da Folha Online
Para Thomas Hobbes, filósofo inglês do século 17, o homem era essencialmente mau e, em seu estado natural, vivia em guerra permanente com seus semelhantes.
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Será que temos feito esforços adequados para manter a paz? |
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Elucidativos, cuidadosamente pesquisados e escritos com clareza |
Na história, existem tantos casos de paz quanto há os de guerras. Do mesmo modo que sempre existiram os facínoras, outras tantas pessoas viveram engajadas em prevenir conflitos e dirimir o sofrimento gerado pelas catástrofes naturais.
Contudo, será que esses esforços são suficientes para balancear os atos humanos? É possível evitar que a humanidade rume para a extinção ou para um eterno combate?
O livro "História da Paz" --que mostra como a paz é fruto de conquistas, de esforços diplomáticos, de conciliação entre poderosos e de acordos entre iguais e desiguais-- estabelece um diálogo com "História das Guerras", do mesmo organizador, ambos publicados no Brasil pela editora Contexto.
Abaixo, leia um trecho do livro.
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INTRODUÇÃO: ALÉM DE HOBBES
Demétrio Magnoli
Esta História da paz é uma narrativa do gênio humano aplicado à construção da ordem internacional. No fim das contas, é uma história da tentativa de conjurar o persistente espectro hobbesiano da "guerra de todos contra todos".
A passagem de Thomas Hobbes é um dos pontos culminantes do pensamento político moderno. É inevitável revisitá-la:
Em todos os tempos, os reis, e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência, vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro, isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra.
O Leviatã, no qual se encontra a passagem célebre, é de 1651. Há uma ironia aí: três anos antes, fechando o ciclo da Guerra dos Trinta Anos, as cidades de Munster e Osnabruck haviam recebido plenipotenciários de 16 estados europeus, 140 estados do Sacro Império Germânico e 38 principados e cidades livres, que negociaram a Paz da Westfália e edificaram um sistema fundado sobre o conceito de soberania estatal e a promessa de paz perpétua e universal.
Hobbes estava dizendo que só a guerra podia aspirar à permanência. Os soberanos não estavam apenas dizendo que a paz era possível, mas a fabricavam realmente como um fruto da vontade pactuada. Quem tinha a razão?
Westfália e Leviatã são dois atos inaugurais da modernidade. Eles compartilham uma experiência de libertação: a política deslindava-se da submissão prática e ideológica ao poder imperial da Igreja. Da independência do Estado, os soberanos reunidos em Munster e Osnabruck extraíram um princípio de convivência na diversidade. Da mesma independência, Hobbes concluiu pela inevitabilidade da guerra.
No vasto concerto de potências grandes e pequenas da Westfália, as escassas ausências notáveis foram Inglaterra, Rússia e Turquia. Um estudioso dos tratados registrou que "nenhum dos signatários parece ter se preocupado com a ausência dos ingleses".1 É que os ingleses encontravam-se imersos na sua "guerra dos nove anos", a guerra civil entre realistas e parlamentaristas deflagrada em 1642 e encerrada apenas com a substituição da monarquia pela Commonwealth e depois pelo Protetorado de Oliver Cromwell.
Hobbes enquadrou a guerra civil na metáfora do "estado de natureza" e concebeu o Leviatã como o poder supremo que se apropria do direito à violência, tornando-o um monopólio para instaurar a ordem interna. Esse poder supremo, que é o Estado, ergue-se sobre a supressão da independência das pessoas privadas, isto é, sobre a negação do direito à violência privada. Mas a arena internacional moderna caracteriza-se justamente pela independência dos soberanos, que se libertaram do dever de obediência à Santa Sé. Na ausência do imperium, vale unicamente a vontade dos soberanos independentes. É essa vontade, não restringida por nenhum poder superior, aquilo que se chama guerra.
A figura monumental de Hobbes faz sombra sobre tudo o que existiu ao seu redor. Mas não é possível abordar os atos de inauguração da modernidade sem lançar um facho de luz na direção de Hugo Grotius, o jurista holandês que morreu três anos antes da Westfália e seis anos antes do aparecimento do Leviatã. Grotius, o autor do De Jure Belli ac Pacis (Sobre as leis da guerra e da paz), de 1625, é considerado o pai fundador do direito internacional. A expressão "sociedade internacional", largamente utilizada pela mídia, é uma decorrência lógica de seu pensamento.
Em Hobbes, nada, exceto a desconfiança mútua, une os soberanos. Em Grotius, os soberanos formam uma comunidade de valores, pois compartilham a lei da natureza. Daí emana a obrigação geral de cultivar a justiça, respeitar os direitos dos demais soberanos e observar escrupulosamente as regras pactuadas. Aquilo que se chama paz é o produto da subordinação de todos às leis da natureza. Grotius não exerceu nenhuma influência sobre os tratados de Munster e Osnabruck, mas, na narrativa da história do direito, a Paz da Westfália representa a consagração da ordem que ele imaginou.
