Livraria da Folha

 
06/02/2010 - 10h03

Jesus volta à Terra, faz milagres e disputa cargo de Obama em livro; leia trecho

DENISE DE ALMEIDA
colaboração para a Livraria da Folha

Divulgação
Após milagres, Jesus disputa o comando da Casa Branca, nos EUA
Após milagres, Jesus disputa o comando da Casa Branca, nos EUA

No livro de ficção "Jesus para Presidente", o escritor norte-americano Roland Merullo imagina como seria se Jesus Cristo decidisse voltar à Terra dois mil anos depois. Na trama, Jesus resolve se candidatar ao cargo de presidente dos Estados Unidos e começa sua campanha fazendo dois milagres no país: devolve a vida a uma criança pobre que cai do terceiro andar de um prédio e, depois, cura uma menina rica de uma doença grave.

Ambos os feitos foram realizados de forma anônima e toda a população local ficou intrigada com aquele homem misterioso que tinha uma tatuagem de flor no antebraço e sumiu da mesma forma que havia aparecido: sem deixar rastros.

Com a repercussão do primeiro caso, a imprensa foi atrás da história para saber o que exatamente tinha acontecido, quem era o tal homem e o que havia feito. E é aí que a vida do jornalista Russel Thomas vira de cabeça para baixo.

Enviado ao local para cobrir o tema, Thomas acaba investigando o caso do segundo milagre --não tão comentado na mídia-- e dias mais tarde recebe uma ligação de um homem que se diz o "Bom Visitante", como o misterioso personagem havia sido chamado pelos veículos de comunicação.

Desconfiando da história, mas com um ar de curiosidade, o repórter --que almejava ser âncora de um telejornal maior-- vai ao encontro do homem que ligou para ele e que se diz chamar Jesus Cristo. Cético, o jornalista custa a acreditar que aquela pessoa a sua frente seja mais que um lunático, mas uma sequência de fatos mostra que, pelo menos, ele é um personagem interessante.

Jesus então diz a Thomas que sua intenção é disputar as eleições e chefiar a Casa Branca e convida ele, sua namorada, seu chefe, seus pais e seu irmão --portador de síndrome de Down-- para fazerem parte de sua campanha pela presidência.

O livro mostra os altos e baixos da campanha, os ataques dos adversários, as estratégias de Cristo e do Partido da Divindade e as mudanças que todos esses fatos causaram na vida de quem esteve próximo do candidato Jesus Cristo --acreditando que ele era um homem santo ou não.

Leia abaixo o primeiro capítulo de "Jesus para Presidente".

*

Um

Quando Jesus decidiu se candidatar a presidente dos Estados Unidos, de modo muito sensato começou sua campanha com um milagre. Dois, na verdade. Por isso talvez eu devesse começar esta história com uma frase do tipo No princípio foram os milagres, mas o fato é que, na época, a maioria das pessoas da mídia - eu inclusive - não acreditava nesse tipo de coisa, principalmente quando dizia respeito a uma campanha pela Casa Branca. No começo fui cético e mais tarde, depois de conhecer o homem que se dizia Jesus, um pouco menos cético. E então todo o meu modo de enxergar a vida foi virado de cabeça para baixo.

Deixe-me começar a história do seguinte modo: no princípio era uma perfeita tarde de maio na Nova Inglaterra, mais precisamente no Oeste de Massachusetts. O céu estava límpido, o ar, carregado com o cheiro de árvores floridas e lama secando, e meu produtor e chefe, Paterson Wales, estava de pé junto à janela de seu escritório olhando para a conturbada cidade de West Zenith, sobre a qual dávamos as notícias toda noite às 18h10. Wales e eu formávamos uma dupla estranha. Ele tinha um ar cansado e triste depois de 30 anos trabalhando na TV, e eu era um repórter novato em ascensão, famoso na área, de fala macia, cabelo bonito e aspirações a um cargo de âncora numa grande cidade.Wales me chamou à sua sala, ficou de costas, tirou da boca o charuto cubano ilegal no qual salivaria até que apodrecesse mas que jamais acenderia, e disse com ternura:

- Tenho uma coisa para você.

Lembro-me de ter olhado para suas costas e percebido que seu terno de lã azul luxuosa provavelmente custava mais do que eu ganhava em um mês.

- Tiroteio em Hunter Town? - perguntei.

- Não.

- Policiais com armas e sacos de drogas numa mesa da delegacia?

- Não.

- Vazamento na estação de tratamento de esgotos na Westover Road?

- Você vai gostar. É uma coisa esquisita. Como você.

- Não sou esquisito, sou totalmente americano.

- Certo, e eu sou Mahatma Gandhi. Agora escute. - E então, para minha perplexidade, Wales, que não era famoso por um forte contato visual, se virou e cravou seus olhos azul-bebê em mim, enquanto deixava a mão com o charuto pender ao lado do corpo. - Ontem à noite, em Fultonville, um menininho caiu de uma escada de incêndio - disse do seu jeito staccato. - Do terceiro andar... Morreu.

- Isso é triste.

Naqueles dias - penso neles como os dias anteriores a Jesus -, eu também tinha um ar cansado, depois de sete anos na WZIZ fazendo matérias sobre uma centena de prisões por drogas e uma dezena de assassinatos. Tiroteios entre quadrilhas. Discussões domésticas que se complicavam. Garotos de escola passando trote sobre ameaças de bombas. Coisas às quais nos acostumamos e que já não me afetavam mais como nos primeiros anos. Mas crianças caindo de escadas de incêndio não faziam parte dessa lista. Embora eu não tivesse filhos, queria uns cinco ou seis algum dia e não conseguia dormir depois de fazer reportagens em que uma criança fosse machucada. Wales sabia disso e fiquei surpreso por ele me mandar cobrir aquela matéria.

Mas então, depois de um silêncio, acrescentou, me olhando atentamente:

- Morreu e depois voltou à vida.

- Bom - respondi. - Isso acontece. Principalmente com os pequeninos. Podem sobreviver a uma queda assim. Eles apagam, parece que estão mortos, mas podem voltar. É como pessoas que caem em água muito fria e...

- Foi em Fultonville - Wales disse de modo tão veemente que por um segundo pareceu a ponto de chorar, algo que ele simplesmente não faz.

- Certo, chefe. Você já disse.

Fultonville era a parte pobre de West Zenith ou, devo dizer, uma das partes pobres. A segunda mais pobre e mais triste, pelo que eu sabia, depois do bairro chamado Hunter Town. Com 10 quarteirões de apartamentos baratos, um parquinho sem graça e casas de tijolos infestadas de ratos, o lugar era povoado por uma mistura bem equilibrada de brancos, negros e latinos e apresentava as características comuns da pobreza: um monte de gente desempregada, um monte de mães solteiras, um monte de drogas, brigas, algumas vezes tiroteios. Fultonville era o tipo de lugar do qual a gente não se aproxima a não ser que tenha errado o caminho, more lá ou queira comprar uma substância classe D.

- Cale a boca por um instante - disse Wales. - Esta noite vou lhe dar dois minutos e 50 segundos, no horário nobre, portanto poupe suas palavras para isso, certo?

- É um bocado de tempo.

- Feche a matraca.

Ele virou as costas de novo e deu uma tragada de mentira no Havana.

- Dessa vez foi diferente. Se você acreditar no que estão dizendo por aí, a mãe e o namorado faziam um piquenique na escada de incêndio... Um pouco de birita, talvez algo mais. O garoto tem 2 ou 3 anos. Caiu no sono. Rolou na escada quando eles não estavam olhando. Uma das barras estava solta, ou sei lá o quê. Ele caiu. Havia capim e terra onde ele bateu, mas era um lugar duro. A mãe gritou. Desceu a escada correndo, pulou do último lance, quase quebrou os dois tornozelos. Viu que o menino não estava respirando. Um minuto se passou, ela ficou histérica. Dois minutos. Oito minutos. Os vizinhos vieram correndo. Sirenes no ar.

- Estou visualizando.

Ele fez uma pausa. Mesmo de costas, pude ver que eu realmente o havia irritado, por isso me calei.

- Então, segundo os relatos, um cara estranho veio andando pelo meio da multidão. Um sem-teto ou algo assim. Ninguém nunca o tinha visto. Talvez hispânico, talvez não. Cabelos compridos. Uma flor tatuada no antebraço esquerdo. Ele se abaixou e tocou o ombro do menino. Depois foi embora. Desapareceu na rua. O garoto, que estava morto, começou a chorar. Um minuto mais tarde, quando a ambulância e a polícia chegaram, o menino estava ótimo.

Não pude manter o silêncio.

- Quer minha opinião?

- Não.

- Minha opinião é a seguinte: a mãe sabe que vai ser acusada de ter deixado o menino em situação de risco. Assim, quando percebe que o bebê está bem, inventa essa história. Um tempinho de exposição positiva na TV. O bebê do milagre. A boa mãe visitada por um anjo. E ela se livra.

Wales estava balançando a cabeça.

- As testemunhas confirmam o depoimento dela.

- Compradores de drogas - sugeri. - Vizinhos com medo de apanhar do namorado dela caso neguem essa versão. É por aí. Sinto cheiro de podre nessa história.

- Talvez. Veremos. Vá a Fultonville e verifique. Vou lhe dar dois minutos e 50 segundos às 18h e, se a história for boa, um complemento às 22h. O nome da mulher é Ada Montpelier, o mesmo nome da capital de Vermont. Não me faça repetir.

- A cidade universitária na França. Vou lembrar assim.

- Ediston Street, 877.

- 877 eram os últimos três dígitos do número de telefone da minha ex-sogra.

- Quem se importa?

- O coração das trevas.

- O quê?

- Ela.

- Certo. Vá.

*

Então este foi o princípio. O cara tatuado com o toque mágico era Jesus Cristo de volta à Terra. Pelo menos é no que acredito agora. Realmente não espero que todo mundo concorde, claro: uma pesquisa do USA Today, feita com 1.200 americanos logo depois dos acontecimentos que vou narrar, mostrou que apenas metade de nós acreditava que ele era mais do que um ser humano interessante. Mas deixe-me contar toda a história antes de fazer seu julgamento. Fiz reportagens sobre algumas coisas estranhas nos meus dias na WZIZ e geralmente não as compreendia bem. E o Jesus que vou descrever aqui talvez não seja nem um pouco parecido com o que os jornais e a TV mostraram durante a campanha e nem um pouco com o Jesus que você sempre imaginou.

*

"Jesus para Presidente"
Autor: Roland Merullo
Editora: Sextante Ficção
Páginas: 288
Quanto: R$ 29,90
Onde comprar: pelo telefone 0800-140090 ou na Livraria da Folha

 
Voltar ao topo da página