe antes de chegar a Vallarta.

Ouvir essa notícia me deixou branco de medo. Fiquei em silêncio enquanto minha mãe explicava aquilo tudo para mim quando voltávamos para casa do curso de verão - onde ela dava aulas para a segunda série e onde eu me preparava para entrar na sexta série. Ela não disse nada sobre eu ser obrigado a ir, mas estava no ar - cada vez mais -, o que era mais ameaçador do que uma certeza. A ideia de fritar dentro daquela caminhonete durante três ou quatro dias e sair à caça do surfe - e, pior ainda, encontrá-lo e ter de remar para fugir de ondas enormes e ficar boiando lá longe, só com meu pai, na vastidão do mar - não tinha a menor graça. Ele estaria concentrado no surfe, e eu ficaria por minha conta e risco. Imaginei meu corpo sendo esmagado por uma onda, revirado, lutando para sair, lutando por ar.

O carro da minha mãe entrou na Pacific Coast Highway, e eu ouvi o barulho do oceano. Eu estava olhando para os meus tênis azuis, ouvindo os Beatles no toca-fitas do automóvel; senti enjoo e tive de olhar pela janela.

Chegamos à casa da minha mãe em Topanga Beach, a enseada que fica no extremo sul de Malibu. As casas foram construí das bem perto da areia, amontoadas umas sobre as outras de qualquer jeito e em todos os ângulos possíveis e imagináveis, como se sua função de abrigar estivesse em segundo plano, perdendo para a necessidade essencial de estar na praia. Meu pai também morara ali. Quando eu tinha 3 anos, ele se mudou para uma cabana que ficava do outro lado da rodovia, à beira do Topanga Canyon. Quando eu tinha 10 anos, já reunira vários indícios, que me deram uma ideia do que havia separado os meus pais.

A minha mãe se queixava de que, às vezes, o telefone tocava no meio da noite e meu pai saía sem dizer palavra, e voltava sem dar nenhuma explicação. Ela sabia que era algo relacionado ao vovô Ollestad ou ao tio Joe, o meio-irmão do meu pai, que sempre precisava da ajuda do meu pai para tirá-lo de alguma encrenca, mas meu pai não tocava no assunto. Quando a minha mãe protestava sobre excluí-la de certos segredos de família, ele simplesmente dava de ombros. Ia surfar ou simplesmente saía porta afora quando ela insistia. A gota d'água foi quando meu pai emprestou dinheiro da conta conjunta que tinha com ela ao tio Joe sem lhe dizer nada, e depois se recusou a dizer o porquê. Logo depois desse incidente, um francês chamado Jacques, amigo de um amigo de meu pai, veio nos visitar. Meu pai acabara de sofrer uma grande cirurgia no joelho e mal podia se mexer, de modo que emprestou a Jacques uma prancha de surfe e deu-lhe instruções na varanda, usando a muleta para explicar a Jacques como chegar ao local em que ele poderia ficar em pé na prancha. Meu pai não estava em condições de mostrar Malibu a Jacques, assim minha mãe o levou ao Point Dume - uma série de enseadas transparentes - e ao restaurante Alice's, que ficava no quebra-mar, e depois ao museu Getty. Após Jacques voltar para a França, meu pai deixou de vir para casa à noite. Isso durou algumas semanas. Depois voltou por alguns dias, até finalmente levar suas coisas para a cabana do outro lado da rodovia.

Minha mãe começou a sair com um cara chamado Nick. Nick mostrou que gostava de briga desde o começo, o oposto do meu pai, sempre relutante em brigar com a minha mãe. Nick e a minha mãe tiveram brigas homéricas na praia, na frente de todo mundo. Na verdade, não era uma coisa tão anormal assim - vários casais em Topanga Beach beijavam outras pessoas, brigavam com seus novos namorados ou namoradas e, de repente, um deles mudava-se para outra casa. Era um quadro incompleto do que deu errado entre os meus pais. Era óbvio que alguma coisa se rompera, isso era tudo quanto eu sabia, e fui obrigado a aceitar a situação.

Minha mãe estacionou o carro na garagem na mesma hora em que avistei minha golden retriever Sunshine, de pelo dourado e com apenas três patas. Ela esperava na calçada que rodeia a casa. Sunny e eu corremos para a varanda, subimos aos saltos a escada que leva à praia e saímos andando até o point - uma curva de areia que ia até a extremidade norte da enseada.

Duas meninas da minha idade estavam andando a cavalo em pelo pelas ondas que lavavam a praia. Segurei Sunny para ela não assustar os cavalos. As meninas moravam perto do desfiladeiro de Rodeo Grounds, um pouco abaixo da cabana do meu pai e, como sempre, só acenamos uns para os outros. Os cavalos faziam a água salgada salpicar as pernas das meninas, que cintilavam à luz do fim da tarde.

Quando elas desapareceram na boca do desfiladeiro, joguei o pedaço de pau de Sunny nas ondas. Um turista louro com uma barba comprida e inteiramente vestido como indiano fez uma dança da chuva para o sol poente. Ele me lembrou Charles Manson, que, quando eu era bebê, estava sempre andando pela praia e gostava de fazer serenatas para minha tia enquanto ela me segurava no colo nas escadas que levavam ao mar.

