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19/01/2010 - 12h19

Dor é um evento, diz Hugh Laurie, ator que interpreta "dr. House"; leia trecho

da Folha Online

Divulgação
Romance de Laurie conta história de espiões com humor inteligente
Romance de Laurie conta história de espiões com humor inteligente

No último dia 12 de janeiro, houve uma reestreia com teor de estreia. O ator Hugh Laurie, que interpreta o "dr. House", lançou novamente o livro "O Vendedor de Armas" (Planeta, 2010).

Lançado originalmente em 1998, o romance assemelha-se aos episódios do seriado "House", porém o tipo de diagnóstico que pontua não se relaciona com o avanço da enfermidade momentânea presente no volume. O espectador/leitor encontra um mau espírito salvador tentando salvar o contexto de uma vida que já partiu.

O volume é uma sátira de ficção e está repleto de piadas afiadas, questionamentos sarcásticos e diagnósticos cotidianos que evidenciam uma chaga social. A narrativa toma corpo quando Thomas Lang, ex-militar de elite, recebe uma proposta de US$ 100 mil para assassinar um empresário norte-americano e, imediatamente, decide alertar a suposta vítima. Daí em diante, sua ação não ficará impune.

Ao longo de 288 páginas, divididas por 26 capítulos, Lang utilizará uma estátua de Buda, jogará cartas com bilionários impiedosos e chegará a colocar sua vida nas mãos de mulheres fatais para se defender. A quantidade de ações que o fazem agir dessa forma são acompanhadas pela qualidade dos contextos pelos quais é obrigado a assimilar.

Leia abaixo um trecho, extraído do capítulo inicial de "O Vendedor de Armas", no qual Laurie inicia a narrativa com uma suposição --a de quebrar o braço de alguém. Afirma ainda que a dor é um evento, "e você lida com ela da melhor maneira possível".

*

um

Vi um homem esta manhã
Que não queria morrer
P. S. Stewart

Imagine que você precisa quebrar o braço de alguém.

Não interessa se é o direito ou o esquerdo. O ponto é que você precisa quebrá-lo, porque se não o fizer... bom, isso não importa também. Vamos dizer que coisas ruins vão acontecer se você não fizer isso.

O que quero perguntar é o seguinte: você quebraria o braço da pessoa rapidinho - tipo crack, oops, desculpe, deixa eu ajudar você com esta tala improvisada - ou prefere fazer aquele serviço completo que dura uns bons oito minutos, aumentando a pressão aos poucos, até que a dor fique rosa e verde e quente e fria e tudo isso junto, o que a torna dolorosamente insuportável?

Exatamente. É claro. O certo a fazer, a única coisa a se fazer, é resolver a coisa logo, o mais rápido possível. Quebre o braço, ofereça um conhaque e seja um bom cidadão. Não pode haver nenhuma outra resposta.

A menos que.

A menos que, a menos que, a menos que...

E se você odiasse a pessoa do braço? Quero dizer, se odiasse muito, mas muito mesmo.

Isso era algo que eu tinha que considerar agora.

Quando digo agora, quero dizer naquela hora, naquele momento em que eu estava querendo descrever; o momento em câmera lenta, ah, maldita câmera lenta, antes de o meu punho alcançar a parte de trás do meu pescoço e meu úmero esquerdo se quebrar em pelo menos dois, ou muito possivelmente mais, pedaços moloides presos um ao outro.

O braço do qual estávamos falando, como pode ver, era o meu. Não é um braço abstrato, filosófico. O osso, a pele, os pelos, a pequena cicatriz branca no cotovelo, ganha da quina de um armário na Escola Primária de Gateshill - tudo isso pertence a mim. E agora é o momento no qual devo considerar a possibilidade de que o homem atrás de mim, prendendo meu braço e o levantando pelas minhas costas com um cuidado quase sexual, me odeia. Quero dizer, me odeia muito, muito mesmo.

Ele está fazendo isso há uma eternidade.

O sobrenome dele era Rayner. Primeiro nome desconhecido. Por mim, na verdade, e por causa disso, presumivelmente, pra você também.

Imagino que alguém, em algum lugar, sabia o primeiro nome dele - deve tê-lo batizado com esse nome, chamado ele para o café da manhã, ensinado como soletrá-lo - e alguém deve tê-lo gritado do outro lado do bar oferecendo uma bebida, ou murmurado durante o sexo, ou escrito no campo de um formulário de seguro de vida. Sei que devem ter feito todas essas coisas. É apenas difícil imaginar, só isso.

Estimo que Rayner era uns dez anos mais velho do que eu. E tudo bem. Nada errado com isso. Tenho relações ótimas e sem braços quebrados com várias pessoas que têm dez anos a mais do que eu. Em geral, pessoas dez anos mais velhas do que eu são admiráveis. Mas Rayner também era uns oito centímetros mais alto do que eu, 30 quilos mais pesado e pelo menos uns oito qualquer-que-seja-a-medida-para-a-violência mais violento. Ele era mais feio do que não sei o quê, com uma cabeça enorme e careca; seu nariz, amassado de lutador, parecia ter sido desenhado na cara dele por alguém usando a mão esquerda, ou talvez até mesmo o pé esquerdo, saía do rosto em um sinuoso e assimétrico triângulo abaixo de sua testa áspera e grossa.

Aliás, benza Deus, que testa! Tijolos, facas, garrafas e argumentos que faziam sentido, cada um a seu tempo, bateram e voltaram naquela massiva superfície frontal, deixando apenas pequenas marcas entre seus poros profundos e espaçadamente gigantes. Acho que eram os poros mais profundos e espaçados que já vi em uma pele humana, por isso me vi pensando no conselho do verde de Dalbeattie, no fim do longo e seco verão de 1976.

Mudando agora para a parte lateral, descobrimos que as orelhas de Rayner foram, há muito tempo, arrancadas com mordidas e depois colocadas de volta, porque a esquerda só podia estar de cabeça para baixo, ou talvez do avesso, ou algo que fizesse você olhar para ela um longo tempo até pensar "ah, é uma orelha".

E além de tudo isso, se você ainda não entendeu, Rayner usava uma jaqueta de couro preta por cima de uma camiseta preta de gola alta, tipo cacharel.

Mas é claro que você tinha entendido. Rayner podia ter se enrolado em seda brilhante, colocado uma orquídea atrás de cada orelha e, ainda assim, pedestres nervosos dariam dinheiro primeiro e depois iam pensar se deviam algo a ele ou não.

Com tudo que aconteceu, eu não devia dinheiro a ele. Rayner pertencia àquele seleto grupo de pessoas às quais eu não devia nada, e se as coisas tivessem ido um pouco melhor entre nós, eu teria sugerido que seus colegas tivessem um cumprimento especial, que representasse uma sociedade. Um tema dos caminhos que se cruzavam, talvez.

Mas, como disse antes, as coisas não iam bem entre nós dois.

Um instrutor de combate de um braço só chamado Cliff (sim, eu sei, ele ensinava combate sem armas e só tinha um braço - muito raramente a vida é assim mesmo) me disse uma vez que a dor é algo que você inflige a você mesmo. Outras pessoas fazem coisas com você - batem, esfaqueiam ou tentam quebrar seu braço -, mas quem produz a dor é você. Portanto, dizia Cliff que tinha passado duas semanas no Japão e que por isso se sentia no direito de descarregar esse tipo de merda em seus alunos - está sempre em seu poder parar a sua própria dor. Cliff foi morto em uma briga de pub três meses depois por uma viúva de 55 anos, por isso não terei a chance de dizer a ele que isso não era verdade.

A dor é um evento. Ela acontece com você, e você lida com ela da melhor maneira possível.

A única coisa a meu favor era que, até agora, eu não tinha emitido nenhum som.

E quero que entenda que não tinha nada a ver com bravura, eu simplesmente não tinha tido a oportunidade. Até esse momento, Rayner e eu tínhamos nos debatido em paredes e mobílias em um másculo e suado silêncio, com um ou outro grunhido para mostrar que ambos ainda estávamos concentrados. Mas agora, apenas alguns segundos antes de eu desmaiar ou do meu osso ceder e se quebrar, era o momento ideal para introduzir um novo elemento. E um som foi tudo o que consegui pensar.

Então, respirei fundo pelo nariz, me endireitei para ficar o mais perto possível do rosto dele, segurei a respiração por um momento e soltei o que os japoneses lutadores de artes marciais chamam de kiai - você provavelmente chamaria de barulho muito alto, e isso seria uma boa descrição - um grito tão cegante, chocante e de uma intensidade do tipo que-porra-de-barulho-alto-foi-esse que eu mesmo fiquei assustado com ele.

Em Rayner, o efeito foi o que eu esperava, porque ele involuntariamente foi um pouco para o lado, soltando aos poucos o meu braço por um vigésimo de segundo. Joguei minha cabeça para trás o mais rápido que pude para acertar a cara dele, sentindo a cartilagem de seu nariz se ajustando ao contorno do meu crânio e um líquido sedoso se espalhando pela minha cabeça, então levantei meu calcanhar e bati no saco dele, arranhando a parte interna de suas coxas antes de alcançar sua impressionante genitália. Quando o vigésimo de segundo acabou, Rayner não estava mais tentando quebrar meu braço, e percebi de repente que eu estava encharcado de suor.

