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20/01/2010 - 09h03

Livro explica a importância da diplomacia na história; leia trecho

da Folha Online

Para Thomas Hobbes, filósofo inglês do século 17, o homem era essencialmente mau e, em seu estado natural, vivia em guerra permanente com seus semelhantes.

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Será que temos feito esforços adequados para manter a paz entre nações?
Será que temos feito esforços adequados para manter a paz?
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Textos elucidativos, cuidadosamente pesquisados e escritos com clareza
Elucidativos, cuidadosamente pesquisados e escritos com clareza

Na história, existem tantos casos de paz quanto há os de guerras. Do mesmo modo que sempre existiram os facínoras, outras tantas pessoas viveram engajadas em prevenir conflitos e dirimir o sofrimento gerado pelas catástrofes naturais.

Contudo, será que esses esforços são suficientes para balancear os atos humanos? É possível evitar que a humanidade rume para a extinção ou para um eterno combate?

O livro "História da Paz" --que mostra como a paz é fruto de conquistas, de esforços diplomáticos, de conciliação entre poderosos e de acordos entre iguais e desiguais-- estabelece um diálogo com "História das Guerras", do mesmo organizador, ambos publicados no Brasil pela editora Contexto.

Abaixo, leia um trecho do livro.

*

INTRODUÇÃO: ALÉM DE HOBBES

Demétrio Magnoli

Esta História da paz é uma narrativa do gênio humano aplicado à construção da ordem internacional. No fim das contas, é uma história da tentativa de conjurar o persistente espectro hobbesiano da "guerra de todos contra todos".

A passagem de Thomas Hobbes é um dos pontos culminantes do pensamento político moderno. É inevitável revisitá-la:

Em todos os tempos, os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência, vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro, isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra.

O Leviatã, no qual se encontra a passagem célebre, é de 1651. Há uma ironia aí: três anos antes, fechando o ciclo da Guerra dos Trinta Anos, as cidades de Munster e Osnabruck haviam recebido plenipotenciários de 16 estados europeus, 140 estados do Sacro Império Germânico e 38 principados e cidades livres, que negociaram a Paz da Westfália e edificaram um sistema fundado sobre o conceito de soberania estatal e a promessa de paz perpétua e universal.

Hobbes estava dizendo que só a guerra podia aspirar à permanência. Os soberanos não estavam apenas dizendo que a paz era possível, mas a fabricavam realmente como um fruto da vontade pactuada. Quem tinha a razão?

Westfália e Leviatã são dois atos inaugurais da modernidade. Eles compartilham uma experiência de libertação: a política deslindava-se da submissão prática e ideológica ao poder imperial da Igreja. Da independência do Estado, os soberanos reunidos em Munster e Osnabruck extraíram um princípio de convivência na diversidade. Da mesma independência, Hobbes concluiu pela inevitabilidade da guerra.

No vasto concerto de potências grandes e pequenas da Westfália, as escassas ausências notáveis foram Inglaterra, Rússia e Turquia. Um estudioso dos tratados registrou que "nenhum dos signatários parece ter se preocupado com a ausência dos ingleses".1 É que os ingleses encontravam-se imersos na sua "guerra dos nove anos", a guerra civil entre realistas e parlamentaristas deflagrada em 1642 e encerrada apenas com a substituição da monarquia pela Commonwealth e depois pelo Protetorado de Oliver Cromwell.

Hobbes enquadrou a guerra civil na metáfora do "estado de natureza" e concebeu o Leviatã como o poder supremo que se apropria do direito à violência, tornando-o um monopólio para instaurar a ordem interna. Esse poder supremo, que é o Estado, ergue-se sobre a supressão da independência das pessoas privadas, isto é, sobre a negação do direito à violência privada. Mas a arena internacional moderna caracteriza-se justamente pela independência dos soberanos, que se libertaram do dever de obediência à Santa Sé. Na ausência do imperium, vale unicamente a vontade dos soberanos independentes. É essa vontade, não restringida por nenhum poder superior, aquilo que se chama guerra.

A figura monumental de Hobbes faz sombra sobre tudo o que existiu ao seu redor. Mas não é possível abordar os atos de inauguração da modernidade sem lançar um facho de luz na direção de Hugo Grotius, o jurista holandês que morreu três anos antes da Westfália e seis anos antes do aparecimento do Leviatã. Grotius, o autor do De Jure Belli ac Pacis (Sobre as leis da guerra e da paz), de 1625, é considerado o pai fundador do direito internacional. A expressão "sociedade internacional", largamente utilizada pela mídia, é uma decorrência lógica de seu pensamento.