- Que bom que eu nunca fui naquela comunidade sobre a qual ele não parava de falar - disse a minha tia quando me contou a história.

Depois do jantar eu tentei esquecer as ondas esmagadoras. Li o Hardy Boys para ajudar a me distrair de minha viagem ao México. Acordei mais tarde e fiz uma tenda com as cobertas e brinquei com um jogo de espião, passando informações secretas por rádio para o quartel-general através dos postes enferrujados da minha velha cama de metal. Sunshine estava enroscada aos pés da cama e montava guarda em nosso esconderijo. Fiz-lhe um carinho e disse a ela o quanto eu detestava ter de surfar, o quanto eu detestava não poder brincar o fim de semana inteiro como as crianças de Pacific Palisades.

Eu muitas vezes reclamava com meu pai por não morar num bairro de verdade. Ele me disse que um dia eu ia entender a minha sorte de morar bem pertinho da praia, e que, por Eleanor (minha madrinha informal) morar em Palisades e eu às vezes passar uns dias com ela, eu era duplamente sortudo.

Mas ela não tem piscina, eu dizia, e meu pai retrucava que eu tinha a maior piscina do mundo no meu jardim.

Antes de eu nascer, minha mãe trabalhava na escolinha maternal de Eleanor, Hill'n Dale, e meus pais tornaram-se grandes amigos de Eleanor e de Lee, seu marido. Comecei a ir a Hill'n Dale quando tinha 3 anos, e Eleanor passou imediatamente a me mimar de tudo quanto era jeito. Nascemos no mesmo dia, 30 de maio, como ela gostava de dizer a todo mundo. Desde a primeira série eu percorria os dois quarteirões entre a escola de ensino fundamental e Hill'n Dale, permanecendo ali até minha mãe ou meu pai me buscar depois do trabalho. Todos aqueles anos em que convivi praticamente todos os dias com Eleanor me fizeram pensar nela como minha outra mãe, e eu dizia isso às pessoas.

A manhã trouxe uma boa notícia: meu pai teria de preparar um processo de negligência profissional com Al, seu sócio no escritório de advocacia, antes de partir para o México, de modo que eu não teria de surfar naquele fim de semana, e Sandra viajaria com ele ao México. Agora as possibilidades de não ser obrigado a ir pesavam bastante a meu favor. Eu estava tão aliviado que não me dei conta do que Nick reservara para mim, até ser tarde demais. A essa época, Nick já morava com minha mãe há vários anos e começou a falar de protetores bucais e socos, e disse que Charley, o único menino da minha idade que ainda morava na praia, viria a nossa casa. Eu estava preocupado, aquecendo-me ao sol de um paraíso onde não havia México e repleto de noites em casas de amigos, festas de aniversários e bolos com recheio e cobertura.

A areia estava quente e branca. Era agosto, e a neblina havia desaparecido há muito tempo, o sol queimava. Nick e seu amigo, Mickey, tomavam cerveja e traçavam um círculo na areia.

- É o ringue de boxe - disse Nick. - Não saia fora do círculo, senão será desclassificado automaticamente.

Todo mundo dizia que Nick se parecia com o Paul Newman. Era mais alto que o meu pai e não tinha ombros largos - cheguei à conclusão de que era por ele não surfar. Também era diferente do meu pai em várias outras coisas. Nunca dançava nas festas como o meu pai sempre fazia. E Nick não tocava nenhum instrumento - o meu pai tocava -, nem cantava - coisa que o papai aprendeu a fazer quando era ator infantil. Papai trabalhou no clássico Papai batuta, atuando em vários filmes e programas de TV até seus 20 e poucos anos. Num programa chamado Sky King, meu pai era um mecânico, o que era engraçado porque ele não sabia consertar nada, nem mesmo a minha bicicleta. E eu não conseguia imaginar Nick trabalhando como monitor de acampamentos de verão como meu pai fazia, encarregado de organizar aulas de coreografia e música para animadoras de torcida. Foi assim que ele conheceu a minha mãe - ele estava recrutando moças para darem aulas a participantes dessas torcidas no seu acampamento, e a minha mãe estava no apartamento de uma delas em Westwood, ao lado da UCLA. Era 1962. Meu pai tinha acabado de se demitir do FBI e estava trabalhando como assistente de um advogado americano sob as ordens de Robert Kennedy. Ele e seu amigo, Bob Barrow, que foi criado perto do meu pai em South Los Angeles, tiveram a ideia de organizar um acampamento de verão como forma de ganhar um dinheiro extra e conhecer universitárias. Meu pai ensinaria as coreografias para as moças de manhã, antes de pôr o terno e ir para o Ministério da Justiça.

Em seu primeiro encontro, meu pai levou minha mãe à praia, em Topanga Beach. Tocou violão para ela e convenceu-a a surfar com ele. Casaram-se um ano depois, mudando-se para uma casa da praia.