A doutrina do pacifismo difundiu-se no século XX, especialmente após a Primeira Guerra Mundial. Os pacifistas contrastam a guerra à paz como a noite ao dia e sonham abolir a guerra por meio de um pacto geral que a coloque fora da lei. Grotius não era um pacifista, algo que fica evidenciado já no título de sua obra fundadora, no qual guerra e paz aparecem como instâncias distintas de uma mesma ordem jurídica. Uma passagem sintética esclarece a sua abordagem:
Da lei da natureza, a qual pode também ser denominada lei das nações, é evidente que não são condenáveis todas as formas de guerra. Do mesmo modo, toda a história e as leis costumeiras de todos os povos informam-nos suficientemente que a guerra não é condenada pela lei voluntária das nações.
Erasmo pleiteava a proscrição da guerra por razões de consciência.Grotius, por outro lado, procurava configurar uma paz internacional baseada na justiça, mas o seu sistema não excluía o recurso à "guerra justa". O conceito de "guerra justa" fixou-se no direito internacional e foi encampado tanto pela Liga das Nações quanto pelas Nações Unidas. A guerra de autodefesa é justa, como são justas as guerras decididas pelo Conselho de
Segurança da ONU para combater estados que ameaçam a segurança internacional. A guerra justa promove uma paz baseada na justiça. "A guerra é a continuação da política por outros meios". A máxima de Clausewitz não significa apenas que a guerra é uma instância da política, mas também que paz e guerra estão conectadas pelos fios do intercâmbio político.
A diplomacia não se cala quando começa o rugido da artilharia e nem mesmo nas guerras mais terríveis cessam completamente os contatos diplomáticos entre os inimigos. Uma história da paz não é a narrativa dos eventos situados nos interstícios das guerras, mas uma revisão dos esforços de construção de uma ordem internacional estável. A razão está com Hobbes e com Grotius, que enxergaram o mesmo panorama a partir de mirantes diferentes.
A diplomacia surgiu na Grécia antiga, quando embaixadores eram esporadicamente enviados a cidades-estado, em missões especiais para entregar oferendas e mensagens de seu governo. Essa condição de mensageiro, que caracteriza o diplomata, desdobrou-se numa série de papéis. O diplomata negocia acordos entre Estados, exercitando a mediação e a persuasão, o que exige a nítida identificação do interesse de seu governo, mas também o reconhecimento da legitimidade dos interesses do governo estrangeiro. O diplomata ameniza as fricções inerentes ao sistema internacional, exercitando a interlocução, o que solicita a apreciação das diferenças de valores, culturas e atitudes entre as nações. Finalmente, o diplomata realiza atividades de inteligência, colhendo informações relevantes sobre a política das nações estrangeiras e procurando conservar na obscuridade as informações vitais relativas a seu próprio país. As figuras do diplomata e do espião não são idênticas, mas as funções do primeiro coincidem parcialmente com as do segundo.
A palavra diplomacia tem raízes no termo grego "diploma", um certificado de conclusão de estudos, e, em Roma, passou a ser utilizada para descrever documentos oficiais de viagem como passaportes e vistos imperiais. A diplomacia moderna nasceu nas cidades livres da Itália renascentista. Francesco Sforza, condottieri de Milão, estabeleceu as primeiras embaixadas permanentes no século XV. Naquela época, consolidaram-se as convenções diplomáticas, como a apresentação de credenciais ao governo estrangeiro e a instituição do privilégio da imunidade dos diplomatas. Essas convenções, junto com incontáveis procedimentos diplomáticos tradicionais, não têm unicamente sentidos práticos, mas um claro significado simbólico:
No sistema global internacional - em que os estados são mais numerosos, mais profundamente divididos e menos explicitamente participantes de uma cultura comum -, a função simbólica dos mecanismos diplomáticos torna-se, exatamente por essas razões, ainda mais importante. A vontade notória de estados de todas as regiões, culturas, ideologias e de todos os estágios de desenvolvimento de abraçar procedimentos diplomáticos muitas vezes estranhos e arcaicos, que nasceram na Europa em outra época, é atualmente um dos raros indícios observáveis da aceitação universal da noção de uma sociedade internacional.
Os diplomatas representam os interesses de estados particulares; a diplomacia simboliza a consciência compartilhada da existência de uma sociedade internacional de estados. Uma história da paz é uma narrativa das obras dessa sociedade - ou seja, antes de tudo, dos tratados que moldaram a ordem política internacional.
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"História da Paz"
Editora: Editora Contexto
Páginas: 448
Quanto: R$ 39,92
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha