Livraria da Folha

 
21/01/2010 - 14h30

Entenda o verdadeiro significado do "Big Brother"

da Livraria da Folha

Cada cidadão não vive em seu limite, mas no do "Big Brother", mais conhecido como "Grande Irmão". Não, a referência não é ao programa exibido diariamente pela TV Globo, mas à personificação literária de um poder cínico e cruel, presente no livro "1984", de George Orwell (1903-1950).

Divulgação
Romance inspirou-se nos regimes totalitários das décadas de 30 e 40
Romance inspirou-se nos regimes totalitários das décadas de 30 e 40

Os espectadores têm uma ideia distorcida do sentido real da expressão "Big Brother". A confusão estabeleceu-se por conta de nomearem os participantes do reallity show com tal alcunha. O "Grande Irmão", na verdade, é o reflexo de uma sociedade que vive no limite, porque a superação já virou motivo de uma guerra silenciosa.

Orwell, morto há exatos 60 anos, compôs seu último romance utilizando a engrenagem totalitária de uma civilização dominada pelo Estado. Sobrevive-se no coletivo, porém vive-se na atmosfera do unitário, na qual os excessos --absurdos, mas possíveis-- de poder são incontestados, seja no mundo imaginado pelo escritor britânico, seja até na "casa mais espiada do país".

Nem Winston Smith, herói do livro, escapa à vigilância do "Grande Irmão". Ele é membro do partido externo e funcionário do "Ministério da Verdade" --metáfora do escritor com relação ao poder que se fazia onisciente e onipresente entre os cidadãos do mundo que criou.

Winston questiona a opressão que o chamado "Partido" exercia sobre os cidadãos. O "Partido" era um sistema totalitário, que controlava ideologicamente os cidadãos. Se alguém pensasse diferente, seria capturado pela "Polícia do Pensamento", acabaria vaporizado pelo "Grande Irmão" e desapareceria.

Orwell, que se inspirou nos regimes totalitários das décadas de 1930 e 1940, utiliza charadas e correlações nos nomes das instituições em seu romance para simbolizar justamente o oposto --o que não representavam. Assim, verdade em ministério era impossível, pensamento era aprisionado pela polícia, e o "Irmão" era um ser unitário, que não agia no coletivo, mas conforme seus interesses.

A intenção do escritor era descrever um futuro baseado nos absurdos do presente. Orwell chega a criar a "Novafala" ("Newspeak"), idioma oficial no megabloco da Oceânia (Américas, Inglaterra, sul da África e Austrália) de seu livro. Segundo ele, o mundo estava dividido em três grandes blocos --Oceânia, Lestásia e Eurásia.

A obra foi escrita em 1948 e o seu título foi invertido para 1984 por pressão dos editores. O exemplar foi publicado somente em 1949, meses antes da morte do autor. Leia abaixo um trecho extraído da primeira parte do livro. Nele, evidencia-se por que "o Grande Irmão está de olho em você" e em todos nós.

*

PARTE I

1. Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas. Winston Smith, queixo enfado no peito no esforço de esquivar-se do vento cruel, passou depressa pelas portas de vidro das Mansões Victory, mas não tão depressa que evitasse a entrada de uma lufada de poeira arenosa junto com ele.

O vestíbulo cheirava a repolho cozido e a velhos capachos de pano trançado. Numa das extremidades, um pôster colorido, grande demais para ambientes fechados, estava pregado na parede. Mostrava simplesmente um rosto enorme, com mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, de bigodão preto e feições rudemente agradáveis. Winston avançou para a escada. Não adiantava tentar o elevador. Mesmo quando tudo ia bem, era raro que funcionasse, e agora a eletricidade permanecia cortada enquanto houvesse luz natural. Era parte do esforço de economia durante os preparativos para a Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, com seus trinta e nove anos e sua úlcera varicosa acima do tornozelo direito, subiu devagar, parando para descansar várias vezes durante o trajeto. Em todos os patamares, diante da porta do elevador, o pôster com o rosto enorme fitava-o da parede. Era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os olhos o acompanhem sempre que você se move. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, embaixo.

