Livraria da Folha

 
13/01/2010 - 22h00

Melancolia marca menino prodígio, escreve Lira Neto sobre Chopin

LIRA NETO
Especial para a Livraria da Folha

Autor de "Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão" , o escritor e jornalista Lira Neto escreveu um perfil sobre Frederic Chopin. Leia o texto.

"Tirem seus chapéus, senhores; ele é um gênio". Foi assim que, em um célebre artigo, o compositor alemão Robert Schumman referiu-se a Frederic Franciszek Chopin, então um jovem polonês de apenas 20 anos, tuberculoso e muito tímido, que resolvera trocar a provinciana Varsóvia pelas luzes da sofisticada Paris. O elogio derramado de Schumann não era à toa. Nascido em 22 de fevereiro 1810, na pequena cidade polonesa de Zelazowa Wola, Frederic Franciszek revelou-se um menino prodígio ao compor e executar publicamente sua primeira obra musical aos oito anos de idade.

Conta-se que, antes mesmo de aprender a escrever, o garoto já tentara compor melodias. Aos 15 anos, era considerado pela crítica "o maior pianista de Varsóvia". Logo viu-se que sua arte não ficaria confinada à Polônia, cuja capital, naquele ano de 1830, estava prestes a ser invadida, saqueada e incendiada pelas tropas do czarismo russo. "Ah, a cidade ardendo e eu sem poder matar sequer um moscovita", queixou-se, numa carta a um amigo, na viagem a caminho da capital francesa.

Em Paris, ele encontrou fama e dinheiro. E, a partir daí, Frederic Franciszek Chopin passou a ser afrancesadamente conhecido como Frédéric François Chopin --ou, simplesmente, Chopin. A fama só aumentou. O dinheiro ele gastava com tanta ou maior facilidade -e voracidade-- quanto ganhava.

Enquanto dava aulas de piano aos filhos e esposas dos parisienses mais abastados, fez contato com futuros mestres do mundo musical da época, a exemplo de Liszt e Berlioz. Passou a vestir-se impecavelmente: roupas de linho branco importado, lenços de seda no pescoço, capas pretas e sobrecasacas encomendadas aos melhores alfaiates da França. Andava em um cabriolé próprio, contratou um cocheiro e meia dúzia de criados. "Se eu fosse mais tolo do que sou, acreditaria ter chegado ao topo de minha carreira", escreveu ao pai, Nicholas Chopin, professor de francês e literatura no Liceu de Varsóvia.

O rapaz estava certo. Ele iria ainda bem mais longe em sua promissora carreira. Ao lado de seu inegável talento, a saúde frágil, os modos aristocráticos e o comportamento reservado ajudaram-lhe a consolidar a imagem de "gênio esquivo" entre seus pares. Um caso de amor platônico e um romance proibido contribuíram para que Chopin mergulhasse em um estado permanente de melancolia profunda, traço de personalidade que para sempre seria sua marca registrada.

Em 1829, seus olhos azuis-cinzentos se depararam com os de Constância Gladkowska, uma estudante de canto do Conservatório de Varsóvia. Foi uma paixão fulminante, mas Chopin jamais teve coragem de declarar-se a ela. Mais adiante, conseguiu pedir a mão de outra moça, Maria Wodzinska, uma polonesa que conhecera na infância e reencontrara em Paris. O namoro não seguiu adiante por determinação expressa da mãe da jovem, que não queria vê-la casada com um "pianistazinho tuberculoso". As cartas que enviara à amada foram providencialmente devolvidas. Chopin as guardou em um único envelope, no qual escreveu: "Moja bieda" ("Meu sofrimento").