Em Hobbes, nada, exceto a desconfiança mútua, une os soberanos. Em Grotius, os soberanos formam uma comunidade de valores, pois compartilham a lei da natureza. Daí emana a obrigação geral de cultivar a justiça, respeitar os direitos dos demais soberanos e observar escrupulosamente as regras pactuadas. Aquilo que se chama paz é o produto da subordinação de todos às leis da natureza. Grotius não exerceu nenhuma influência sobre os tratados de Munster e Osnabruck, mas, na narrativa da história do direito, a Paz da Westfália representa a consagração da ordem que ele imaginou.

A doutrina do pacifismo difundiu-se no século XX, especialmente após a Primeira Guerra Mundial. Os pacifistas contrastam a guerra à paz como a noite ao dia e sonham abolir a guerra por meio de um pacto geral que a coloque fora da lei. Grotius não era um pacifista, algo que fica evidenciado já no título de sua obra fundadora, no qual guerra e paz aparecem como instâncias distintas de uma mesma ordem jurídica. Uma passagem sintética esclarece a sua abordagem:

Da lei da natureza, a qual pode também ser denominada lei das nações, é evidente que não são condenáveis todas as formas de guerra. Do mesmo modo, toda a história e as leis costumeiras de todos os povos informam-nos suficientemente que a guerra não é condenada pela lei voluntária das nações.

Erasmo pleiteava a proscrição da guerra por razões de consciência.Grotius, por outro lado, procurava configurar uma paz internacional baseada na justiça, mas o seu sistema não excluía o recurso à "guerra justa". O conceito de "guerra justa" fixou-se no direito internacional e foi encampado tanto pela Liga das Nações quanto pelas Nações Unidas. A guerra de autodefesa é justa, como são justas as guerras decididas pelo Conselho de
Segurança da ONU para combater estados que ameaçam a segurança internacional. A guerra justa promove uma paz baseada na justiça. "A guerra é a continuação da política por outros meios". A máxima de Clausewitz não significa apenas que a guerra é uma instância da política, mas também que paz e guerra estão conectadas pelos fios do intercâmbio político.

A diplomacia não se cala quando começa o rugido da artilharia e nem mesmo nas guerras mais terríveis cessam completamente os contatos diplomáticos entre os inimigos. Uma história da paz não é a narrativa dos eventos situados nos interstícios das guerras, mas uma revisão dos esforços de construção de uma ordem internacional estável. A razão está com Hobbes e com Grotius, que enxergaram o mesmo panorama a partir de mirantes diferentes.

A diplomacia surgiu na Grécia antiga, quando embaixadores eram esporadicamente enviados a cidades-estado, em missões especiais para entregar oferendas e mensagens de seu governo. Essa condição de mensageiro, que caracteriza o diplomata, desdobrou-se numa série de papéis. O diplomata negocia acordos entre Estados, exercitando a mediação e a persuasão, o que exige a nítida identificação do interesse de seu governo, mas também o reconhecimento da legitimidade dos interesses do governo estrangeiro. O diplomata ameniza as fricções inerentes ao sistema internacional, exercitando a interlocução, o que solicita a apreciação das diferenças de valores, culturas e atitudes entre as nações. Finalmente, o diplomata realiza atividades de inteligência, colhendo informações relevantes sobre a política das nações estrangeiras e procurando conservar na obscuridade as informações vitais relativas a seu próprio país. As figuras do diplomata e do espião não são idênticas, mas as funções do primeiro coincidem parcialmente com as do segundo.

A palavra diplomacia tem raízes no termo grego "diploma", um certificado de conclusão de estudos, e, em Roma, passou a ser utilizada para descrever documentos oficiais de viagem como passaportes e vistos imperiais. A diplomacia moderna nasceu nas cidades livres da Itália renascentista. Francesco Sforza, condottieri de Milão, estabeleceu as primeiras embaixadas permanentes no século XV. Naquela época, consolidaram-se as convenções diplomáticas, como a apresentação de credenciais ao governo estrangeiro e a instituição do privilégio da imunidade dos diplomatas. Essas convenções, junto com incontáveis procedimentos diplomáticos tradicionais, não têm unicamente sentidos práticos, mas um claro significado simbólico:

No sistema global internacional - em que os estados são mais numerosos, mais profundamente divididos e menos explicitamente participantes de uma cultura comum -, a função simbólica dos mecanismos diplomáticos torna-se, exatamente por essas razões, ainda mais importante. A vontade notória de estados de todas as regiões, culturas, ideologias e de todos os estágios de desenvolvimento de abraçar procedimentos diplomáticos muitas vezes estranhos e arcaicos, que nasceram na Europa em outra época, é atualmente um dos raros indícios observáveis da aceitação universal da noção de uma sociedade internacional.

Os diplomatas representam os interesses de estados particulares; a diplomacia simboliza a consciência compartilhada da existência de uma sociedade internacional de estados. Uma história da paz é uma narrativa das obras dessa sociedade - ou seja, antes de tudo, dos tratados que moldaram a ordem política internacional.

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"História da Paz"
Editora: Editora Contexto
Páginas: 448
Quanto: R$ 39,92
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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