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23/01/2010 - 16h50

Menino inventa irmão imaginário na França pós-guerra; leia trecho

da Folha Online

O filme "Um Segredo em Família", de Claude Miller, que estreou na última sexta-feira (22), em São Paulo, é baseado no livro homônimo de Philippe Grimbert.

Divulgação
Livro autobiográfico sobre o pós-guerra da França deu origem a filme
Livro autobiográfico sobre o pós-guerra da França deu origem a filme

O enredo adapta o livro autobiográfico de Grimbert, que chega a fazer uma ponta no longa, como um passante na rua. A narrativa trata o holocausto e suas trágicas consequências sob uma perspectiva literária.

Grimbert mescla realidade e ficção, além de romantizar sua própria experiência. O livro é um testemunho histórico da França pós-guerra. É o relato de um duro processo de se tornar adulto em um meio hostil.

Desde criança, o protagonista acreditava ter um irmão. Sua vida em Paris transcorre tranquila, junto com os pais, Maxime e Tania. Judeus que escaparam do holocausto, os dois são amantes dos esportes. Com saúde precária, o filho se sente deslocado da família. Então, o garoto inventa um irmão com quem brincar e se espelhar.

Em seu irmão imaginário mais velho, ele vê tudo o que os pais esperavam de um herdeiro, mas que ele próprio não pôde oferecer. Conforme se torna mais próximo do irmão imaginário e se distancia de seus amigos reais, o menino percebe que os pais guardam um segredo.

Leia abaixo um trecho extraído do capítulo de abertura de "Um Segredo em Família".

*

Filho único, tive um irmão durante muito tempo. Era preciso acreditar cegamente em mim quando eu contava essa fábula aos meus colegas de férias, aos meus amigos de passagem. Eu tinha um irmão. Mais bonito, mais forte. Um irmão mais velho, glorioso, invisível.

Ao visitar um amigo, eu sempre sentia inveja quando alguém parecido com ele abria a porta. Os cabelos revoltos, um sorriso maroto, que me eram apresentados com duas palavras: "Meu irmão." Um enigma, esse intruso com quem se dividia tudo, inclusive o amor. Um verdadeiro irmão. Um semelhante cujo rosto apresentava traços comuns, como uma mecha rebelde ou um dente de lobo, um companheiro de quarto de quem se conheciam a intimidade, os humores, os gostos, as fraquezas, os cheiros. Uma estranheza para mim, que reinava sozinho no império dos quatro cômodos do apartamento familiar.

Eu era o único objeto de amor, a terna preocupação dos meus pais, porém dormia mal, agitado por sonhos ruins. Chorava assim que meu abajur era desligado, ignorava a quem se dirigiam essas lágrimas que penetravam meu travesseiro e se perdiam na noite. Envergonhado sem saber por que, frequentemente culpado sem motivo, adiava o momento de mergulhar no sono. Minha vida de criança me fornecia, a cada dia, tristezas e medos que eu conservava na minha solidão. Precisava dividir essas lágrimas com alguém.

Um dia deixei, enfim, de estar sozinho. Insistira em acompanhar minha mãe ao quarto de despejo, que ela queria arrumar. Descobria sob o teto esse cômodo desconhecido, seu cheiro de lugar fechado, os móveis bambos, as pilhas de malas com a fechadura enferrujada. Ela havia aberto a tampa de um baú onde imaginava encontrar as revistas de moda que publicavam seus desenhos outrora. Teve um sobressalto ao se deparar com o cãozinho de olhos de resina que dormia lá, deitado sobre uma pilha de cobertores. A pelúcia rala, o focinho empoeirado, ele estava vestido com um casaco de tricô. Apoderei-me dele imediatamente e apertei-o contra o peito, mas tive de renunciar a levá-lo para o quarto, sensibilizado pelo mal-estar de minha mãe, que me incitava a colocá-lo de volta no lugar.

Na noite que se seguiu, espremi pela primeira vez a bochecha molhada no peito de um irmão. Ele acabava de entrar na minha vida, e eu não iria mais deixá-lo.

A partir desse dia, caminhei na sua sombra, flutuei no seu rastro como em uma roupa muito larga. Ele me acompanhava ao jardim, à escola, eu falava dele para todos com quem encontrava. Em casa até inventei um jogo que me permitia fazê-lo dividir a nossa existência: pedia que o esperassem antes de passar à mesa, que o servissem antes de mim, que arrumassem as suas coisas antes das minhas quando partíamos em férias. Criara-me um irmão atrás do qual iria me apagar, um irmão que iria pesar sobre mim, com toda a sua força.

Apesar de sofrer com a minha magreza, com a minha palidez doentia, queria acreditar ser o orgulho de meu pai. Adorado por minha mãe, eu era o único a ter habitado esse ventre delineado pelo exercício, a ter surgido dentre essas coxas de esportista. Era o primeiro, o único. Antes de mim, ninguém. Apenas uma noite, um banho de sombra, algumas fotografias em preto e branco celebrando o encontro de dois corpos gloriosos, habituados às disciplinas do atletismo, que iriam unir seus destinos para me dar à vida, para me amar e me mentir.

Conforme o que diziam, eu carregava desde sempre esse sobrenome tipicamente francês. Minhas origens não me condenavam mais a uma morte certa, eu não era mais esse galho franzino no cume de uma árvore genealógica que precisava ser podada.

Meu batismo fora realizado tão tarde que guardei intacta a sua lembrança: o gesto do oficiante, a cruz úmida gravada na minha testa, minha saída da igreja nos braços do padre, sob a asa bordada da sua estola. Uma proteção entre mim e a cólera do céu. Se por uma infelicidade a ira fosse novamente desencadeada, minha inscrição nos registros da sacristia me protegeria. Eu não tinha consciência disso, e me entregava ao jogo, obediente, silencioso, tentando acreditar, com todos aqueles que me festejavam, que se reparava uma simples negligência.

A marca indelével impressa no meu sexo se reduzia à lembrança de uma intervenção cirúrgica necessária. Nada de ritual, uma simples decisão médica, uma entre tantas outras. Nosso sobrenome também carregava a sua cicatriz: duas letras trocadas oficialmente a pedido do meu pai, uma ortografia diferente que lhe permitia plantar raízes profundas no solo da França.

*

"Um Segredo em Família"
Autor: Philippe Grimbert
Editora: Record
Páginas: 176
Quanto: R$ 24,90
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 e no site da Livraria da Folha

 
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