Livraria da Folha

 
18/01/2010 - 20h01

Autor conta experiência de ter dois filhos deficientes; leia trecho

da Livraria da Folha

Divulgação
Escritor conta experiências como pai de duas crianças deficientes
Escritor conta experiências como pai de duas crianças deficientes

Jean-Louis Fournier, autor de "Aonde a Gente Vai, Papai?", mostra no livro a dor de, por duas vezes, ver diagnosticada a incontornável deficiência de dois filhos, experiência chamada por ele de "dois fins do mundo".

O título do livro é a pergunta que uma dessas crianças faz sempre que entra no carro, há mais de dez anos. Seus filhos, Thomas e Mathieu, jamais aprenderam a ler, jamais compartilharam com o pai uma história, uma aventura ou uma descoberta. Por conta de seus problemas, eles ficaram mais velhos, mas não se tornaram adultos.

Em textos curtos, quase casos narrados conforme a lembrança, Fournier relata essa experiência paterna sem apelo, com franqueza e ternura singulares, deixando transparecer --sem medo de parecer franco demais-- o sentimento ambíguo que o leva, por vezes, a odiar aquelas eternas crianças.

Confira abaixo um trecho extraído do livro.

*

Depois que entra no Camaro, Thomas, dez anos, repete, como sempre: "Aonde a gente vai, papai?"

No início, respondo: "Vamos para casa."

Um minuto depois, com a mesma candura, ele faz de novo a mesma pergunta, sem ênfase. No décimo "Aonde a gente vai, papai?", não respondo mais...

Não sei mais muito bem aonde vamos, meu pobre Thomas.

Vamos por água abaixo. Vamos direto para o paredão.

Um filho deficiente, depois dois. Por que não três...

Eu não esperava por isso.

Aonde a gente vai, papai?

Vamos pegar a estrada, na contramão.

Vamos para o Alasca. Vamos acariciar os ursos. Vamos nos fazer devorar.

Vamos pegar cogumelos. Vamos colher Amanita phalloides para fazer uma boa omelete.

Vamos à piscina, vamos mergulhar do grande trampolim, em um tanque em que não há água.

Vamos para o mar. Vamos para o monte Saint- Michel. Vamos passear na areia movediça. Vamos nos atolar. Vamos para o inferno.

Imperturbável, Thomas continua: "Aonde a gente vai, papai?" Talvez ele bata o próprio recorde. Depois da centésima vez, a coisa fica realmente irresistível. Com ele, a gente não se entedia, Thomas é o rei do bordão.

*

Aqueles que nunca tiveram medo de ter um filho que não fosse normal que levantem a mão.

Ninguém levantou.

Todo mundo pensa nisso como pensa num terremoto, como pensa no fim do mundo - algo que só acontece uma vez.

Eu tive dois fins do mundo.

*

Quando olhamos para um recém-nascido, ficamos contemplativos. Como é benfeito. Olhamos para as mãos, contamos os dedos minúsculos, percebemos que há cinco em cada mão, o mesmo em cada pé. Ficamos siderados - nem quatro nem seis, não
só cinco. É, a cada vez, um milagre. Isso sem falar no que há lá dentro, ainda mais complicado.

Fazer um filho é correr um risco... Nem sempre ganhamos. No entanto, continuamos a fazê-los.

A cada segundo, sobre a Terra, uma mulher dá à luz um filho... Definitivamente, é preciso encontrá-la e lhe dizer que pare, acrescentou o humorista.

Ontem, fomos ao convento de Abbeville apresentar Mathieu à tia Madeleine, que é religiosa carmelita.

Fomos recebidos no locutório, um pequeno cômodo caiado de branco. Na parede do fundo havia uma abertura fechada por uma cortina pesada. Não era vermelha, como no teatro de Guignol - era negra. Ouvimos uma voz que saía detrás da cortina, que disse: "Bom dia, crianças."

Era tia Madeleine. Ela é enclausurada, não tem permissão de nos ver. Conversamos um pouco com ela, que depois quis ver Mathieu. Pediu que puséssemos o Moisés diante da abertura e que, em seguida, nos virássemos para a parede. As irmãs enclausuradas têm o direito de ver as crianças pequenas, não as grandes. Ela então chamou as religiosas para admirar seu sobrinho-neto. Ouvimos o farfalhar dos hábitos, tagarelices e risos, depois o ruído da cortina que se abriu. Houve então um concerto de louvores, de cosquinhas para cá e para lá na divina criança. "Ele é uma gracinha! Olhe, Madre, está sorrindo para nós, parece um anjinho, um pequeno Jesus...!" Por pouco não disseram que parecia uma criança precoce.

Para as religiosas, as crianças são, acima de tudo, criaturas do bom Deus; são, portanto, perfeitas. Tudo o que Deus faz é perfeito. Elas não querem ver os defeitos. Além disso, trata-se do sobrinho-neto da Madre Superiora. Em certo momento, tive a tentação de me virar para dizer-lhes que não precisavam exagerar.

Não fiz isso, ainda bem.

Ao menos uma vez o pobre Mathieu ouvia elogios...

*

Nunca esquecerei o primeiro médico que teve coragem de anunciar para nós que Mathieu, definitivamente, não era normal. Ele se chamava professor Fontaine, foi e Lille. Disse-nos que não podíamos nos iludir. Mathieu era retardado, seria sempre retardado; de modo que não havia nada a fazer: ele era deficiente, física e mentalmente.

Naquela noite, não dormimos bem. Lembro-me de ter tido pesadelos.

Até então, os diagnósticos tinham permanecido imprecisos. Mathieu era retardado. Tinham-nos dito que era apenas físico, que ele não tinha problema mental.

Vários parentes e amigos tentavam, muitas vezes de modo desastrado, nos tranquilizar. A cada vez que o viam, diziam-se surpresos com os progressos que ele fazia. Recordo-me de um dia lhes ter dito que ficava surpreso com os progressos que ele não fazia. Eu olhava para os filhos dos outros.

Mathieu era mole. Não conseguia manter a cabeça ereta, como se o pescoço fosse de borracha. Enquanto os filhos dos outros se aprumavam, arrogantes, para exigir comida, Mathieu continuava deitado. Ele nunca tinha fome, era preciso uma paciência de santo para fazê-lo comer, e com frequência ele vomitava no santo.

*

Se uma criança que nasce é um milagre, uma criança deficiente é um milagre ao contrário.

O pobre Mathieu não enxergava muito bem, tinha os ossos frágeis, os pés, tortos, tornou-se rapidamente corcunda. Os cabelos eram espetados, ele não era bonito e, acima de tudo, era triste. Era difícil fazê-lo rir, ele repetia como uma cantilena: "Ah, lá, lá, Mathieu... Ah, lá, lá, Mathieu..." Às vezes, tinha crises de lágrimas dilacerantes, como se sofresse atrozmente por não poder nos dizer nada. Sempre tivemos a impressão de que entendia o próprio estado. Devia pensar: "Se eu soubesse, não teria vindo."

Queríamos poder tê-lo defendido da sorte que se havia agarrado a ele. O mais terrível é que não podíamos fazer nada. Não podíamos sequer consolá-lo, dizer-lhe que o amávamos assim como era - tinham-nos dito que ele era surdo.

Quando penso que sou o autor dos dias dele, dos dias terríveis que ele passou na Terra, que fui eu quem o fez vir, tenho vontade de lhe pedir desculpas.

*

"Aonde a Gente Vai, Papai?"
Autor: Jean-Louis Fournier
Editora: Intrínseca
Páginas: 160
Quanto: R$ 15,92
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
Voltar ao topo da página