No interior do apartamento, uma voz agradável lia alto uma relação de cifras que de alguma forma dizia respeito à produção de ferro-gusa. A voz saía de uma placa oblonga de metal semelhante a um espelho fosco, integrada à superfície da parede da direita. Winston girou um interruptor e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras continuassem inteligíveis. O volume do instrumento (chamava-se teletela) podia ser regulado, mas não havia como desligá-lo completamente. Winston foi para junto da janela: o macacão azul usado como uniforme do Partido não fazia mais que enfatizar a magreza de seu corpo frágil, miúdo. Seu cabelo era muito claro, o rosto naturalmente sanguíneo, a pele áspera por causa do sabão ordinário, das navalhas cegas e do frio do inverno que pouco antes chegara ao fim.

Fora, mesmo visto através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Lá embaixo, na rua, pequenos rodamoinhos de vento formavam espirais de poeira e papel picado e, embora o sol brilhasse e o céu fosse de um azul áspero, a impressão que se tinha era de que não havia cor em coisa alguma a não ser nos pôsteres colados por toda parte. Não havia lugar de destaque que não ostentasse aquele rosto de bigode negro a olhar para baixo. Na fachada da casa logo do outro lado da rua, via-se um deles. O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ, dizia o letreiro, enquanto os olhos escuros pareciam perfurar os de Winston. Embaixo, no nível da rua, outro pôster, esse com um dos cantos rasgado, adejava operosamente ao vento, ora encobrindo, ora expondo uma palavra solitária: Socing. Ao longe, um helicóptero, voando baixo sobre os telhados, pairou um instante como uma libélula e voltou a afastar-se a grande velocidade, fazendo uma curva. Era a patrulha policial, bisbilhotando pelas janelas das pessoas. As patrulhas, contudo, não eram um problema. O único problema era a Polícia das Ideias.
Por trás de Winston, a voz da teletela continuava sua lenga-lenga infnita sobre o ferro-gusa e o total cumprimento - com folga - das metas do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Todo som produzido por Winston que ultrapassasse o nível de um sussurro muito discreto seria captado por ela; mais: enquanto Winston permanecesse no campo de visão enquadrado pela placa de metal, além de ouvido também poderia ser visto. Claro, não havia como saber se você estava sendo observado num momento específico. Tentar adivinhar o sistema utilizado pela Polícia das Ideias para conectar-se a cada aparelho individual ou a frequência com que o fazia não passava de especulação. Era possível inclusive que ela controlasse todo mundo o tempo todo. Fosse como fosse, uma coisa era certa: tinha meios de conectar-se a seu aparelho sempre que quisesse. Você era obrigado a viver - e vivia, em decorrência do hábito transformado em instinto - acreditando que todo som que fizesse seria ouvido e, se a escuridão não fosse completa, todo movimento examinado meticulosamente.

Winston mantinha as costas voltadas para a teletela. Era mais seguro; contudo, como sabia muito bem, mesmo as costas de uma pessoa podem ser reveladoras. A um quilômetro de distância, o Ministério da Verdade, onde ele trabalhava, erguia-se vasto e branco por sobre a paisagem encardida. Aquela, pensou com uma espécie de contrariedade difusa, aquela era Londres, principal cidade da Faixa Aérea Um, terceira mais populosa das províncias da Oceânia. Tentou localizar alguma lembrança de infância que lhe dissesse se Londres sempre fora assim. Será que sempre houvera aquele cenário de casas do século XIX caindo aos pedaços, paredes laterais escoradas com vigas de madeira, janelas remendadas com papelão, telhados reforçados com chapas de ferro corrugado, decrépitos muros de jardins adernando em todas as direções? E os lugares bombardeados, onde o pó de gesso dançava no ar e a salgueirinha crescia e se espalhava sobre as pilhas de entulho? E os locais onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e onde tinham brotado colônias sórdidas de cabanas de madeira que mais pareciam galinheiros? Não adiantava, ele não conseguia se lembrar. Tudo o que lhe ficara da infância era uma série de tableaux superiluminados, desprovidos de paisagem de fundo e quase sempre ininteligíveis.

O Ministério da Verdade - Miniver, em Novafala - era extraordinariamente diferente de todos os outros objetos à vista. Era uma enorme estrutura piramidal de concreto branco cintilante, erguendo-se, terraço após terraço, trezentos metros espaço acima. Do lugar onde Winston estava mal dava para ler, escarvados na parede branca em letras elegantes, os três slogans do Partido:

GUERRA É PAZ
LIBERDADE É ESCRAVIDÃO
IGNORÂNCIA É FORÇA

*

"1984"
Autor: George Orwell
Editora: Companhia das Letras
Páginas: 416
Quanto: R$ 39,50
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 e no site da Livraria da Folha

 
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