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22/01/2010 - 11h23

"Amor sem Escalas" chega aos cinemas; conheça livro que o originou

da Folha Online

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"Amor sem Escalas" chega aos cinemas baseado em livro que ironiza o universo dos executivos de grandes coporações
"Amor sem Escalas" chega aos cinemas baseado em livro que ironiza o universo dos executivos de grandes coporações

Elogiado pela crítica e cogitado para brilhar no Oscar, "Amor sem Escalas" chega nesta sexta-feira aos cinemas brasileiros. Estrelado por George Clooney e dirigido por Jason Reitman - rsponsável por "Juno" e "Obrigado por Fumar" - venceu o Globo de Ouro deste ano na categoria de melhor roteiro.

O livro homônimo, no qual o filme se baseia, acompanha a vida de Ryan Bingham, papel de Clooney, um executivo que possuiu a função de demitir pessoas para cortar custos de grandes empresas. Por conta de seu emprego, ele é um homem solitário e solteiro convicto, já que passa a maior parte de seu tempo em aviões e hotéis.

Prestes a deixar o emprego, seu objetivo é acumular 1 milhão de milhas aéreas, mas alguém leva sua identidade e cartões de crédito, além das milhas. Durante esta situação começa a ser questionado por duas eventuais companheiras de viagem sobre seu estilo de vida, que no longa são representadas pelos papéis de Vera Farmiga e Anna Kendrick.

Assim como a obra de Walter Kirn, crítico literário e escritor, o longa utiliza do humor para satirizar a vida dos grandes executivos. Assim como o texto original, ironiza a mística do universo corporativo, a busca por gurus e aperfeiçoamento pessoal, além da ausência de vínculos que este estilo de vida proporciona.

Leia abaixo o primeiro capítulo de "Amor sem Escalas".

*

Para me conhecer, você precisa andar de avião comigo. Sente aí. Estou no corredor e você na janela - encurralado. Você abre seu livro barato, o grande thriller de tribunal que saiu há seis meses, convicto de que tudo o que mais deseja é ficar sozinho, mas eu sei que é o contrário: você precisa conversar. O elegante comissário de bordo traz nossas bebidas: leite semidesnatado com uma pedra de gelo para mim e um Wild Turkey para você. Lá fora está molhado, as pistas, escuras e esburacadas. É fim de tarde. A cabine da primeira classe se enche de outros executivos que ligam seus laptops e abrem grandes planilhas de cálculos ou aproveitam os últimos momentos antes da decolagem para fazer ligações pelo celular para esposas e clientes. As vozes são vivas, mas rasas, não usam o diafragma, as frases reduzidas ao mínimo para economizar a bateria, e, quando desligam, eles olham para a janela, suspiram e ajustam o relógio do fuso horário da Zona Central dos Estados Unidos para o das Montanhas, uma hora antes. Para alguns, isso significa um dia mais longo; para outros, quer dizer jantar antes de ter fome. Um sujeito abaixa a cortina da janela e aninha a cabeça entre dois travesseiros ínfimos, enquanto outro abre a maleta, olha lá dentro depois fecha os olhos e coça o queixo, exausto.

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Livro narra a história de homem que ganha a vida demitindo pessoas
Livro narra a história de homem que ganha a vida demitindo pessoas

Porém, temporariamente, seu trabalho já terminou. A semana inteira você batalhou, entretendo importantes clientes em potencial em franquias de frutos do mar e dirigindo um Dodge Intrepid alugado por ruas estranhas que nada tinham a ver com as marcações no seu mapa. Você deu o melhor de si e, pelo menos uma vez na vida, o melhor de si foi suficiente para aplacar um chefe que teme perder o próprio emprego. Você guardou a gravata na mala de mão, desabotoou o colarinho e afrouxou o cinto um furo ou dois - para poder respirar. Porque respirar pode ser um luxo de vez em quando.

- Esse livro é aquele dos assassinatos por causa de uma fraude fiscal? Dizem que as tramas dele não são mais o que costumavam ser.

Você empaca antes de responder, tentando me desestimular. Para você, eu sou do tipo que fala sem parar. Um transtorno. Você ainda está se recuperando do último chato, no voo Los Angeles-Portland, cujo neto acabou de entrar na Stanford Law School. Garoto brilhante e também ótimo atleta, começou seu primeiro negócio ainda adolescente, informatizando o serviço de fraldas do município, embora o que realmente contribuiu para sua admissão em Stanford tenha sido seu trabalho de caridade: o garoto tem um fraco por imigrantes sem-teto, o que provavelmente descreve a todos nós da Costa Oeste - embora alguns estejam em situação pior que outros. Nós temos sorte.

- Estou na página 11 - você diz. - A trama ainda está se formando.

- Já chegou ao quarto lugar do New York Times.

- Eu não leio o New York Times.

- Você mora em Denver? Está voltando para casa?

- Estou tentando.

- Nem me fale. Um atraso atrás do outro.

- O tempo está ruim num dos aeroportos de conexão.

- Eles sempre dizem isso.

- Acho que, hoje em dia, não nos consideram muito.

- Melhor nem falar nisso. Notícia interessante aquela dos Broncos que saiu ontem.

- Futebol profissional é uma farsa.

- Não posso discordar.

- Milionários e criminosos. Esses atletas me dão nojo. Mas de hóquei, eu gosto. Hóquei, eu não odeio.

- É a influência canadense - digo. - Desinfla o materialismo.

- Hein?

- Uso termos difíceis quando estou cansado. Pedantismo de professor. Desculpe. Eu também curto hóquei.

Foi tanta insistência que o átomo se dividiu. Você relaxa. Nós continuamos conversando, no começo assuntos impessoais, mas depois que percebemos tudo o que temos em comum - a mesma posição política: moderada, o mesmo gosto para carros alugados, a mesma sensação de que o setor de serviços americanos precisa melhorar logo ou vai entrar em crise - surge certa proximidade, uma solidariedade amistosa. Você me recomenda um hotel em Tulsa; eu dou a dica de um restaurante em Fort Worth que serve uma ótima costela. O avião corta uma nuvem, dá um solavanco e estremece. Nada como uma turbulência para ajudar a fortalecer uma amizade. Mais um pouco e você já está me falando da sua família. Sua filha, uma ginasta ainda na escola. Sua querida esposa. Ela voltou a trabalhar e você não tem certeza se gosta disso, embora o emprego seja de apenas meio expediente e talvez não dure. Outra coisa de que você não gosta é viajar. O pessoal azedo das companhias aéreas. As trocas de bagagem. Os colchões macios demais nos hotéis, que acabam com sua coluna. Você espera conseguir um bom dinheiro que lhe permita largar tudo e se dedicar ao seu grande hobby: restaurar lanchas antigas. É na água que você se sente mais feliz. No lago.

Agora é minha vez. Faço um relatório completo. Sou solteiro, mas sempre de olho em alguém - nunca se sabe, vai que a mulher sentada na poltrona 3B é minha alma gêmea. Já fui casado, tinha esperança de formar uma família, mas convivia com ela mais por telefonemas, de diferentes fusos horários. Cresci em Minnesota, no campo; meu pai era dono de uma frota de caminhões de gás propano e se elegeu deputado estadual duas vezes pelos democratas, pressionando por um planejamento agrícola destinado ao fracasso enquanto deixava seu negócio afundar. Meus pais se separaram quando eu ainda estava na faculdade, um lugar hippie na Costa Leste - imagine uma creche gerida por Ph.Ds -, e quando voltei para casa não havia mais ninguém para me receber, a não ser advogados, leiloeiros e acusações - algumas verdadeiras, mas poucas importantes. Meu primeiro emprego foi na indústria de informática. Eu vendia memória, um produto perfeito, já que nunca ninguém tem memória o suficiente e todo mundo tem medo de que o concorrente tenha mais. Agora trabalho como consultor administrativo, com parte do meu tempo dedicado a TEE (Treinamento de Eficiência para Executivos) e uma ênfase - infinitamente maior, infelizmente - em ATC (Aconselhamento para Transição de Carreira), que é uma maneira elegante de chamar a atividade de treinar as pessoas para verem a perda do emprego como uma oportunidade para o crescimento pessoal e espiritual. Foi um trabalho em que caí porque não tive força para dizer não e que aprendi a tolerar porque precisava, e de repente eu não conseguia ficar nem mais uma hora nele. Minha carta de demissão está na mesa de um homem que em breve vai chegar de uma longa viagem, estava pescando. O que vou fazer depois que ele ler, não sei. Minha curiosidade está sendo atiçada por uma empresa chamada MythTech; eles fizeram umas sondagens. Tenho outros carvões na brasa, mas nenhum ainda pegou fogo. Até meu superior voltar de Belize, continuo trabalhando em Denver para a ISM - Integrated Strategic Management. Já ouviu falar da Arthur Andersen? Da Deloitte & Touche? Nós somos parecidos com eles, embora mais diversificados. "O Negócio dos Negócios", é como chamamos. Um dia, isso também me deixou impressionado.

Com o tempo passando e a comida chegando (você tenta o frango à florentina, eu fico com o filé e nenhum de nós chega perto daquela sobremesa cheia de creme), a intimidade que surge entre nós chega a dar medo. Eu gostaria de pensar que ela apareceu natural e mutuamente, e não porque forcei a barra. Às vezes, eu forço. Trocamos cartões e os enfiamos nas carteiras, então pedimos mais uma bebida e continuamos conversando, chegando enfim ao ponto que eu conheço melhor, o assunto sobre o qual sou capaz de falar a noite inteira.

Quer saber ao lado de quem você está sentado? Vou lhe contar.

Amor sem Escalas
Autora: Walter Kirn
Editora: Record
Páginas: 352
Quanto: R$ 47,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha

 
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