A introspecção de Chopin refletia-se também em seu modo singular de apresentar-se ao piano, ao ponto de ele ser censurado por alguns críticos da época, que consideravam "fraca" e "com pouco volume" a sonoridade que o músico extraía do instrumento. Berlioz foi um dos primeiros a chamar a atenção para o fato de que, com isso, na verdade, Chopin inaugurava um novo estilo de tocar, mais intimista que o habitual. "Chopin executa suas composições com extrema doçura, com pianíssimos delicados, os martelos tocando de leve nas cordas, de tal maneira que somos tentados a nos aproximar do instrumento para prestar atenção, como faríamos ao ouvir um concerto de silfos ou de duendes", escreveu Berlioz.

Depois do caso de amor fracassado com Wodzinska, Chopin acabou unindo-se, em 1838, com a controvertida escritora Aurore Dupin, que assinava seus escritos com o pseudônimo masculino de George Sand. Os dois formaram um casal singular. Ele, esquivo e doente. Ela, oito anos mais velha, expansiva, divorciada, dona de uma legião de amantes, escandalizava a sociedade da época por seus livros ousados, seu hábito de fumar charutos em público, suas idéias socialistas e suas roupas de homem. "Como mulher, é um belo rapaz", definiu-a certa feita o poeta Alfredo Vigny. A despeito das diferenças evidentes, Chopin e Sand permaneceram juntos por cerca de dez anos. Houve inclusive quem insinuasse que Chopin, de ar quase afeminado, encontrara seu par perfeito.

Logo no início da relação, o casal decidiu abandonar Paris e refugiar-se em Palma de Mallorca, no litoral da Espanha, onde julgavam escapar da curiosidade pública e, ao mesmo tempo, encontrar melhores condições climáticas para cuidar da saúde abalada de Chopin. Não foi, porém, uma escolha feliz. A umidade local provocou uma série interminável de hemoptises (expectoração de sangue dos pulmões) no compositor, que um ano depois resolveu retornar a Paris, mais cansado do que partira. A união tumultuada entre o músico e a escritora foi rompida em 1846, após uma longa sucessão de crises mútuas de ciúmes. A experiência do casamento rendeu a ela a publicação do folhetim Lucrezia Floriani, no qual é impossível não identificar um dos personagens, Karol, um príncipe neurastênico e tuberculoso, com o próprio Chopin.

Frédéric Chopin morreu em 17 de outubro de 1849, solitário e endividado, com apenas 39 anos, em seu apartamento em Paris. Havia deixado de compor desde o ano anterior e, insatisfeito com sua produção mais recente, chegara a destruir várias partituras inéditas. Antes do sepultamento, os amigos atenderam-lhe o último pedido, rabiscado em um papel, na véspera da morte: seu corpo deveria ser aberto e o coração extirpado. Isso porque o maior temor de Chopin sempre fora o de sofrer uma crise de catalepsia (doença que faz com que pessoas vivas pareçam temporariamente mortas) e ser enterrado vivo.

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Talentoso desde o berço

Segundo seus biógrafos, o talento musical de Chopin revelou-se quando ele ainda era apenas um bebê. Antes de completar um ano, o garoto engatinhava embevecido para debaixo do cravo que a mãe, Justina Krzyzanowska, tocava em casa. Consta que, certa feita, ao ouvir marchas militares, o pequeno Chopin chorou desesperadamente, emitindo gritos inconsoláveis de pavor. Mais tarde, ao ser indagado por parentes a respeito do episódio, ele diria que desde muito cedo odiara músicas barulhentas e vazias. Por esse mesmo motivo, o compositor afirmava que sempre abominara a obra de Beethoven, que considerava "barulhenta" demais.

Melhor que o professor

Ao chegar a Paris, o polonês Chopin procurou tomar aulas com o pianista Frederico Kalkbrenner, um de seus ídolos musicais. Mas quando esteve na capital francesa e viu Chopin tocar, o compositor Felix Mendelssohn aconselhou-o a abandonar as lições com Kalkbrenner. Mendelssohn julgava tudo aquilo uma grande perda de tempo. "Você não vai aprender nada com isso, pois toca muito melhor que ele", sentenciou.