Saí de perto dele dançando na ponta dos pés como um velho cão São Bernardo, procurando por alguma arma.

O local desse campeonato de luta-livre de amadores que teve um round de quinze minutos era uma sala de estar pequena e deselegantemente decorada no bairro de Belgravia. O decorador tinha feito um trabalho perfeitamente horrível, como todos os decoradores de interiores em geral fazem, todas às vezes, sem exceções - mas, bem naquela hora, o gosto dele ou dela por objetos portáteis e pesados coincidiu com o meu. Escolhi um Buda de 40 centímetros que estava na lareira e o peguei com meu braço bom, descobrindo que as orelhas do gordinho eram perfeitas para uma boa pegada da minha única mão que funcionava bem.

Rayner estava agora ajoelhado e vomitando em um tapete chinês, o que melhorava a falta de cor dele. Escolhi uma boa posição, me preparei e acertei ele com tudo, batendo a parte de baixo do Buda logo atrás da orelha esquerda dele. Ouve um barulho surdo e seco, daqueles que apenas a pele humana faz ao ser atacada, e então ele rolou para o lado.

Não me preocupei em ver se ele ainda estava vivo. Insensível? Talvez, mas a vida é assim. Limpei um pouco do suor do rosto e fui até o corredor. Tentei ouvir algo, mas, se havia algum som vindo da casa ou da rua, eu nunca teria ouvido, porque meu coração batia como uma britadeira. Ou talvez tivesse mesmo uma britadeira lá fora. Eu estava preocupado demais em respirar grandes quantidades de ar para notar qualquer coisa.

Abri a porta da frente e logo senti uma garoa fria no rosto. Ela se misturou com o suor, se diluindo, diluindo a dor no meu braço, diluindo tudo, por isso fechei os olhos e a deixei cair. Foi uma das melhores coisas que já experimentei. Você pode dizer que a vida que eu levo deve ser bem pobre. Perceba, então, que o contexto é tudo na vida.

Fechei a porta, saí para a calçada e acendi um cigarro. Gradualmente e meio irritado, meu coração foi entrando em seu ritmo normal, e minha respiração o seguiu a distância. A dor em meu braço era terrível, e eu sabia que me acompanharia por dias, ou talvez semanas, mas pelo menos não era no braço da minha mão de fumar.

Voltei para dentro da casa e vi que Rayner estava exatamente onde eu o havia deixado, deitado em uma poça de vômito. Ou ele estava morto, ou seriamente ferido, o que significava no mínimo cinco anos de prisão em qualquer dos casos. Dez, com o tempo sendo aumentado por mau comportamento. E isso, do meu ponto de vista, era muito mau.

Eu já estive na prisão, entende? Apenas três semanas, e era só uma prisão preventiva, mas quando você precisa jogar xadrez duas vezes por dia com um torcedor monossilábico do West Ham que tem a palavra ÓDIO tatuada em uma mão e ÓDIO tatuada na outra também - usando um jogo sem seis peões, as torres e dois bispos -, você começa a agradecer pelas pequenas coisas da vida. Como não estar na prisão.

Estava eu contemplando esse e outros assuntos relacionados e começando a pensar em todos os países tropicais que eu ainda não conhecia quando percebi que um barulho - algo leve, meio rangendo e arranhando - definitivamente não vinha do meu coração batendo. Nem dos meus pulmões ou de qualquer parte do meu corpo, ele vinha de fora, com certeza.

Alguém, ou algo, tentava com muita vontade, mas sem sucesso, descer as escadas em silêncio.

Deixei o Buda onde estava e peguei um acendedor de lareira de alabastro horroroso, seguindo em direção à porta, que por sinal também era horrorosa. "Como alguém pode fazer uma porta horrorosa?", você poderia perguntar. Bem, dá um certo trabalho, claro, mas pode acreditar no que digo, os decoradores de interiores conseguem fazer algo assim antes de tomar café da manhã.

Tentei segurar a respiração, mas não consegui, então esperei, fazendo um pequeno barulho. Um interruptor acendeu uma luz em algum lugar, e logo depois apagou. Uma porta se abriu, houve uma pausa, nada ali também, e a porta foi fechada. Fique parado. Pense. Tente a sala de estar.

Houve um farfalhar de roupa, um passo leve e então eu estava relaxando o aperto da minha mão em torno do grande isqueiro de alabastro e me recostando na parede com algo parecido com um alívio. Mesmo em meu estado de pavor e dor, tinha certeza absoluta de que o Fleur de Fleurs da Nina Ricci não era o perfume de um lutador.

*

"O Vendedor de Armas"
Autor: Hugh Laurie
Editora: Planeta
Páginas: 288
Quanto: R$ 39,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 e no site da Livraria da Folha

 
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