Mickey ajudou Charley e eu a colocarmos as luvas de boxe. As minhas foram adquiridas numa barganha com um menino que estava se mudando da praia, em troca da minha boneca de pano Raggedy Ann, que viera junto com minha série de livros de Johnny Gruelle. Isso aconteceu numa noite particularmente tirânica com Nick, depois que eu anunciara meu desejo de aprender a lutar boxe. E então, alguns dias depois, para mostrar que não se constrangeu com meu desejo repentino de saber lutar - um gesto óbvio de protesto contra as fúrias alcoólicas de Nick -, ele preparou essa sessãozinha entre Charley e eu.

- Vai ser bom pra você, Norman - disse ele.

Enquanto Mickey se encarregava de desenhar o ringue, Charley e eu esticávamos o pescoço a fim de olhar para um aterro de topo achatado que havia no local.

- Parem de olhar para as damas nuas e ponham seus protetores bucais - disse Nick.

A praia de nudismo ficava bem ao lado do aterro, e tanto Charley quanto eu negamos imediatamente qualquer interesse pelas moças.

- Bom - disse Nick. - Vocês sabem o que existe por trás daqueles peitos e bundas?

Charley e eu erguemos os olhos para Nick, com todos os nossos sentidos em estado de alerta.

- Mães, avós, irmãos, irmãs, primos e primas com quem vocês vão ter de se entender - disse ele. - Casamentos e festas de aniversário. Dores de cabeça intermináveis.

Charley e eu esperávamos mais, mas aquilo foi tudo.

- Um dia vocês vão entender - disse Nick. - Protetores bucais no lugar?

- Sim - respondi.

- Ótimo. Sua mãe teria um ataque de nervos se você perdesse os dentes.

Mickey estava tomando sua cerveja. Olhou para trás, para a enseada onde ficava a minha casa, onde minha mãe regava as plantas no deque.

- Muito bem - disse Nick. - Levantem as mãos e mantenham os pés em movimento.

- Como Muhammad Ali - comentei.

Nick sorriu, e eu senti seu bafo de cerveja.

- É, exatamente como Ali.

Charley não parecia nem um pouco nervoso. Era 5 centímetros mais alto e pesava cerca de 5 quilos mais do que eu. Girávamos em torno um do outro, e eu dancei como Ali. Vi uns pontos desprotegidos entre a luva e o ombro de Charley, espaço bastante para socá-lo no queixo, só que meu braço se desviava, em vez de se lançar para a frente e esmurrá-lo. Tentei de novo um movimento de vaivém, mas os meus músculos se contraíram, e eu tive de vencer sua resistência para dar um golpe que acabou sendo um tapa na testa de Charley. E então, de repente, ele partiu pra cima de mim. Levantei minhas mãos, e ele me socou no estômago; perdi o fôlego e virei de lado, e ele me atingiu o nariz. Uma ferroada desceu pelo corpo até os pés. Não era uma simples dor. Era algo líquido e estava frio como o álcool que meu pai usava para limpar os ouvidos depois de surfar. Meus olhos se encheram de água e, na mesma hora, fiquei morrendo de medo. Olhei em volta em busca de ajuda, e Nick olhava para mim com os olhos semicerrados, os lábios franzidos.

- Quer desistir? - perguntou ele.

Fiz que sim com a cabeça. Charley ergueu os braços num gesto de vitória.

Estendi as mãos para Nick desamarrar minhas luvas, e ele esfregou a testa, suspirou e pôs o copo de cerveja na mesa. Charley movia-se com um andar arrogante, e Mickey cumprimentou-o pela sua macheza, o que me fez lembrar de eu ter chorado por causa da minha boneca de pano depois que fiz a barganha. Eu a queria de volta. Era o único brinquedo que restava da época em que meus pais viviam na mesma casa. Mas era tarde demais - o menino e a minha boneca já estavam em outra cidade.

Charley tirou as luvas e disse que ia andar de skate com Trafton e Shane e algumas das outras lendas da praia. Subiriam a Coastline, onde o asfalto era novo, as ruas eram largas e íngremes e as descidas nunca acabavam.

- Sua mãe proíbe isso expressamente, Norman - interrompeu Nick antes de eu ter chance de pedir para ir com Charley. Olhei para ele e senti meu rosto ficar vermelho e meu queixo tremer.

- Perigoso demais - acrescentou ele.

Toquei meu nariz, e doeu, e Nick parecia satisfeito por aquilo não fazer sentido - ele me deixava lutar boxe, mas não me deixava andar de skate.

- A vida é um longo ajuste de contas - disse ele, dando-me um tapinha nas costas para amenizar a injustiça. - Melhor se acostumar com isso desde agora, Norman - acrescentou ele.

Nick e Mickey saíram na nossa frente, carregando as luvas e os protetores bucais para não os perdermos. Segui Charley até sua casa, que ficava perto do local.

- Pode vir com a gente, se quiser - disse ele.

Eu não precisava da sua aprovação, eu também conhecia aqueles caras, mas fiz de conta que estava agradecido.

*

"Loucos por Tempestade"
Autor: Norman Ollestad
Editora: Record
Páginas: 308
Quanto: R$ 42,90
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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