No olho da rua

Na temporada que viveram em Palma de Mallorca, Frédéric Chopin e a escritora George Sand, perdulários notórios, torraram em poucas semanas todo o dinheiro que haviam levado para lá, cerca de cinco mil francos. Assim, não conseguiram manter o aluguel em dia e foram várias vezes ameaçados de despejo pelo proprietário da casa onde moravam. Além de não pagar as contas, o casal era mal-visto pelos vizinhos, que temiam a propalada tuberculose do compositor e reprovavam as calças compridas e o comportamento pouco convencional de Sand. Entre aborrecido e apavorado, o senhorio não teve dúvidas: colocou-os no olho da rua.

Crise de abstinência

Nas longas cartas que enviava de Palma de Mallorca aos amigos que havia deixado em Paris, George Sand retratava Chopin como um homem arrasado pela enfermidade, o que, segundo ela própria, contribuiria para afastá-lo sexualmente dela. "Permaneci uma virgem imaculada durante todo o tempo que passamos juntos nessa ilha", escreveu, em tom de queixa.

Coração repousa na Polônia

Os restos mortais de Chopin estão no cemitério Père Lachaise, em Paris. Dentro da urna mortuária, foi depositada uma taça de prata cheia de areia polonesa, um presente que ele guardara por toda a vida e que lhe fora ofertado pelos amigos quando, ainda jovem, deixara sua terra natal. Cerca de três mil pessoas compareceram à cerimônia fúnebre, em que foi interpretada o Réquiem de Mozart, conforme desejo manifestado pelo compositor pouco antes de falecer. O coração de Chopin, extraído de seu peito logo após a morte, foi enviado para a catedral de Varsóvia, na Polônia.

PARIS JÁ ERA UMA FESTA...

A capital francesa respirava uma atmosfera liberal, bem diferente do clima opressivo da Polônia deixada por Chopin, um país em constante estado de terror, sob o domínio do czar russo Nicolau I. A saída do compositor de Varsóvia, em 2 de novembro de 1830, praticamente coincidiu com a insurreição popular contra os russos, conhecida como "Revolução Polonesa", iniciada no dia 29 do mesmo mês. Por uma questão de dias, Chopin não presenciou a sublevação que iria alimentar seu patriotismo e sua imaginação.

A revolução, porém, logo foi violentamente sufocada pelas tropas do czar. Milhares de poloneses não encontraram outra alternativa senão emigrar e buscar asilo em outros países, especialmente a França. Afinal, Paris acabara de viver também uma revolução, liberal, responsável pela deposição do rei Carlos X e pela subida ao trono do duque Luís Felipe de Orleans, com a ajuda da burguesia. Assim, os exilados poloneses eram recebidos com simpatia pelos burgueses franceses, que sempre haviam se mostrado hostis ao czarismo russo.

O cenário, portanto, não poderia ser mais propício para a chegada de Chopin a Paris. Sem nunca ter podido voltar à Polônia, que continuaria sob o poder do império russo, Chopin notabilizou-se por aproveitar, em sua música, elementos e ritmos do folclore de sua terra natal. Seu nacionalismo estético, uma das características mais marcantes do Romantismo, ficaria explicitado em algumas de suas composições mais famosas, as "polonesas" - ou "polonaises".

Assim como boa parte de seus contemporâneos românticos, Chopin buscava uma música subjetivista e individualista, mais emocional, livre dos rigores formais do classicismo imediatamente anterior. A exemplo do Romantismo literário, os compositores do período se mostravam fascinados por terras exóticas, pelo passado mítico e heróico, especialmente o medieval. A magia, a natureza, os sonhos, a noite e o nacionalismo serão suas fontes constantes de inspiração.

Com esses ingredientes, os românticos produzirão uma obra rica e variada, que dominará todo o século 19. Chopin, por sua vez, construirá uma obra essencialmente pessoal, nostálgica e intimista, que terá nas curtas peças musicais, compostas especialmente para o piano, seus melhores momentos.

publicado originalmente na coleção Folha de Música Clássica

 
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